DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

 

                                      OS MEUS LIVROS


     Publiquei o meu primeiro livro no ano de 2003. 

Tratava-se de um conjunto de contos a que chamei 

          MULEMBA - CONTOS DE ÁFRICA.

     Deixo-vos aqui o preâmbulo.



 Os contos que vos trago foram vividos há anos. Não sei ao certo quantos: oito ou nove dezenas talvez. A história entre os pobres é curta. Como nada se escreve, ficam poucas certezas. Para que se não varresse tudo da lembrança colectiva, criaram-se as lendas. 

Nem sempre o que relato se passou. Falo também de coisas inventadas. Dar-vos-ei a conhecer N`Gongo, do povo da ilha e Munkhete, que foi banido dos cuancalas. Ireis ouvir falar de novos e de velhos, de pastores e de ferreiros, de mulheres e de crianças, mas encontrareis pouca gente feliz. É que Pamba, ao criar o homem, deu-lhe por sina procurar a felicidade como se estivesse próxima e só dar por ela depois de a ter perdido.             

Antes do avô do meu avô, existiu N`Zungui. Era um grande caçador.

Morava longe daqui, nos planaltos de Angola. Não, nunca lá estive. Falo apenas do que ouvi.

 A terra já se fartou de dar voltas ao sol  desde esse tempo. Tantas, que até a vossa pele esqueceu a cor antiga. Estranham o que digo?  Não  admira. Pouca gente se interessa por essas coisas. Quase ninguém se abeira de um passado que pode ser um bocadinho incómodo. Pensem no rio Sado, que corre ali em frente. Para ele ser o que é,  juntaram-se vários ribeiros. Atrás deles houve regatos que foram misturando as águas. Umas eram claras e outras mais escuras. No nosso sangue também se entroncaram diversos caminhos. Um deles conduz a África. Deixou marcas bem vivas nas feições da tia Quitina.

Antigamente era ela quem se encarregava das narrativas.  Parece-me que a estou a ver, gorda, meiga e prazenteira. O riso abria-lhe os beiços grossos e punha-lhe os dentes a brilhar.

Com gestos vivos ia representando as cenas que descrevia. Canjala, a menina má,  Chipandeca, o mestre-ferreiro e Nsanda, o conquistador, desfilavam em palcos novos. A tia chamava-os e enchia-nos as noites de fantasia. Ao falar,  entusiasmava-se tanto que até a alma lhe reluzia. Os personagens a que voltava a dar vida ficavam mais ágeis e mais espertos de cada vez que eram lembrados. Alguns, porque os maus pareciam tornar-se ainda mais ruins...

 Apercebi-me, a determinada  altura, de que as histórias iam mudando.  Quitina respeitava o essencial das narrativas mas acrescentava-lhes factos inéditos. Se era verdade o que contava?  Passava logo a ser... A tradição não lhe bastava. Pode-se pular por cima de quase todas as barreiras...

A imaginação permitia-lhe preencher prontamente qualquer lapso de memória. Nunca se atrapalhava nem perdia o fio à meada. Não devem existir hiatos nas descrições, para além dos silêncios preciosos que chegam a valer mais do que as palavras. Um bom contador não gagueja nem hesita. O que há de mágico, o que se avizinha do sagrado numa lenda, pode escapar-se de vez.

No dia em que a nossa tia morreu, fugi para o campo e chorei sozinho.

Ela mimava-me de forma especial. Parecia esperar qualquer coisa de mim. Demorei muito tempo até saber do que tratava.

É que eu era o seu herdeiro.  Não de bens materiais  que  poucos tinha.  Deixou-me o testemunho. Ainda o transporto.

Nem é pesado. Sou agora o narrador da família. Trata-se de conservar uma luzita acesa. A candeia gasta pouco azeite...

Devo alimentar algumas raízes pequenas para que o tronco, que somos nós, saiba de onde vem. Não é apenas para vos entreter que falo tanto. É que os antigos só morrem de vez pelo esquecimento. Sem antepassados ficamos perdidos no mundo. Nunca mais há uma árvore a que possamos verdadeiramente chamar nossa.

O orador interrompeu-se. As crianças dormiam. Reparou que ainda nem dera início à história preparada. Bem, ficava para o dia seguinte...

Desenhou-se-lhe no rosto um sorriso temperado por uma ponta de amargura. Estava a ficar velho. Perdia-se nos preâmbulos e tardava em chegar às cenas de acção. Começava a apreciar mais os prefácios do que os enredos.

Tinha de estar atento. Assim não era possível entusiasmar os miúdos e atá--los ao passado.

Não tinha sono. Agasalhou-se e saiu para a beira- rio.

Umas dezenas de metros a Norte o casario caiava-se de luar. A dois passos começava a placidez do Sado. A maré vazara e as palafitas entrelaçavam membros e costelas numa solidariedade triste que parecia emergir do fundo da água e do tempo. Lá em baixo, as embarcações de madeira sossegavam na lama.

Um insecto zuniu-lhe junto ao rosto. Afastou-o com um gesto brusco. Por causa dos mosquitos e das sezões, um grupo de trabalhadores negros fora instalado em Alcácer do Sal algumas gerações atrás. Resistiam melhor do que os indígenas ao paludismo e davam mais rendimento nos trabalhos do arroz.

Com o tempo, tinham-se diluindo na população local. Restavam tons bronzeados de pele, alguns traços fisionómicos dispersos e poucas histórias. Cabia-lhe fazer perdurar algumas delas, para que os caminhos que conduziam ao passado se não apagassem de vez.

A lembrança da tia Quitina chegou-lhe com muito vigor. Na sua voz caminhava N´Zungui, com a vida presa por um fio de palavras. O antepassado tivera um destino invulgar. De outro modo ninguém o lembraria.

Tentava às vezes situar-se no mundo do Caçador. Haveria alguma parecença entre os campos que ele  palmilhara e os arrozais de Alcácer? Os rios de lá pulsariam também com as marés? Como seria uma terra sem lareiras nem enchidos? E os aromas? Ouvira dizer que os portos de África se podem reconhecer de olhos vendados, apenas pela vivacidade dos odores. Amargurou-se. Os cheiros não se podem imaginar...  Saber tão pouco tornava-o inseguro. Receava que os relatos lhe soassem a falso.

Olhou em volta. A Sul estava tudo escuro. As luzitas de Angola tinham-se apagado há muito. Não conhecia ninguém que o pudesse ajudar.

Encolheu os ombros. Pouco se afastara de casa. A noite estava húmida. Encetou o caminho de regresso.

Deu  uma  espreitadela às crianças, despiu-se e meteu-se na cama. Adormeceu rapidamente. Julgou não ter sonhado, mas N`Zungui caçava por perto.


Referência: Europress 

 

 


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