DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

CRÓNICAS DO MAR


O DOUTOR CANHÃO


Quando embarquei pela primeira vez no Gil Eannes, em Maio de 1970, deixei-me ficar encostado à amurada enquanto nos afastávamos lentamente de terra, como fazia toda a gente que não era necessária à manobra do navio. Avistei um homem baixo que teria pouco mais de cinquenta anos, um pouco distanciado do grupo de familiares e amigos que se despediam dos tripulantes. Mostrava no rosto uma expressão exagerada de melancolia, como se tivesse afivelado uma máscara de tragédia grega e se propusesse encarnar todo o abandono do cais.

Deitei-me a adivinhar:

- Aquele tipo está a despedir-se dele mesmo...

Tive oportunidade de o conhecer e de me tornar seu amigo, meio ano mais tarde.

Eu e o meu colega Manuel Barros Pereira éramos os únicos militares na frota, para além do comandante Gaspar, que desempenhava as funções de Capitão de Porto nos mares da Terra Nova e da Gronelândia. Entre viagens, fazíamos medicina de trabalho para os pescadores e tripulantes dos bacalhoeiros, nas instalações da Docapesca, em Pedrouços.

O Doutor Abílio Canhão trabalhava ali desde que deixara o mar, após vários anos a bordo do Gil Eannes. Era uma pessoa agradável. Tinha muitos dos pequenos defeitos e boa parte das grandes qualidades que matizam o espírito humano. Fumava, bebia e jogava. Era inteligente, culto e generoso.

Tenho dificuldade em alargar-me na descrição do passado do Doutor Canhão, homem que muito estimei. As minhas razões não são comuns. Vou expô-las com franqueza.

Há um quarto de século, escolhi-o para modelo de um personagem da minha primeira tentativa de romance. Modifiquei-lhe as feições e a história de vida. Conservei apenas a bonomia e a alegria de viver e de prevaricar que faziam parte da sua maneira de estar no mundo. O decorrer dos anos confundiu as recordações da pessoa real e do personagem de ficção e, às tantas, deixei de ser capaz de distinguir uma do outro. Os leitores que me perdoem, se puderem...

Lembro que me contou que, na sua juventude, era o menino bonito da família. Estudante aplicado, fez o Liceu com boas classificações e tirou o curso de Medicina sem conhecer dificuldades. Escolheu o mar por uma mistura de romantismo com a oportunidade de trabalho a aparecer na hora certa. Deixou-se depois ficar, em boa parte por inércia. Não chegou a casar. Ainda conheci, em St. John`s, uma antiga namorada dele.

Não sei durante quantos anos o doutor Canhão calcorreou o convés do Gil Eannes. Julgo que foram muitos. Com o tempo, a actualização profissional ficou um pouco descurada. Chega sempre uma altura para tudo, inclusive para deixar o mar. Provavelmente, começava a sentir-se velho. Depois, as tripulações da Marinha Mercante e de Pesca mudam muito. Não é fácil estabelecer amizades novas em cada ano que passa.

No regresso, estava fora das carreiras e pisava o chão de um País que via sempre com meio olhar de emigrante. Trabalhava também num posto da Caixa de Previdência e fintava como podia a severidade com que o Doutor Abreu Loureiro (pai) chefiava os serviços médicos da Docapesca.

Às vezes, apresentava-se ao trabalho com a roupa mal cuidada. Contava que ainda devia, não sei se ao irmão se ao cunhado, uns dinheiritos do automóvel em segunda mão. Comentava:

- Eu é que era o bom filho, o exemplo a seguir. Veja agora! Os outros prosperaram e eu ando por aqui...

E ria-se, pondo à mostra a falta de alguns dentes.

Conservou no sorriso, até que o perdi de vista, um resto de inocência infantil.

Recusava-se julgar os outros. Um dia perguntei-lhe se o Bernardo Santareno, com quem ele navegara durante um ano, era mesmo maricas. Respondeu-me de forma evasiva:

- Sabe, Trabulo! O Martinho era um homem atraente, com uma personalidade cativante. Encantava homens e mulheres...

Quando terminei o meu tempo de servidão militar, regressei aos hospitais.

Vieram dizer-me, algum tempo depois, que o meu amigo tinha morrido.

sábado, 18 de setembro de 2010

CRÓNICAS DO MAR


AS PRAGAS DOS NAZARENOS


Os pescadores de bacalhau eram provenientes de diversas povoações costeiras do continente português e também dos Açores. Noutro tempo, as mulheres vestiam-se de preto, à largada dos navios, e só retiravam o luto quando os seus homens regressavam. Eram "viúvas de vivos".

Ao rebentar a guerra colonial, os navios passaram a recrutar as companhas também no interior do País. Para escaparem à tropa, os rapazes embarcavam durante cinco viagens consecutivas ou seis intervaladas. Alguns nunca tinha visto o mar até à véspera do embarque.

Quando se fala em bacalhau há, contudo, terras que saltam logo para a ponta da língua: Ílhavo para os oficiais, Caxinas e Nazaré para os pescadores.
Os nazarenos constituíam um grupo com certa identidade. Dizia-se que, quando se viam em grande aflição no mar, em vez de lutarem até ao fim pela sobrevivência, se abraçavam uns aos outros, dizendo:

- Ao menos morremos juntos, meus irmãos!

Algumas das pragas inventadas na Nazaré correram mundo, a bordo das embarcações de pesca. Recordo umas tantas:

- Haviam de te nascer tantos cornos na testa quantos de ovos são precisos para partir a proa ao navio!

- Havias de encontrar no chão uma carteira cheia de dinheiro e, quando te baixasses para a apanhar, caía-te a caixa do peito!

- Havia de te dar uma dor que, quanto mais corresses mais te doesse e, se parasses, rebentavas!

- Que o mar seja fogo e o céu gasolina!
Nunca ouvi lançar uma praga de viva voz. Eram gentis e pacíficos os pescadores da Nazaré com quem naveguei.
Foto: net

domingo, 12 de setembro de 2010

CRÓNICAS DO MAR




A ALIMENTAÇÃO A BORDO DOS NAVIOS BACALHOEIROS








Comia-se bem, a bordo do Gil Eannes, no final da década de 60. As refeições dos oficiais consistiam em sopa, prato de peixe, prato de carne e sobremesa. O resto da tripulação não passava nada mal. Os navios de pesca tinha a vantagem de poderem recorrer ao peixe do dia.
Noutros tempos, não era assim. Nas viagens de longo curso, antes de existirem frigoríficos, a alimentação era sujeita a grandes limitações. Levava-se o que não se estragava: biscoitos, salgados e conservas. Ainda hoje, na Ilha Terceira, nos Açores, na costa oposta a Angra do Heroísmo, existe a povoação de Biscoito, que terá ganho o nome da provisão que ali iriam fazer os navios do largo.
Durante as travessias, raramente se podia pescar. A comida era um enjoo. Os navios costumavam levar galinhas e uma vaca, ou algumas cabras. Os animais ocupavam espaço e a comida deles também. Faziam muita porcaria e eram abatidos cedo. Quando se matavam, era uma festa, mas a carne tinha de ser consumida depressa, para não se estragar.
Ao passar ao largos dos Açores, rumo à Terra Nova, lá se apanhava alguma tartaruga, o que permitia fazer belas canjas. Uma vez por outra, arpoava-se um golfinho imprudente que se divertia a acompanhar a embarcação. Dizia-se que dava bons bifes de cebolada.
Consultemos uma lista de produtos alimentares embarcados para uma viagem de cerca de seis meses, num lugre de 30 pescadores, durante a década de 1920-1930:

40 barricas de farinha de trigo

18 barricas de carne de vaca salgada

50 Kg de carne de porco salgada

1350 Kg de batatas

1100 Kg de feijão seco encarnado e branco

150 Kg de feijão frade

150 Kg de grão de bico

100 Kg de arroz

100 Kg de açúcar

10 Kg de especiarias

90 Kg de banha

200 Kg de toucinho

60 Kg de café moído

5 Kg de chá

360 Kg de cebolas

Duas latas de chouriço

400 litros de azeite

200 l de vinagre

40 l de óleo para frituras

400 l de vinho

400 l de aguardente

8 fardos de bacalhau seco

120 garrafas de cerveja

12 garrafas de vinho do Porto


Não parece muito o chouriço... É curioso reparar que o número de litros de aguardente é igual ao de vinho.
Nos Bancos da Terra Nova, inventavam-se pratos a fingir carne, como o arroz de corações de bacalhau, mas as opções eram reduzidas. As cagarras, uma variedade de gaivotas, davam uma bela caldeirada, depois de passarem três dias em vinha de alho, para lhes tirar o sabor a peixe. As gaivotas espreitam a escala em grandes bandos, à espera dos restos. A sua pesca é cruel: isca-se o anzol com um pedaço de fígado de bacalhau e atira-se ao vento. Não se pode escolher quem vem ao isco e, às vezes, sacrificam-se gavinas e albatrozes.
A adaptação de motores aos navios de madeira iniciou-se no começo da década de 30. Durante bastante tempo, os lugres tiveram propulsão mista, à vela e a motor. Alguns passaram a dispor de frigoríficos para o isco e para as provisões dos tripulantes.
Ainda hoje o cozinheiro é o homem mais importante a bordo, a seguir ao capitão. Acima desse, só Deus, e mora longe... Sujeitos a uma vida de dureza extrema, a satisfação do estômago era das poucas que os pescadores iam conseguindo no dia a dia.












Fontes: Francisco Correia Marques. Em: Oceanos, nº 45, Janeiro/ Março 2001.




Foto do autor.