DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

                                  TRANCOSO


Trancoso é terra linda, de verão e de inverno. A parte velha da vila permanece entre muralhas e o coração das gentes continua a bater mais forte no interior do peito couraçado. No entanto, o casario extravasou há muito do castelo. Armando gostava de o comparar aos ovos de uma galinha gigantesca que, não cabendo já no ninho, se espalhassem no espaço em redor.
Maria Helena e Armando entraram por uma das portas amplas da fortificação e estacionaram o automóvel logo a seguir, junto à Câmara Municipal. 



    No largo fronteiro, a estátua do profeta parecia deslocada, no tempo e no lugar. A escultura era estranha. A figura nada tinha de sapateiro. Parecia antes um fidalgo baixote e bem trajado, como os viam os ilustradores de contos infantis. Bandarra não adivinhara que iria ter um monumento. Provavelmente, não gostaria de ser ver assim representado. Os artífices do couro e da sovela eram modestos, mas pareciam gente a valer.
Era fácil a Helena imaginar o homem subir ao banquinho de trabalho e recitar rimas coxas para quem o quisesse ouvir. Gonçalo Anes Bandarra previra uma sucessão de desgraças e, para os portugueses que sobrevivessem às tragédias que anunciava, o advir de nova era de glória e prosperidade. Morrera antes de nascer o rei cujo mito ajudara a construir.
Percorreram a pé uma rua com mais lojas que fregueses. Armando reparou num livro sobre as profecias do Bandarra, exposto na montra duma papelaria. Ombreava com uma biografia do padre Costa, o cidadão mais prolífico de Trancoso e talvez do País. Tivera cerca de 300 filhos de mais de cinquenta mulheres. Eram os dois best-sellers locais. Helena entrou para comprar o volume de trovas, ainda que achasse a capa demasiado vistosa. 


  Prosseguiram até ao largo onde se via a igreja de S. Pedro e o pelourinho de gaiola. Maria Helena foi tirando fotografias com a sua pequena máquina digital.
− O pelourinho é muito bonito – declarou Armando.
− Era neles que se administravam a primeira justiça – informou Maria Helena. Os presos eram ali amarrados e depois chicoteados, em público. Os liberais consideraram-nos símbolos da tirania e derrubaram uns tantos, por volta de 1834. Acontece o mesmo em muitas revoluções. Deita-se abaixo património cultural.
O templo ficava mesmo em frente. Armando comentou:
− Sabes? Nunca gostei muito das igrejas da minha terra. Acho que Trancoso merecia melhor.
Maria Helena não fez comentários. As críticas ficam melhor aos indígenas.
Deram a volta ao templo. Parecia fechado. Um pouco a medo, Helena carregou na alavanca da fechadura. A porta estava no trinco e abriu-se.
A campa do Bandarra ficava logo à entrada. Estava protegida por um vidro grosso que tinha sido colocado tarde demais. Os dizeres gravados na pedra já não se podiam ler. Uma placa, ao lado, substituía-os.

Aqui jaz Gonçaliannes Bandarra natural desta Villa que profitizou a restauração deste Reino, e que havia de ser no anno de seiscentos e quarenta por el Rey Dom João o quarto noso Senhor, que hoje Reina.


  A sepultura fora mandada fazer pelo Governador das Armas da Província da Beira em 1642. O profeta tinha morrido quase um século antes.
Pouca gente na terra se importava com as Trovas. Quase ninguém as lia. No entanto, a campa do sapateiro era ponto de passagem obrigatório dos circuitos turísticos.
Maria Helena olhou a pedra levantada e pareceu-lhe tão falsa como outras que conhecia. Que importava? Alguém queria saber do que dissera o sapateiro? Ficara-lhe a fama de adivinho. Espíritos ilustres, como Vieira e Pessoa, tinham procurado interpretar as suas quadras e dar-lhes sentidos novos. A seu ver, não tinham acrescentado glória aos próprios nomes.

Texto extraído do romance "O Túmulo de Camões", de António Trabulo

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

             

      PADRE JÚLIO GOMES

                 O HOMEM


                         António Moreirão

Natural de Almendra, nascido em 1871, o padre Júlio César Gomes descendia de uma família abastada e complementava uma prole numerosa: seis irmãos – quatro homens e duas mulheres.
Parafraseando, parcialmente, Sá de Miranda, tracemos o seu carácter:

        “Homem dum só parecer,
        De um só rosto e uma só fé,
        Tudo o mais pode ser,
        Mas frouxo e sem carácter é que não é.”

Este homem que amava Deus, que amava, ajudava e defendia os desditosos, ousou amar uma mulher: a filha do dono da casa onde se hospedara, quando nomeado pároco do Terrenho.
Um ano os separava na idade e o seu profundo e desmedido amor os uniu para a vida inteira.
Ela havia de ser encarcerada no seu próprio quarto, durante um ano, e ele transpôs a “Teja” e aquartelou em Moreira de Rei, sua nova paróquia.



Moreira de Rei havia de ser o Paraíso para os amores de Júlio e Carmina. Ela, sempre que podia, dava uma escapadela e aí se entregavam à grandeza e pureza dos seus amores sem limites.



Moreira acolheu, não hostilizou e beneficiou. Recebeu a inteligência e a capacidade de um homem superior que pôs todas as suas forças e influências – que haviam de ser muitas – ao serviço dos seus paroquianos, defendendo-os e orientando-os junto dos poderes públicos, onde era ouvido e se fazia ouvir… A eles se entregou, a todos defendeu, a todos ajudou e todos beneficiaram do seu lema: “Aos ricos nada levo porque são amigos – aos pobres nada levo por nada terem”.
Aplicando e desenvolvendo o seu espírito humanista, o padre Júlio, a breve trecho, se tornou a voz, o querer e o sentir das gentes de Moreira.
Entretanto, as visitas de Carmina são cada vez mais amiudadas e as presenças mais alongadas – presenças e ausências equilibram-se: mês cá, mês lá…
O Bispo impõe o corte cerce do relacionamento. O padre não cede. Sucedeu-se a suspensão do renitente, que durou dois meses. O Bispo, perante tão forte caráter, reconsiderou e recuou.
Os filhos sucedem-se: primeiro o varão, a que havia de chamar Hermínio, e que pouco tempo vivera (três ou quatro anos). Depois nasce a Carlota, que havia de morrer de parto, casada que foi com um professor. Do filho da infortunada Carlota havia de se ocupar, carinhosamente, sua avó Carmina. Mas a criança pouco tempo resistiu.
Mais novo que a Carlota apenas quatro anos, em 1913, nasce outro varão que, como o falecido irmão, se havia de chamar Hermínio. O por quê dos “Hermínios” deve encontrar-se na estima e admiração nutrida pelo padre Júlio em relação ao seu irmão doutor Hermínio Gomes, coronel médico.
E a Igreja, e o Bispo e o povo de Moreira de Rei… o que pensavam, como encaravam, como sentiam os amores inefáveis de Júlio e Carmina?
A Igreja, vencida – como noutros casos e muitos foram ao tempo – procurou ignorar, deixando que novos núcleos sociais (novas famílias), sã e claramente, nascessem, se desenvolvessem e multiplicassem… Era o devir, o devir natural…
O Bispo foi conquistado pela gentileza e simpatia da jovem Carlota, quando a Moreira se deslocou na preparação da Comunhão e aos seus préstimos se habituara e não mais os dispensara.



Quanto a Moreira de Rei, ainda se respira a lendária simpatia e admiração que os seus avós dedicavam ao seu padre e ao seu amigo. A simpatia e a sã convivência foram tais que a família Gomes deixou em Moreira mais de uma vintena de afilhados.
O último dos Gomes, o Hermínio Nunato, faleceu no Lar de Trancoso em 8 de Setembro de 1995. Foi o único sepultado em Trancoso, enquanto a restante família repousa no cemitério do Terrenho. Assim, o padre Júlio nem post mortem se separou de D. Carmina, a eterna companheira.
Fiquemos com a profunda e muitas vezes repetida frase do padre Júlio – situando-se no mundo e na vida – acerca dos seus amores: “ A Deus não me posso esconder – dos homens do mundo não me importo”.
Mas, para melhor conhecermos o homem, aludiremos a alguns episódios onde o seu timbre ficou bem patente. Assim, ao transpor a Teja, deixou para trás parte de uma paróquia – a Castanheira – a que não virou costas e onde se deslocava, sempre que a obrigação e a devoção por ele reclamavam.
É numa dessas deslocações à Castanheira que, no seu regresso, já noite dentro, uma espera lhe é feita – quiçá, contrapartida dos ousados amores… Porém o valente e corajoso padre Júlio não gostou do estorvo e desancou o primeiro, medindo-o um par de vezes com um varapau, seu companheiro das viagens noturnas.
Se um “viu estrelas, os outros viram relâmpagos” e, batendo com os calcanhares no rabo, deram às de Vila Diogo.
Muito ligado à família, era ele quem aconselhava e prestava auxílio aos pais, já idosos, até porque dos filhos era o que mais perto vivia. E, nesse contexto, consta em Almendra que o Conde, grande ricalhaço a tender para o usurpador, queria “apanhar” uns choupos, próximos de outros dele, ao pai do padre Júlio.
Ora, o pai Gomes escreveu uma carta ao filho, queixando-se das intenções e arremetidas do Conde. A resposta, num postal − para que o conteúdo pudesse ser alastrado e vulgarizado – foi peremptória, precisa e concisa: diga ao Conde que tenha juízo, porque senão vou aí, meto-lhe o dedo no cu e atiro-o para o telhado! O Conde, se não foi para o telhado, também não voltou a falar nos choupos.
É isso mesmo. Quem tem cu, tem medo!
Republicano e democrata fervoroso, acabou por estar ao lado de Afonso Costa – e contra a própria Igreja – no processo de laicização da sociedade, com a sua lei da separação da Igreja e do Estado – “novo quadro institucional e mental, centrado no respeito pela liberdade de consciência de cada um”.
Sabemos que o padre Júlio era inteligente, era valente…, mas também sabemos que não era incauto e, por isso mesmo, nesta agitação político-social (lutando ele abertamente contra o “statu quo ante”), astuciosamente se fazia acompanhar de duas pistolas que “religiosamente” entregava ao sacristão quando entrava na igreja, para “laicamente” as retomar quando dela saía.
Hoje falámos da forte personalidade e dos conturbados amores de um Homem que soube viver, para além do seu tempo e… de todos os tempos.



terça-feira, 17 de setembro de 2013

                             FOZ COA


Zé Arcanjo deu uma volta pela terra. Não era grande, mas tinha pontos de interesse. Iam passando automóveis, mas não se via muita gente a caminhar. A população era reduzida. Na véspera, fizera uma consulta rápida na Internet. A informação sobre o concelho era relativamente limitada. O vale do Coa e as gravuras rupestres chamavam mais as atenções do que a antiga Vila Nova. Ainda assim, pôde ler que, décadas atrás, algumas das suas dezassete freguesias tinham mais gente do que possuía agora a cidade. As pessoas fugiam do interior. Ou emigravam para França, ou se mudavam para mais perto, indo estabelecer-se na faixa costeira do País, onde era mais fácil conseguir emprego e governar a vida.


A Rua de São Miguel, pavimentada em calçada portuguesa, fora vedada ao trânsito. Era ladeada por casas de dois pisos, de idades e estilos de construção desiguais. Muitas apresentavam varandas salientes. As mais antigas tinham as esquadrias de portas e janelas em blocos de granito que o tempo acastanhara e conservavam nas varandas as proteções de ferro forjado. Algumas lojas conservavam os nomes antigos mas estavam encerradas. Eram efeitos da crise.


Zé Velasco caminhou durante alguns minutos e foi ter à Praça da República. Seguiu em frente até ao Largo do Município onde se tinham concentrado os antigos poderes do concelho: a administração, a cargo da Câmara Municipal, a direção espiritual, abrigada na igreja matriz e a Justiça, simbolizada pelo pelourinho.


A Câmara Municipal era um belo palacete do século XIX. 


    O pelourinho, em estilo manuelino, datava do século XVI. Era constituído uma coluna quadrangular encimada por um capitel complexo, decorado por quatro pináculos com escudetes, a rodear uma flor-de-lis.
Como outras, a igreja fora sendo alterada ao longo dos anos. 


De manuelino, conservava o belo pórtico, encimado pela imagem de Nossa Senhora do Pranto, ladeada por dois escudos reais e por um par de esferas armilares. 


     A rosácea era pequena, deixando adivinhar a penumbra no interior. O coroamento era de influência castelhana, com três ventanas abertas para os sinos, a fazer lembrar a proximidade da fronteira. A abraçar a bela fachada de granito, o reboco pintado de branco revestia as paredes do resto do templo.


Velasco entrou na igreja. As robustas colunas cilíndricas de granito tinham sido abaladas pelo terramoto de 1755. Resistiram, mas deixaram-se inclinar, sobretudo à direita e ao fundo. Pareciam fatigadas, como velhos funcionários públicos à espera da reforma. Aquela obliquidade insólita não chegava a meter medo, mas não tranquilizava os visitantes. Indiferentes às zangas do planeta, erguiam-se os altares barrocos, em talha dourada. O teto, de madeira pintada em tons que o tempo fizera escuros, retirava luz ao espaço de culto.

Texto adaptado do romance FÁTIMA, de António Trabulo, que aguarda publicação.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

                   SINCELO




                              António Moreirão

O sincelo deriva da cristalização de gotas de água extremamente ténues, ínfimas, só visíveis ao microscópio, que constituem o nevoeiro e assentam numa superfície sólida a temperatura negativa. Porém, para acontecer sincelo, é necessário que haja uma combinação especial, resultante da proporção adequada dos elementos “frio” e “nevoeiro”. Tem acontecido que logo que algum destes elementos se altera, o sincelo desaparece.


Dando um salto para a culinária, podemos fazer a analogia com o “ponto de rebuçado”. Para dada quantidade de açúcar deve existir determinada medida de água e vice-versa.



Como o meu amigo António Moreirão economizou no texto, achei por bem acrescentá-lo com uma nota tirada da Wikipedia.


    Sincelo é um fenómeno meteorológico que acontece em situações de nevoeiro aliado a uma temperatura de -2º C a -8º C e resulta do congelamento das gotas de água em suspensão, quando estas entram em contacto com a superfície. Quando sob um nevoeiro muito denso, pode produzir o mesmo efeito que uma nevada e ocorrer a precipitação de cristais de gelo em pleno nevoeiro, sem haver nuvens no céu. Não deve ser confundido com geada. A película de gelo forma-se em qualquer superfície que contacte com a neblina, dando às folhas e caules das árvores uma aparência vítrea.
  

As fotografias provém da Foto Arco-Íris, de Trancoso.

domingo, 15 de setembro de 2013


                                                   CAPÍTULO XIV



            No dia seguinte, quando passava pouco das nove, o som da campainha acordou toda a casa. No momento em que Mellie foi ver quem era, encontrou Nicole e Sebastien.
        − Vejo que já se conheceram. Entrem.
        Além dos agentes, encontrava-se lá também um homem fardado.
        − Este é Francis. É agente em Bordéus e eu sabia que ele queria vir para a cidade. Como ontem me disse para trazer alguém, decidi chamá-lo. Confio nele mais do que em ninguém. – Disse Nicole, apresentando-o sem grandes demoras.
        − Muito bem. Vou chamar o Joshua, para conhecerem a história dele e decidirem horários.
        Quando Joshua desceu, cumprimentaram-se. O rapaz contou a sua história e os motivos para precisar deles. Começou por falar da sua discussão com Marc seis anos antes dele falecer. Depois descreveu o seu rapto, as ameaças e as visões, seguido de como fugira do abrigo até chegar ali.
          Os agentes não sabiam o que dizer. Nunca tinham sabido daquela história e tinham ficado espantados como tanto acontecera a MacLarens em apenas três meses. Permaneceram os três calados até Nicole dizer:
        − A primeira coisa a fazermos é uma lista de quem tem acesso a todos os seus movimentos. Eu lamento dizer-lhe isto, mas tem de ser alguém perto de si. É a única maneira do assassino saber tudo isto.
        − Mas tem de ser alguém que também conhecesse Marc muito bem. – Interferiu Francis.
        − Ou então o assassino tem um espião. São as únicas hipóteses. – Concluiu Sebastien.
        − Todas as pessoas que me conhecem daqui, também conheceram Marc. Nessa lista, vão integrar-se todos, com poucas exceções. – Disse Joshua, interrompendo os pensamentos dos três agentes.
        − Tem razão. Mas temos de começar por algum lado. Todos os dessa enorme lista são suspeitos. Por isso, teremos de reduzi-la pelos álibis de todos os indivíduos. Assim, poderemos descartar os que estavam fora ou com testemunhas. – Declarou a agente.
        − Isso é muito inteligente. Por onde começamos?
        − Tem de ser alguém que tenha acesso a uma AFCC. O primeiro bilhete foi impresso numa impressora da empresa. Isso diminuirá a lista. – Disse MacLarens.
        − Tem razão. Mesmo assim, ainda temos todos os agentes, cientistas e guardas que conhecem a sua história e a de Marc. E não são assim tão poucos. – Proferiu Sebastien.
        − Por isso, é melhor começarmos já a reduzir a lista. Nicole, fique aqui, enquanto eu e Sebastien vamos à agência. Não é seguro o senhor MacLarens ficar sozinho. – Propôs Francis.
        E dito isto, os dois agentes saíram pela porta principal.
        − Preciso de ir trabalhar. Até logo. Vou com a Margaret e ela vai levar os rapazes a casa da Dionise. Ficas bem? – Perguntou Mellie, apesar de saber a resposta.
        − Sim, claro. Até logo. – Despediu-se.
        − Então, como é que conheceu a doutora? – Inquiriu Nicole, fazendo conversa.
        − Na AFCC. Fui lá levar um bilhete para ela examinar. Depois começámos a conversar e vimos que tínhamos muito em comum. – Mentiu MacLarens. Tinha receio que a agente não soubesse da sala secreta da catedral e não queria ter de inventar uma história para se redimir por isso aquela era a opção mais fácil. Conheceu Marc?
        − Sim. Eu fui agente dele durante o tempo em que ele esteve em Reims. Não nos conhecíamos muito bem, mas ele contava-me algumas coisas. Contou-me umas histórias de quando era pequeno, mas nunca falou em ter um irmão. – Respondeu Nicole.
        − É normal. Pelo que parece, ele só contou sobre mim a Margaret. Agora fiquei curioso. Que histórias é que ele lhe contou sobre a sua infância?
        − Assim, rapidamente, lembro-me de uma sobre um cachorro chamado Max que Marc tinha treinado, mas nunca fazia nada do que lhe mandavam. O seu irmão gostava muito dele e costumava contar várias histórias sobre o cão. Até que eu lhe disse para escrever um livro de contos sobre as aventuras dele e do seu cachorro. E foi essa a sua atividade diária em Reims. Depois, eu saí daquela sede e vim para o laboratório, nos arredores de Paris. Nunca soube se ele acabou o livro ou se o trouxe sequer para a cidade. – Explicou a mulher.

        − Eu lembro-me do Max. Ele e Marc eram os melhores amigos. Gostava muito de ler esses contos. Tanto eu como o meu irmão, implorávamos a nossos pais para ter um cachorro desde que me lembro. Até que nos anos de Marc, ele recebeu-o. Claro que os meus pais diziam que era dos dois, mas ele desde logo adotou o pequeno cão. – Contou MacLarens, deixando escorrer uma lágrima.
                             ANTÓNIO MOREIRÃO


Conheci o António Moreirão em Coimbra, no rescaldo da crise académica de 1962, em que ele teve uma participação assinalável. Como éramos ambos de Almendra, íamos conversando durante as férias de verão e tornámo-nos amigos.
O Moreirão pertencia a uma família em clara ascensão na terra. Apesar de ser dotado de uma inteligência bem acima da média, perdeu-se noutras andanças e nunca completou o curso de Direito.
Com alguma marca de ADN missionário nas veias, o António Moreirão empregou-se nas bibliotecas itinerantes da fundação Calouste Gulbenkian e calcorreou as estradas do Alto Douro e da Beira Alta a distribuir cultura. Nas paragens, sentava-se no chão da carrinha, frente a pequenos grupos de jovens ávidos de saber e improvisava pequenas palestras com tempero antissalazarista. Acabou por se fixar em Trancoso.
Lembro-me do tempo em que, à falta de melhores opositores, elegeu como inimigo de eleição o pároco da nossa aldeia e se divertiu a complicar-lhe a vida.
Já não testemunhei a sua amizade, em Almendra, com o padre Maximino (Max). Contou-me que chegou a ser seu treinador de futebol e lhe gritava das bancadas:
− Max! Mostra que és homem!


O padre Maximino Barbosa de Sousa aceitou candidatar-se a deputado pela UDP (União Democrática Popular) em 1976. Foi cobardemente assassinado à bomba, juntamente com a jovem Maria de Lurdes Correia, que seria sua aluna ou, como outros pretendem, sua namorada. O Ministério Público não foi capaz de apresentar provas que permitissem condenar os criminosos e os processos foram arquivados. O famoso cónego Melo, de Braga, cuja estátua polémica aguarda inauguração, consta da lista dos possíveis autores morais do crime. Alguns dos executantes estariam ligados a Trancoso.
Foi bom voltar a ver o Moreirão, após tantos anos de distanciamento. Envelhecemos ambos, mas o António mantém nos olhos espertos o brilho maroto da juventude. Não deixou que o tempo lhe tocasse na memória. É um depositário espantoso das histórias do passado da nossa Almendra natal e dos enredos da Trancoso contrabandista.
Tenho alguma ligação familiar a Trancoso. O meu pai foi ali chefe dos Correios meia dúzia de anos antes de eu nascer, enquanto ia fazendo o curso de Direito, como aluno voluntário, em Coimbra.

O António Moreirão ainda não sabe que dei o seu nome ao personagem principal do mais longo dos contos que escrevi até hoje: «O Geronte dos Mares».

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

                                                 ALMENDRA



  Os amigos que visitam este blogue com alguma regularidade têm certamente reparado no ritmo variável da publicação de novos artigos. Esclareço que não sofro de uma perturbação maníaco-depressiva da personalidade, com períodos alternados de sentimentos de exaltação e de minoração. O que se passa é que quando me empenho na escrita de livros, deixo os blogues para trás. A obra que estou a ultimar sobre Amílcar Cabral representou uma exceção, uma vez que foi sendo publicada em rascunho à medida que nascia. Terminei agora a revisão «grande» deste trabalho. Irá seguir-se um estágio na gaveta, para que possa madurar antes de receber os retoques finais.  
   O «Historinhas da Medicina» tem sido mais prejudicado pela minha falta de disponibilidade. Curiosamente, apesar de contar com pouco mais da quarta parte das 263 publicações do «De cá e de lá», tem visto o número de leitores crescer. As suas visitas representam já 40% do conjunto dos dois blogues, com a particularidade de a maioria provir do Brasil e incluir uma participação significativa de alguns países de língua espanhola da América Latina.
  Julgo que é tempo de dar mais atenção neste blogue à terra que me viu nascer.
 Aproveitando o reencontro com o meu conterrâneo e amigo de longa data António Moreirão, iremos publicar uma dúzia de pequenos artigos sobre Almendra e a região em que está inserida.
   Almendra é a maior freguesia do concelho de Foz Coa. Em anos recentes, Foz Coa deixou de ser «Vila Nova» para ser promovida a cidade enquanto   Almendra voltava a ser vila, como tinha sido durante mais de cinco séculos (desde 1298 até à reforma administrativa de Fontes Pereira de Melo, em 1855). São visíveis as ruínas da sua Câmara Municipal.
    A estação de Almendra, na extinta Linha do Douro, era a última antes da fronteira de Barca d`Alva. Da linha do caminho-de-ferro à vila vão 13 quilómetros de estrada serpenteante.




   Almendra é terra de amêndoa, azeitona e vinho. Em anos recentes, as suas terras voltaram a receber bacelos, uma prática interrompida pela praga de filoxera que devastou as vinhas portuguesas por volta de 1870. A conhecida marca de vinhos «Barca Velha» é produzida a partir de uvas produzidas nas terras de Almendra.