AMÍLCAR CABRAL
XXVII
UM OLHAR SOBRE A DESCOLONIZAÇÃO DA GUINÉ-BISSAU
(ARTIGO APOIADO NUM TEXTO DE CARLOS FABIÃO)
Amílcar
Cabral foi capaz de reunir em redor de uma quimera os movimentos nacionalistas
das colónias portuguesas da Guiné e de Cabo Verde. Quem morre cedo presta-se a
forjar lendas. Cabral foi um líder determinado, esclarecido, inteligente,
disciplinado e disciplinador, com elevadas preocupações humanitárias. Sem nunca
fazer concessões ao culto da personalidade, acabou por construir uma imagem maior
que a própria estatura.
No
xadrez da História, o governo português foi-lhe opondo adversários sucessivos.
O general António de Spínola terá sido o mais destacado de todos. Ainda assim,
nada ganhou. No campo militar, venceu batalhas e perdeu a guerra. No aspeto
político, teve razão antes do tempo, mas o tempo retirou-lhe depressa a razão.
Inovador na abordagem do processo de descolonização portuguesa, foi rapidamente
ultrapassado pela vertigem dos acontecimentos. Foi Presidente da República
Portuguesa quando a maioria dos seus concidadãos pretendia já outros chefes.
Dois anos após a sua publicação, o seu livro “Portugal e o futuro”, que ajudou
a abrir os olhos da História a muitos militares de abril, poderia já
intitular-se “Portugal e o passado”. Spínola teve um destino que se pode comparar ao de
alguns treinadores de futebol. Não passou de bestial a besta, mas foi
considerado progressista num dia e reacionário poucos dias depois.
Não
deixa de ser curioso reproduzir a opinião de Carlos Fabião, um dos seus
centuriões por altura do consulado na Guiné e seu opositor, por opinião e por
inerência de funções, quando o rebelde Spínola o chamou a Tancos. Comecemos por lembrar um fragmento duma entrevista concedida por Fabião ao
jornal Público e conduzida por Maria João Avilez.
P. - Qual foi
a sua reação aos acontecimentos do 11 de março?
R. - Eu não
sabia o que se estava a passar - estava no meu gabinete a falar com o Lemos
Pires, que viera cá tratar dos assuntos de Timor. De repente, entram no meu
gabinete o Mendes Dias e o Lemos Ferreira dizem-me que o general Spínola estava
em Tancos e pedia para eu lá ir. Respondi que não iria e disse ao Mendes Dias -
na altura chefe do Estado-Maior da Força Aérea - que ele também não deveria ir.
Mas os nossos dois chefes de gabinete foram.
P. - Achou
que não deveria ir. Porquê?
R. - Repare
nisto: o general Spínola, fechado numa base, manda chamar o chefe do
Estado-Maior do Exército, ou seja eu próprio. Ora eu, naquele momento, não
estava em condições de me meter numa coisa sem saber o que se passava. Mandei
ver o que era, disseram-me que o general Spínola me queria ao seu lado quando
entrasse em Lisboa. Fui então perguntar ao Costa Gomes o que se passava e optei
por ficar na dependência dele.
P. -
Permita-me então que lhe pergunte: nesse momento troca objetivamente o general
Spínola pelo general Costa Gomes? Ou tratava-se simplesmente de um problema de
disciplina militar?
R. -
Mantive-me dentro da minha linha hierárquica.
O bom senso e o respeito pelos valores
militares são duas características geralmente reconhecidas a Carlos Fabião. O
seu posicionamento ao lado do general Costa Gomes ajudou a evitar em Portugal a
tragédia da guerra civil. Apesar das divergências políticas com António de
Spínola. Fabião recordou-o sempre como o chefe e o amigo. O artigo que publicou
sobre a descolonização da Guiné-Bissau ilustra bem o seu modo de ver.
Visto do lado
português, o Marechal António de Spínola foi, sem qualquer dúvida, a figura
central da guerra da Guiné… … Antes e depois de Spínola, tudo mais não foi que
uma «apagada e vil tristeza» …
… Logo nos primeiros tempos das hostilidades,
Portugal perdeu o controlo do sul e do centro-oeste da colónia. Conservou o
domínio da região leste, graças ao facto da etnia fula se ter mantido fiel à soberania
portuguesa; do «chão manjaco», incaracterístico, sem se afirmar por nenhuma das
partes em confronto e da ilha de Bissau, como era natural dada a concentração
de forças militares ali existentes.
O
novo Governador e Comandante-Chefe promoveu uma reunião em Bissau, no palácio
do Governo, de todos os Comandantes de Unidades e Subunidades dos três ramos das
Forças Armadas em serviço na Guiné. Nessa importante reunião, Spínola esboçou o
seu plano de ação definindo, com muita clareza, os seguintes pontos:
- uma
guerra subversiva não se ganha militarmente;
-
portanto, ele não ia pedir aos militares que a ganhassem, ia apenas pedir-lhes
que a não perdessem;
- a vitória essa teria de ser conseguida pelo
governo no campo político.
Com base nestes princípios, foram redefinidas
as missões militares de todas as Unidades e subunidades do teatro operacional,
de acordo com as suas reais possibilidades. A manobra militar passou a ficar
estreitamente subordinada à manobra sócio/política, sendo dada a esta uma alta
prioridade…
… O Marechal tinha também um projeto nacional
para vencer o impasse a que o país chegara com a institucionalização da guerra.
Esse projeto admitia que a unidade se podia conservar por uma reestruturação
nacional fortemente descentralizada que tomasse na devida consideração a
heterogeneidade do todo português…
…A estratégia que Spínola montou na Guiné foi
um reflexo deste projeto, ao qual ficou, desde o início, subordinada. Ela
consistia numa acelerada promoção sócio/económico/cultural de todas as
populações tribalizadas, dentro das respetivas estruturas convencionais, de
modo a fazer ascender todos os grupos étnicos, paralela e simultaneamente numa
mesma direção, de modo a atingirem uma plataforma comum a que se convencionou
chamar portugalidade…
… Os Congressos do Povo da Guiné
institucionalizavam, de certo modo a divisão étnica dos guineenses, mas permitiam
auscultar as insatisfações, os desejos e os anseios das populações nativas,
procurar entender os mecanismos que as motivavam e informar o governo dos seus
erros próprios e dos cometidos pelos seus agentes e ainda dos choques da lei
portuguesa com o direito tradicional dos povos…
…Dentro da sua
estratégia, Spínola procurou estabelecer o diálogo com o opositor. Militarmente
criou as condições que lhe permitiam aceitar o diálogo numa posição cómoda;
conservou o controlo do leste e impediu a sublevação do «chão» manjaco.
O
Marechal tinha a plena consciência que o problema da Guiné não era possível de
resolver sem o PAIGC. Mas esta tentativa não ia ser fácil de realizar. Spínola
conseguiu interessar no caso o Presidente Senghor do Senegal, que se prestou a
servir de intermediário.
Em
1971, Léopold Senghor informou António de Spínola que Amílcar Cabral estava
disposto a encontrar-se com ele em Bissau para negociar a autonomia da Guiné.
O
governador-geral da Guiné pediu, por escrito, ao primeiro-ministro português
autorização para o encontro. Alegou que, se a oportunidade não fosse
aproveitada, Portugal poderia perder a situação transitória de vantagem
militar. Era conveniente negociar em posição de força. Marcello Caetano
recusou.
A
Operação Mar Verde tivera lugar em Janeiro de 1970. Fragilizara a imagem de
Portugal no mundo e reforçara a posição dos nacionalistas.
Em
Maio de 1972, Spínola e Senghor encontraram-se num complexo turístico de
Casamance, a sul do Senegal.
Carlos
Fabião acompanhou o general e resumiu as conversações.
Senghor
levava uma proposta estudada. Tratava-se, no essencial, de interromper as
hostilidades e de entregar o poder, na Guiné e em Cabo Verde, durante um
período transitório de dez anos, a uma administração mista, constituída por
elementos nomeados pelo PAIGC e pelo governo português. Presumia-se que, no
final desse período, fosse acordada a independência.
Curiosamente,
o projeto estava em conformidade com as ideias defendidas por Caetano anos
atrás. Por outro lado, dificilmente teria sido formulado sem o consentimento
tácito de Amílcar Cabral, um homem que o destino pusera à frente de um
movimento armado mas a quem o feitio predispunha às negociações.
Era a solução política que Spínola perseguia.
Caetano recusou. Mudara de ideias. Em 1972, considerava que, no quadro global da guerra em três territórios, a derrota militar na Guiné era preferível à negociações. O governo central não estava realmente disposto a modificar a sua política colonial, isto apesar do pretenso apoio e incentivo que deu a Spínola nas suas diligências, de que estava, obviamente, a par. Logo que chegou à fase de concretização do Plano, Marcelo Caetano proibiu a Spínola a continuação dos contactos e negociações com o argumento de que na Guiné se aceitava um desastre militar mas nunca uma cedência política.
Caetano recusou. Mudara de ideias. Em 1972, considerava que, no quadro global da guerra em três territórios, a derrota militar na Guiné era preferível à negociações. O governo central não estava realmente disposto a modificar a sua política colonial, isto apesar do pretenso apoio e incentivo que deu a Spínola nas suas diligências, de que estava, obviamente, a par. Logo que chegou à fase de concretização do Plano, Marcelo Caetano proibiu a Spínola a continuação dos contactos e negociações com o argumento de que na Guiné se aceitava um desastre militar mas nunca uma cedência política.
Face
a esta posição de intransigência e de cegueira política do governo português,
perdeu-se, ingloriamente, a última oportunidade de se poder negociar uma solução
política para a guerra da Guiné.
… Ao Marechal Spínola não restava outra solução
que não fosse a de continuar a guerra. Como tinha a plena consciência de que esta era uma solução antinacional, ia começar a
conspirar. Só restava uma alternativa: o derrube do governo que impunha uma
guerra desgastante e impossível de vencer…
Amílcar
Cabral foi assassinado em Janeiro de 1973. Depois da sua morte, o PAIGC
intensificou os ataques contra as forças portuguesas.
Numa
carta enviada a Caetano em Março de 1973, Spínola afirmava que a continuação de
ações exclusivamente militares levaria a um desastre semelhante ao que ocorrera
em Goa.
As
coisas estavam a correr mal às nossas tropas. As operações Nô Pincha, no norte do território e Amílcar Cabral, no sul desequilibraram a situação militar.
Começaram a ser utilizados mísseis terra-ar SAM-7 Strela, de fabrico soviético.
Em quinze dias, foram abatidos cinco aviões das FAP. Sem apoio aéreo, o moral
de oficiais e soldados portugueses foi-se abaixo. O PAIGC tomou a praça-forte
de Guilagé e apoderou-se de artilharia e de material de transmissões. Nesse
mesmo dia, Spínola pediu a exoneração das funções que desempenhava e informou o
ministro do Ultramar e o Chefe do Estado-Maior general das Forças Armadas,
General Costa Gomes, de que a derrota militar já não poderia ser evitada. A
ofensiva do PAIGC só foi interrompida pela chuva, a meio do ano. As derrotas
portuguesas sucediam-se umas às outras. Cabral triunfava, meio ano após a sua
morte.
a falta de estratégia do governo na altura ditou a derrota
ResponderEliminarmilitar o então general Spínola tinha razão e por esses erros
todos Portugal é hoje um Pais apagado. sem futuro