DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 29 de maio de 2021

 

                    OS MEUS LIVROS

 

       DIÁRIO DE SALAZAR

 

O terceiro livro que publiquei foi uma biografia escrita em forma de diário.  Conheceu um sucesso editorial retumbante. Tornou-se um best-seller, tendo esgotado 10 edições de mil exemplares. Ajudou a pôr na moda os escritos sobre a vida do velho ditador.

À exceção de dois prémios literários que recebi com componente pecuniária, foi o único dos meus livros que deu lucro. Pagou, a mim e à minha mulher, duas semanas de férias, primeiro na Índia e depois na Birmânia.

 


     Salazar não redigiu um diário, mas deixou muitos escritos. Escolhi uns tantos e fui-os dispondo ao longo destas páginas. Trunquei-os, sempre me pareceu conveniente, e procedi às alterações pontuais necessárias para dar ao trabalho uma certa uniformidade. Tentei não falsear o essencial do conteúdo e procurei o homem escondido atrás das palavras.

  Construí este livro como quem monta um puzzle. Faltando peças, inventei-as. Assinalei em itálico os textos de Oliveira Salazar e as referências colhidas diretamente das fontes bibliográficas indicadas no final.

 

Referências:

O DIÁRIO DE SALAZAR

Parceria A. M. Pereira, 2004.

 


domingo, 16 de maio de 2021

                                                       
                                                 
                             OS MEUS LIVROS
                


           O segundo livro que publiquei não é da minha autoria. 

           Limitei-me a selecionar e a adaptar contos tradicionais 

           angolanos. Intitulei-o "No tempo do Caparandanda".  

           Usava-se o termo,  em  Sá da Bandeira,  para  referir

           acontecimentos  passados  há  muito  tempo. Tanto

           esta  obra  como  a  a precedente obtiveram o patrocínio 

           do Instituto Português do Livro. A edição é de 2004.




Graças ao esforço de um punhado de etnólogos, entre os quais será justo destacar Héli Chatelain, Carlos Estermann, e Alfredo Hauenstein, dispomos de uma recolha apreciável de histórias, provérbios, lendas e canções, que constituem o tesouro literário dos povos de Angola.

Esta literatura, muito rica, é pouco conhecida entre nós. A maior parte dos textos está apenas ao alcance de especialistas. Iniciativas com as de Pires de Lima, que orientou a edição portuguesa da obra de Héli Chatelain, ou de Viale Moutinho, que apadrinhou a publicação de parte destes contos “traduzidos” para português moderno, não tiveram continuidade suficiente. 

Mitos e fábulas podem ser agrupados de forma diversa. São numerosas as histórias protagonizadas por animais. Muitas narrativas falam de monstros ou papões comedores de gente, enquanto que outras descrevem episódios da vida diária. Os contos que contêm elementos mitológicos são menos frequentes. É comum, em todos os géneros, a presença de ensinamentos morais.

Os investigadores registaram as palavras dos narradores. Nota-se, nesses escritos, a preocupação da objectividade e do rigor, estranhos afinal ao processo de contar histórias. As recolhas foram levadas a cabo antes da divulgação das máquinas de filmar. Não foi possível fixar os gestos nem a mímica. Menos se poderiam guardar as inflexões e as mudanças do enredo proporcionadas pela reacção da assistência ou moduladas pela disposição do contador. O acto de contar é criativo…

As vozes guardadas arrefecem. Os contos, para reviverem, devem ser recontados.

Foi o que procurei fazer. O objectivo do presente trabalho é divulgar uma escolha de contos angolanos tradicionais, narrando-os de forma adaptada ao jeito europeu. Tentei não modificar o essencial das histórias e respeitei as linhas gerais do texto. Fiz uso, aqui e ali, da liberdade permitida aos contadores.

A divulgação do património cultural específico de cada povo ou região poderá contribuir para desenvolver um sentimento de pertença mútua entre as populações dos países de língua oficial portuguesa.

Quem olhou por dentro dois mundos goza de um estranho privilégio: por mais desfocada que a visão tenha sido, apreciada do fundo da memória aparecerá sempre como a soma de dois faróis.




         

         

        Anos mais tarde (2018), o livro foi também 

publicado on line com o título “Contos Tradicionais 

angolanos”.

        A capa baseia-se na lindíssima pintura 

 "Mucancala” da Maria Antónia Neuparth.





Referências:


Europress 2004


Kindle (Amazon) 2018


 


segunda-feira, 10 de maio de 2021

 

                                      OS MEUS LIVROS


     Publiquei o meu primeiro livro no ano de 2003. 

Tratava-se de um conjunto de contos a que chamei 

          MULEMBA - CONTOS DE ÁFRICA.

     Deixo-vos aqui o preâmbulo.



 Os contos que vos trago foram vividos há anos. Não sei ao certo quantos: oito ou nove dezenas talvez. A história entre os pobres é curta. Como nada se escreve, ficam poucas certezas. Para que se não varresse tudo da lembrança colectiva, criaram-se as lendas. 

Nem sempre o que relato se passou. Falo também de coisas inventadas. Dar-vos-ei a conhecer N`Gongo, do povo da ilha e Munkhete, que foi banido dos cuancalas. Ireis ouvir falar de novos e de velhos, de pastores e de ferreiros, de mulheres e de crianças, mas encontrareis pouca gente feliz. É que Pamba, ao criar o homem, deu-lhe por sina procurar a felicidade como se estivesse próxima e só dar por ela depois de a ter perdido.             

Antes do avô do meu avô, existiu N`Zungui. Era um grande caçador.

Morava longe daqui, nos planaltos de Angola. Não, nunca lá estive. Falo apenas do que ouvi.

 A terra já se fartou de dar voltas ao sol  desde esse tempo. Tantas, que até a vossa pele esqueceu a cor antiga. Estranham o que digo?  Não  admira. Pouca gente se interessa por essas coisas. Quase ninguém se abeira de um passado que pode ser um bocadinho incómodo. Pensem no rio Sado, que corre ali em frente. Para ele ser o que é,  juntaram-se vários ribeiros. Atrás deles houve regatos que foram misturando as águas. Umas eram claras e outras mais escuras. No nosso sangue também se entroncaram diversos caminhos. Um deles conduz a África. Deixou marcas bem vivas nas feições da tia Quitina.

Antigamente era ela quem se encarregava das narrativas.  Parece-me que a estou a ver, gorda, meiga e prazenteira. O riso abria-lhe os beiços grossos e punha-lhe os dentes a brilhar.

Com gestos vivos ia representando as cenas que descrevia. Canjala, a menina má,  Chipandeca, o mestre-ferreiro e Nsanda, o conquistador, desfilavam em palcos novos. A tia chamava-os e enchia-nos as noites de fantasia. Ao falar,  entusiasmava-se tanto que até a alma lhe reluzia. Os personagens a que voltava a dar vida ficavam mais ágeis e mais espertos de cada vez que eram lembrados. Alguns, porque os maus pareciam tornar-se ainda mais ruins...

 Apercebi-me, a determinada  altura, de que as histórias iam mudando.  Quitina respeitava o essencial das narrativas mas acrescentava-lhes factos inéditos. Se era verdade o que contava?  Passava logo a ser... A tradição não lhe bastava. Pode-se pular por cima de quase todas as barreiras...

A imaginação permitia-lhe preencher prontamente qualquer lapso de memória. Nunca se atrapalhava nem perdia o fio à meada. Não devem existir hiatos nas descrições, para além dos silêncios preciosos que chegam a valer mais do que as palavras. Um bom contador não gagueja nem hesita. O que há de mágico, o que se avizinha do sagrado numa lenda, pode escapar-se de vez.

No dia em que a nossa tia morreu, fugi para o campo e chorei sozinho.

Ela mimava-me de forma especial. Parecia esperar qualquer coisa de mim. Demorei muito tempo até saber do que tratava.

É que eu era o seu herdeiro.  Não de bens materiais  que  poucos tinha.  Deixou-me o testemunho. Ainda o transporto.

Nem é pesado. Sou agora o narrador da família. Trata-se de conservar uma luzita acesa. A candeia gasta pouco azeite...

Devo alimentar algumas raízes pequenas para que o tronco, que somos nós, saiba de onde vem. Não é apenas para vos entreter que falo tanto. É que os antigos só morrem de vez pelo esquecimento. Sem antepassados ficamos perdidos no mundo. Nunca mais há uma árvore a que possamos verdadeiramente chamar nossa.

O orador interrompeu-se. As crianças dormiam. Reparou que ainda nem dera início à história preparada. Bem, ficava para o dia seguinte...

Desenhou-se-lhe no rosto um sorriso temperado por uma ponta de amargura. Estava a ficar velho. Perdia-se nos preâmbulos e tardava em chegar às cenas de acção. Começava a apreciar mais os prefácios do que os enredos.

Tinha de estar atento. Assim não era possível entusiasmar os miúdos e atá--los ao passado.

Não tinha sono. Agasalhou-se e saiu para a beira- rio.

Umas dezenas de metros a Norte o casario caiava-se de luar. A dois passos começava a placidez do Sado. A maré vazara e as palafitas entrelaçavam membros e costelas numa solidariedade triste que parecia emergir do fundo da água e do tempo. Lá em baixo, as embarcações de madeira sossegavam na lama.

Um insecto zuniu-lhe junto ao rosto. Afastou-o com um gesto brusco. Por causa dos mosquitos e das sezões, um grupo de trabalhadores negros fora instalado em Alcácer do Sal algumas gerações atrás. Resistiam melhor do que os indígenas ao paludismo e davam mais rendimento nos trabalhos do arroz.

Com o tempo, tinham-se diluindo na população local. Restavam tons bronzeados de pele, alguns traços fisionómicos dispersos e poucas histórias. Cabia-lhe fazer perdurar algumas delas, para que os caminhos que conduziam ao passado se não apagassem de vez.

A lembrança da tia Quitina chegou-lhe com muito vigor. Na sua voz caminhava N´Zungui, com a vida presa por um fio de palavras. O antepassado tivera um destino invulgar. De outro modo ninguém o lembraria.

Tentava às vezes situar-se no mundo do Caçador. Haveria alguma parecença entre os campos que ele  palmilhara e os arrozais de Alcácer? Os rios de lá pulsariam também com as marés? Como seria uma terra sem lareiras nem enchidos? E os aromas? Ouvira dizer que os portos de África se podem reconhecer de olhos vendados, apenas pela vivacidade dos odores. Amargurou-se. Os cheiros não se podem imaginar...  Saber tão pouco tornava-o inseguro. Receava que os relatos lhe soassem a falso.

Olhou em volta. A Sul estava tudo escuro. As luzitas de Angola tinham-se apagado há muito. Não conhecia ninguém que o pudesse ajudar.

Encolheu os ombros. Pouco se afastara de casa. A noite estava húmida. Encetou o caminho de regresso.

Deu  uma  espreitadela às crianças, despiu-se e meteu-se na cama. Adormeceu rapidamente. Julgou não ter sonhado, mas N`Zungui caçava por perto.


Referência: Europress