DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 5 de dezembro de 2010

SIDÓNIO PAIS


Na noite de 5 de Dezembro de 1917, aproveitando a deslocação de Afonso Costa ao estrangeiro, Sidónio Pais, apoiado pelo jovem tenente Teófilo Duarte, entrou na Escola de Guerra e no Quartel de Artilharia 1. Reuniu 1.500 homens e fê-los acampar na Rotunda, ao fundo do Parque Eduardo VII.
Diz-se que uma das companhias se juntou à revolta apenas para não embarcar para a Flandres. Ouviram-se gritos:
- Abaixo a guerra! Nem mais um homem para a guerra!
Tacticamente, repetia-se o 5 de Outubro, com poucos oficiais (quase todos cadetes e alferes), abundância relativa de peças de artilharia e ocupação de um ponto estratégico de Lisboa.
A marinha posicionou-se do lado do governo e alguns navios abriram fogo sobre a Rotunda. Sidónio Pais tinha em especial atenção o Gil Eannes. O segundo comandante era o seu irmão António Pais.
O Guadiana mostrava-se demasiado certeiro na pontaria. O capitão Cameira dirigiu-se aos seus artilheiros:
- Dou uma libra de ouro a quem meter uma granada no Guadiana!
O sargento Andrade afinou a sua peça e acertou em cheio por três vezes.
As coisas estavam a correr bem aos revoltosos.
As tropas governamentais atacaram os rebeldes apenas na manhã do dia 7. Eram cerca de 1.200 homens, entre marinheiros e soldados da Guarda Republicana e da Guarda Fiscal.
A luta foi curta. Boa parte dos oficiais democráticos leais a Costa encontrava-se na Flandres. À semelhança de 1910, a vantagem dos revoltosos em canhões decidiu o combate.
A maioria dos sindicalistas manteve-se neutral. Os lisboetas encolheram os ombros. Houve quem aproveitasse a confusão causada pelos combates para saquear uma vez mais as lojas da cidade.
No dia seguinte, o governo demitiu-se. Quando Afonso Costa regressou a Portugal, foi preso. A populaça de Lisboa, que antes o havia carregado em ombros, assaltou-lhe a casa e lançou-lhe os móveis pelas janelas. As residências de Norton de Matos e de Leote do Rego foram também vandalizadas.
Depois de passar algum tempo na prisão, Costa exilou-se em França. Sentia-se atraiçoado pelos seus. Até ao fim da vida, iria passar poucos dias em Portugal.


Imagens: Internet


Também publicado em Milhafre.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

OS MEUS LIVROS






Pelos sessenta anos, publiquei o meu primeiro livro. Chamei-lhe MULEMBA, CONTOS DE ÁFRICA (Editora Europress, 2003). Contém algumas das páginas que, até hoje, mais gostei de escrever. Contos como "Máscaras" encontram-se entre os texto que revisito com alegria.






Seguiu-se
NO TEMPO DO CAPARANDANDA (Europress, 2004).
É uma colectânea de contos tradicionais angolanos que seleccionei e adaptei. Escolhi, entre aqueles a que tive acesso, os menos divulgados. Pensei que os jovens intelectuais de Luanda se iam interessar pelas próprias raízes. Enganei-me, pelo menos até ver.








O DIÁRIO DE SALAZAR ( Parceria AMP, 2004) foi o terceiro volume editado. Está escrito na primeira pessoa. Procurei e julgo ter conseguido algum mimetismo com a escrita do ditador. Houve quem confundisse as sentenças de Salazar com as minhas. O livro conheceu 10 edições e contribuiu para a "moda" das publicações sobre o Estado Novo.








EU, CAMILLO (Parceria AMP, 2006) veio a seguir. Escrito na primeira pessoa, como o anterior, constitui uma homenagem ao romancista português que mais admiro. Trata-se, a meu ver, de um trabalho bem conseguido. Ainda assim, o seu percurso no mercado revelou-se uma desilusão. Aparentemente, desde que Camilo Castelo Branco deixou de ser estudado nos liceus, parece ter-se distanciado do gosto e do conhecimento das novas gerações de leitores. Pode ser que a adaptação ao cinema das suas obras lhe devolva o lugar que merece nas preferências dos nossos compatriotas.






Iniciei depois, de forma intervalada, uma série de três romances com base na nossa História colonial. Centrei-os na cidade onde cresci (Sá da Bandeira, também chamada Lubango, situada no Sudoeste de Angola). Comecei com OS COLONOS (Esfera do Caos, 2007), em que descrevo a fundação e o crescimento da cidade.








A série foi interrompida pela escrita de A ÚLTIMA PROFECIA (Editorial Cristo Negro, 2007), uma novela fantástica com sabor policial, criada a partir da História dos judeus ibéricos. O mais sagrado dos símbolos da religião de Moisés é resguardado pelos marranos e conduzido pela Armada de Cabral até à praias brasileiras.










Em OS RETORNADOS - O ADEUS A ÁFRICA (Editorial Cristo Negro, 2009), narrei, de forma que julgo descomplexada e, tanto quanto possível, objectiva, o regresso apressado dos portugueses de África e a penosa adaptação ao velho Portugal. O romance foi galardoado com o Prémio Serpis Fialho de Almeida da SOPEAM, para obras publicadas em 2009.





A trilogia projectada voltou a ser interrompida com a publicação de 1910 ( Editorial Cristo Negro, 2009), um romance histórico sobre os últimos tempos da Monarquia e a implantação da República. Bernardo Soares e Alberto Caeiro, que Pessoa fez viver naquele tempo, habitam as páginas do livro.










Chegou, finalmente, a vez de LUBANGO (Editorial Cristo Negro, 2010). Impregnado de referências auto-biográficas, fala de "estar" e retrata certo modo português de ser colono. Encerrei, deste modo, a trilogia.

Com REPÚBLICA, LUZ E SOMBRA (Parceria AMP, 2010), dei continuidade a 1910. Morrem alguns personagens e surgem outros mas, no essencial, o livro prolonga o anterior e conta uma história de amor ao longo dos anos conturbados que vão de 1911 a 1926. Fernando Pessoa mantém-se bem presente nesta obra.






















E já são 10 os livros editados!

Não tenciono ficar por aqui. O DIA EM QUE DEUS COMEÇOU A DESMONTAR O MUNDO está pronto. A capa já foi esboçada... A sua escrita entusiasmou-me. É quase uma longa parábola. Mostra duas visões paralelas e quase sempre antagónicas do processo colonial. Uma é a de um alter ego do padre Carlos Estermann, missionário e etnógrafo de grande valor. A outra é a de um pequeno demónio da mitologia angolana. Conto publicá-lo no começo do próximo ano.




































sexta-feira, 12 de novembro de 2010

UM "BILHETE" DE AGOSTINHO DA SILVA



Este é um dos "Bilhetes" que George Agostinho da Silva fez publicar no jornal "África" entre Julho e Setembro de 1990. Escolhi-o por falar do tempo em que o filósofo viveu em Barca d`Alva.
A Barca é a última estação do caminho de ferro da Linha do Douro. Estudei em Coimbra, na década de 60, e passava a Páscoa e as férias grandes em casa da minha avó, em Almendra, a estação penúltima. Viajava sempre de comboio. Barca d`Alva ficava para além e ganhava o encanto do desconhecido. Lembro-me de pensar e de dizer que tinha o nome mais bonito das terras de Portugal. Visitei-a, pela primeira vez, muitos anos depois.



Tive a grande sorte de nascer no Porto e posso então dizer que sou, por naturalidade e por natureza, perfeitamente republicano quando se trata de delegar em outros, mais competentes do que eu por isto ou por aquilo, os poderes que eu próprio tenho.Mas na vida tenho eu encontrado gente muito superior a mim e a ela podia ter confiado o encargo de me dirigir no proceder, poupando-me muitas das tolices que tenho cometido; bastaria citar professores como Teixeira Rêgo, Leonardo ou Pires Lima ou mestres como Sérgio e, no Brasil, Lauro Travassos, mas logo de princípio tive como perfeita guia minha avó materna, viúva de pescador de Olhão; e aí, como não se tratou de delegar poderes, mas de os reconhecer como bem mais acima do que eu e de os seguir, fui, e ainda sou, monárquico; no que sou o que foram os portugueses dos melhores tempos, monárquicos quanto ao superior, republicanos quanto ao igual, tomando ainda a precaução de apreciar o candidato a rei antes de o reconhecer como tal e de o pôr de parte sem cerimónias quando ele se revelava incompetente para a missão. Seja como for, não fui crescendo no Porto, mas me levaram os destinos, ou a liberdade de criar, que é o fundamental do mundo, para a Barca d`Alva, dura aldeia naqueles princípios de século e nela aprendi a conhecer o Povo de Portugal, e alguma coisa do de Espanha, e me lembro muito bem do que ia acima de tudo que hoje se apelida de cultura a daqueles analfabetos, cultura humana que é a que importa, firme nos ideais e objectiva na vida, bem para lá daquele saber que com cultura se confunde e que pode estar mais completo nos livros e nas fitas gravadas - e que é em grande parte a cultura de tantos europeus, ou melhor, «ceéeus», tão privados de humanidade que já nem sabem ter filhos. Pois do que também me lembro muito bem, daqueles três anos da Barca, é da morte de minha primeira irmã, logo a seguir a mim, aquela Estrela Estefânia, que nunca andou, que nunca vi alegre, afinal nunca me apareceu senão que em braços embalada para morrer. Aldeia de matar, a Barca. Pois hoje a mesma terra, ligada a Trás-os-Montes por ponte acho que de Edgard, mas nem o comboio que levava viajante para Salamanca ou Lourdes tem desde há muito um Douro navegável do Porto à fronteira, o que dá a Castela, ou a Leão-Castela, como quiserem, um porto de mar uns 200 quilómetros mais perto do que seria, por exemplo, o Santander no Cantábrico. E vede só: o que me acontece é que, estranhamente mas profundamente, ligo a chegada do transporte fluvial ao cais da Barca àquele não poder de vida que foi o de Estrelinha como se, morta para nós, tivesse vivido mais que inteira para outra vida, a de conseguir que mais crianças do interior não fossem as vítimas que ela foi; passou a Barca de aldeia que mata a aldeia que dá vida e anima, como deviam ser, e são, todas as aldeias de Portugal; ou todas as aldeias do mundo, se plenamente nos cumprirmos nós das nossas.

Comentários, não estou à altura de os fazer. Tiro o chapéu a mestre Agostinho e agradeço ao meu amigo Leston Bandeira, que dirigiu galhardamente o jornal "África" durante cerca de 10 anos, a preservação dos textos que tencionamos publicar brevemente em forma de livro.

Fontes: Jornal "África", 22.8.1990.
Fotografia de Agostinho da Silva: Internet.
Fotografia do rio Douro junto a Barca d`Alva: autor.

domingo, 7 de novembro de 2010

AO MAR NÃO VOLTO!


Rosna o mar,

o lobo turvo,

bem me chama

"companheiro"...

Se a nortada

me procura,

busca em vão.


Virei costas

ao Império,

deixei a nau

encalhar.

Rizei panos

à lembrança,

vou cambar.


Se, nas ondas

do meu sangue

der à praia

um lenho velho


hei-de enterrá-lo na areia!

Ao mar, não volto!

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

PRAIA



Breve, a praia some,


como os dias.


Maré cheia!


Parecia longa a vida


e resta pouca areia...

terça-feira, 2 de novembro de 2010

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

A NOITE SANGRENTA


Em Outubro de 1921, os arruaceiros democráticos da Baixa juntaram-se aos sindicalistas e aos liberatistas da GNR numa conspiração contra o governo conservador de António Granjo. Não dispondo de chefes respeitados, apelaram a vários líderes republicanos para se colocarem à frente do movimento. Não tiveram êxito. Mesmo assim, a 19 de Outubro, a GNR e a Marinha revoltaram-se. O Exército não tomou partido.
António Granjo não tinha quem o defendesse. Ao fim da tarde, temendo pela sua vida, pediu protecção a Cunha Leal, um dos seus adversários. O jovem dirigente direitista acolheu-o com galhardia. Foi mesmo ferido, quando um grupo de marinheiros lhe entrou em casa e arrastou para a rua o chefe do governo.
Informaram Granjo de que ia ser conduzido para o cruzador Vasco da Gama, mas a viagem foi mais curta. No Arsenal da Marinha, o primeiro-ministro foi assassinado, a tiro e a golpes de baioneta.
Nessa mesma noite foram colhidas as vidas de José Carlos da Maia e de Machado Santos.
Santos morava na Rua José Estêvão, no Bairro da Estefânia. Foi acordado às duas da manhã por um toque de campainha. A esposa atendeu, enquanto ele se vestia. A senhora perguntou quem era, sem abrir a porta.
- Marinheiros - responderam-lhe. Viemos buscar o Sr. Machado Santos!
- Mas ele não se encontra em Lisboa... - Tentou a mulher iludir os militares.
- Sabemos que está em casa.. Ou abre, ou arrombamos a porta!
Foi disparado um tiro no patamar.
Machado Santos lá apareceu. Deparou com um grupo de marinheiros que lhe apontavam espingardas.
- Que querem de mim?
- Temos ordens de o levar para o Arsenal. O capitão Procópio de Freitas quer falar consigo.
- Se quer falar comigo, que venha cá! Eu sou mais graduado do que ele...
- Se não vem a bem, vai à força!
Era inútil tentar resistir. Machado Santos acabou de se vestir e despediu-se da esposa, lavada em lágrimas. Desceu as escadas, com marinheiros armados à frente e atrás. Fizeram-no entrar para uma camioneta que estava estacionada à porta. O antigo comissário naval sentou-se ao lado do condutor. Era o cabo Olímpio, mais conhecido por "Dente de ouro".
A cena foi presenciada pelas sentinelas do Quartel de Cabeço de Bola, da GNR, que distava 50 metros da residência do herói do 5 de Outubro. Nada fizeram para intervir.
A camioneta desceu para a Avenida Almirante Reis e tomou a direcção do Arsenal da Marinha. Perto do Largo do Intendente, o motor avariou. Machado Santos não chegaria ao Arsenal.
- Desça, comandante! Vamos fuzilá-lo!
O herói da Rotunda bem tentou defender a vida com argumentos. Encostaram-no a uma parede e abriram fogo. Depois, levaram o corpo para a morgue, num carro de aluguer. Quando o entregaram aos maqueiros, viram que ainda se mexia. Acabaram com ele à coronhada.
Machado Santos tinha 46 anos.
A "camionete fantasma" que o transportou e interrompeu o trajecto no Intendente tinha percorrido, nessa noite, muitas ruas de Lisboa. O mesmo bando assassinara, horas antes, José Carlos da Maia.
A conspiração de Outubro de 1921 teve demasiadas cabeças. Consta que, até momentos antes de ser fuzilado, na Avenida Almirante Reis, Machado Santos pensava ser um dos líderes da revolução.
Não se conhece bem a motivação da "Noite Sangrenta". As execuções terão sido alheias ao plano global da revolta. Aparentemente, não foram programadas pelo movimento revolucionário nem encomendadas pelos chefes rebeldes. Tratou-se, provavelmente, de uma vingança dos arruaceiros democráticos. Granjo hostilizara abertamente Afonso Costa nos anos de 1911 e 1912. Machado Santos e Carlos da Maia haviam participado no golpe sidonista de 1917.
Acumulara-se demasiado ódio em alguns corações lisboetas. Os marinheiros não esqueciam punições antigas, que consideravam injustas e humilhantes. Os militares da GNR não perdoavam a perda do prestígio gozado durante a liderança de Liberato Pinto. Os antigos elementos da "formiga branca" tinham raiva aos inimigos de Afonso Costa. Por outro lado, as contas com alguns responsáveis pela repressão sidonista estavam por fazer.
As sementes de violência estavam prontas para eclodir.
Os mortos importantes daquela noite, se é que a morte se importa com alguém, tinham estado todos juntos na revolta de 28 de Janeiro de 1908, quatro dias antes do regicídio.






Fonte: República - Luz e Sombra, de A. Trabulo



Fotografias: net.






Também publicaDO em O BAR DO OSSIAN.






domingo, 17 de outubro de 2010

A LEVA DA MORTE


Fez ontem 92 anos!
Na tarde de 16 de Outubro de 1918, Francisco Correia de Herédia, primeiro e único visconde da Ribeira Brava, foi assassinado. Formado em Letras e esgrimista notável, tornara-se uma figura importante do Partido Progressista de José Luciano de Castro. Iria abandoná-lo, com José Maria de Alpoim, quando da Dissidência Progressista. Fidalgo cavaleiro da Casa Real, ostentou várias comendas e foi governador dos distritos de Beja, Bragança e Lisboa.
Numa reunião efectuada em sua casa, na Avenida da Liberdade, em 11 de Julho de 1907, foi decidido passar à acção directa contra a ditadura de João Franco. Estavam presentes José Maria de Alpoim, Afonso Costa e Alexandre Braga.
Eram precisas armas. Pagou-as o visconde. Levantou-as, na loja de um carbonário, no começo de Janeiro de 1908. Eram nove carabinas Winchester calibre 351 e um lote de pistolas FN-Browning. Foram escondidas nos Armazéns Leal, na Rua de Santo Antão.
Alguma informação chegou aos ouvidos do comandante da polícia, que mandou revistar a loja. Afonso Costa foi avisado. Enroladas em tapetes, as armas foram levadas, no automóvel de Ribeira Brava,a para a casa de Luís Grandela, irmão do proprietário dos Armazéns Grandela.

A 28 de Janeiro de 1908, os líderes revolucionários aguardaram no Elevador da Biblioteca, a S. Julião, a notícia da morte de João Franco e do triunfo da rebelião. As horas passaram, sem que chegassem boas novas. João Franco não estava em casa e escapou. As entradas e saídas no elevador, que estava desactivado, deram nas vistas da polícia. Foram presos mais de cem conspiradores. Contavam-se, entre eles, Afonso Costa, Ribeira Brava e Egas Moniz. Alpoim conseguiu fugir, de automóvel, para Espanha.
Quatro dias depois, a 1 de Fevereiro de 1908, Manuel Buíça atirou contra o rei e contra o príncipe D. Luís Filipe com uma carabina Winchester, enquanto Alfredo Costa, com o pé no estribo da carruagem real, fazia fogo com uma pistola Browning. As armas faziam parte do lote que Ribeira Brava pagara e levantara da loja do carbonário Gonçalo Heitor Ferreira.
Em 1910, foi instaurada a República. O visconde tinha 58 anos. Abandonou o título, juntou Ribeira Brava aos seus apelidos e aderiu ao Partido Republicano Português, mantendo-se sempre chegado a Afonso Costa. Foi eleito Deputado da Nação, como já tinha sido durante a Monarquia. Teve grande influência política na Madeira, de que foi governador.
Em Outubro de 1918, a agitação social contra o governo de Sidónio Pais recrudesceu. Havia tumultos espontâneos e acções organizadas pela oposição democrática.
Na manhã do dia 12, um regimento de Coimbra levantou-se contra o governo. O alferes Sidónio Pais, filho do Presidente, foi perseguido pelas ruas da cidade.
Em Lisboa e no Porto, não chegou a acontecer nada. As coisas terão corrido mal aos revoltosos, pois é difícil acreditar que os de Coimbra tentassem deitar abaixo Sidónio sem contarem com apoios importantes no resto do País.
Terá sido essa a interpretação do Presidente. Face à ameaça de insurreição generalizada, decretou o estado de sítio. As cadeias encheram-se de democráticos. Ribeira Brava também foi preso.
Quatro dias depois, já não cabiam mais prisioneiros nos calabouços do governo Civil de Lisboa. As autoridades decidiram transferir uns tantos para os fortes do Campo Entrincheirado (São Julião da Barra, Alto do Duque e Caxias).
Ao fim da tarde do dia 16, cento e cinquenta presos foram reunidos no pátio do Governo Civil. Saíram dali, enquadrados por mais de duzentos e cinquenta guardas armados. Deviam dirigir-se ao Cais do Sodré, onde os aguardava um comboio especial.
A coluna atravessou o Largo da Biblioteca e chegou à Rua Vítor Córdon. Ouviu-se um tiro e a confusão estabeleceu-se. Os guardas disparavam para onde estavam virados. Quando o tiroteio cessou, havia no chão sete mortos, entre os quais se contava um guarda. O corpo de Ribeira Brava foi encontrado numa valeta, degolado por um golpe de baioneta. O antigo visconde tinha 66 anos.
No dia seguinte, um comunicado do governo "esclarecia" o incidente. Francisco Herédia recebera, na prisão, uma pistola escondida num tacho de açorda. Procurara fugir, atirando contra os guardas da escolta.
A pistola nunca foi encontrada, Há quem diga que alguém disparou contra a polícia, de uma janela de um bordel da Calçada do Ferragial.
A voz do povo fez o seu julgamento: a matança terá sido organizada pela polícia sidonista.
A História vai dando voltas. O visconde é trisavô de Isabel Herédia, esposa de Duarte de Bragança. Para além dos homens de mão, dos executantes, houve três nomes que o povo associou ao planeamento do regicídio: os de Afonso Costa, José Maria de Alpoim e Ribeira Brava.






Fontes: República - A Luz e a Sombra, de A. Trabulo.


Fotos : Net.


Também publicado em Milhafre.

sábado, 9 de outubro de 2010

ESCREVER PORTUGUÊS


Reflectir sobre a vivência da nossa língua e de quem a fala chega a magoar gente como eu, que aprendeu a escrever em África e conheceu Camões na idade em que se deitou com as primeiras raparigas negras.

Não sou tonto que baste para julgar a História. Poucos, em Angola, terão sido argutos a ponto de antever o seu rumo, a distância eficaz. Cinjo-me à memória e faço o que está ao meu alcance: conto.

As recordações apagam-se com a vida. Urge escrever pois, quando a geração a que pertenço se extinguir, ficarão poucos testemunhos de um passado comum a centenas de milhar de portugueses.

Aqui fica um tributo ao Lubango (Sá da Bandeira), a cidade onde me conheci. Por muito que lhe queiram bem os moradores actuais, dificilmente a estimarão mais do que eu: falta-lhes o tempero da perda que amplifica o amor.

Com este romance, encerro a trilogia a que dei início com "Os Colonos", antes de saltar para "Retornados". Na primeira obra, descrevi a fundação e desenvolvimento da cidade. Na segunda, contei como foi abandonada, como outras terras de Angola, pelas famílias brancas assustadas. Afora, falo de "estar". Ocupo-me da minha família e da minha infância. Relato um modo português, pouco conhecido, de colonizar e de se enraizar no mundo.

Ao mesmo tempo, solto a alma e crio histórias. As personagens que invento soltam-se das ruas do Lubango para se integrarem no mapa do romance. Poucas têm alguma relação com vidas reais.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

FERNANDO PESSOA E AFONSO COSTA

Fernando Pessoa não morria de amores por Afonso Costa.
Pela mão de Álvaro de Campos, enviou ao jornal "A Capital", a 6 de Julho de 1915, uma carta em que negava a conotação de futurismo aplicada ao drama que o grupo do Orpheu tencionava apresentar. Rematava do seguinte modo:

Passo em branco sobre a atribuição de futurismo que nos pretendem lançar. De resto, seria de mau gosto repudiar ligações com o futurismo numa hora tão deliciosamente mecânica em que a própria Providência Divina se serve dos carros eléctricos para os seus altos ensinamentos.


O jornal publicou apenas a última frase.

Dois dias antes, Afonso Costa, acompanhado por alguns amigos, resolvera dar um passeio até Algés, para gozar a brisa fresca do mar. Quando o veículo chegou à Avenida 24 de Julho, viu-se um clarão e ouviu-se o que parecia ser um disparo. Costa julgou que o tentavam matar e atirou-se pela janela do eléctrico em movimento. Fracturou o crânio e ia morrendo. Correu em Lisboa uma adivinha malévola:

Qual é a coisa, qual é ela, que entra pela porta e sai pela janela?

Dias depois, Álvaro de Campos voltou a atacar Afonso Costa, noutra carta endereçada ao mesmo jornal. Rezava assim:

O chefe do Partido Democrático não merece a consideração devida a qualquer membro da humanidade. Ele colocou-se fora das condições em que se pode ter piedade ou compaixão pelos homens. A sua acção através da sociedade portuguesa tem sido a dum ciclone, devastando, estragando, perturbando tudo, com a diferença, a favor do ciclone, que o ciclone, ao contrário de Costa, não emporcalha e enlameia. Para o responsável máximo do estado de anarquia, de desolação e de tristeza em que jazem as almas portuguesas, para o sinistro chefe de regimentos de assassinos e de ladrões, não pode haver a compaixão que os combatentes leais merecem, que aos homens vulgares é devida. Costa nem sequer tem o relevo intelectual que doure a sua torpeza. A sua figura é a dum sapo que misteriosamente se tornasse fera...
... Por isso eu quero frisar - e sei que ao frisá-lo estão comigo os votos de grande número de portugueses, dos católicos oprimidos, das classes médias atacadas, dos cidadãos pacíficos assaltados nas ruas, de todos aqueles que o general Pimenta de Castro representava - que só não me regozija, no desastre acontecido a Costa, a circunstância, que infelizmente se parece confirmar, do seu restabelecimento.
A redacção do jornal achou por bem arquivar a carta numa gaveta.


Referências:
Obra essencial de Fernando Pessoa, Prosa publicada em vida. Edição de Richard Zenith. Assírio e Alvim, Lisboa, 2006.
República - A Luz e a Sombra. A. Trabulo (no prelo).

Foto e caricatura: net.
Também publicado em "Milhafre".









quarta-feira, 22 de setembro de 2010

CRÓNICAS DO MAR


O DOUTOR CANHÃO


Quando embarquei pela primeira vez no Gil Eannes, em Maio de 1970, deixei-me ficar encostado à amurada enquanto nos afastávamos lentamente de terra, como fazia toda a gente que não era necessária à manobra do navio. Avistei um homem baixo que teria pouco mais de cinquenta anos, um pouco distanciado do grupo de familiares e amigos que se despediam dos tripulantes. Mostrava no rosto uma expressão exagerada de melancolia, como se tivesse afivelado uma máscara de tragédia grega e se propusesse encarnar todo o abandono do cais.

Deitei-me a adivinhar:

- Aquele tipo está a despedir-se dele mesmo...

Tive oportunidade de o conhecer e de me tornar seu amigo, meio ano mais tarde.

Eu e o meu colega Manuel Barros Pereira éramos os únicos militares na frota, para além do comandante Gaspar, que desempenhava as funções de Capitão de Porto nos mares da Terra Nova e da Gronelândia. Entre viagens, fazíamos medicina de trabalho para os pescadores e tripulantes dos bacalhoeiros, nas instalações da Docapesca, em Pedrouços.

O Doutor Abílio Canhão trabalhava ali desde que deixara o mar, após vários anos a bordo do Gil Eannes. Era uma pessoa agradável. Tinha muitos dos pequenos defeitos e boa parte das grandes qualidades que matizam o espírito humano. Fumava, bebia e jogava. Era inteligente, culto e generoso.

Tenho dificuldade em alargar-me na descrição do passado do Doutor Canhão, homem que muito estimei. As minhas razões não são comuns. Vou expô-las com franqueza.

Há um quarto de século, escolhi-o para modelo de um personagem da minha primeira tentativa de romance. Modifiquei-lhe as feições e a história de vida. Conservei apenas a bonomia e a alegria de viver e de prevaricar que faziam parte da sua maneira de estar no mundo. O decorrer dos anos confundiu as recordações da pessoa real e do personagem de ficção e, às tantas, deixei de ser capaz de distinguir uma do outro. Os leitores que me perdoem, se puderem...

Lembro que me contou que, na sua juventude, era o menino bonito da família. Estudante aplicado, fez o Liceu com boas classificações e tirou o curso de Medicina sem conhecer dificuldades. Escolheu o mar por uma mistura de romantismo com a oportunidade de trabalho a aparecer na hora certa. Deixou-se depois ficar, em boa parte por inércia. Não chegou a casar. Ainda conheci, em St. John`s, uma antiga namorada dele.

Não sei durante quantos anos o doutor Canhão calcorreou o convés do Gil Eannes. Julgo que foram muitos. Com o tempo, a actualização profissional ficou um pouco descurada. Chega sempre uma altura para tudo, inclusive para deixar o mar. Provavelmente, começava a sentir-se velho. Depois, as tripulações da Marinha Mercante e de Pesca mudam muito. Não é fácil estabelecer amizades novas em cada ano que passa.

No regresso, estava fora das carreiras e pisava o chão de um País que via sempre com meio olhar de emigrante. Trabalhava também num posto da Caixa de Previdência e fintava como podia a severidade com que o Doutor Abreu Loureiro (pai) chefiava os serviços médicos da Docapesca.

Às vezes, apresentava-se ao trabalho com a roupa mal cuidada. Contava que ainda devia, não sei se ao irmão se ao cunhado, uns dinheiritos do automóvel em segunda mão. Comentava:

- Eu é que era o bom filho, o exemplo a seguir. Veja agora! Os outros prosperaram e eu ando por aqui...

E ria-se, pondo à mostra a falta de alguns dentes.

Conservou no sorriso, até que o perdi de vista, um resto de inocência infantil.

Recusava-se julgar os outros. Um dia perguntei-lhe se o Bernardo Santareno, com quem ele navegara durante um ano, era mesmo maricas. Respondeu-me de forma evasiva:

- Sabe, Trabulo! O Martinho era um homem atraente, com uma personalidade cativante. Encantava homens e mulheres...

Quando terminei o meu tempo de servidão militar, regressei aos hospitais.

Vieram dizer-me, algum tempo depois, que o meu amigo tinha morrido.

sábado, 18 de setembro de 2010

CRÓNICAS DO MAR


AS PRAGAS DOS NAZARENOS


Os pescadores de bacalhau eram provenientes de diversas povoações costeiras do continente português e também dos Açores. Noutro tempo, as mulheres vestiam-se de preto, à largada dos navios, e só retiravam o luto quando os seus homens regressavam. Eram "viúvas de vivos".

Ao rebentar a guerra colonial, os navios passaram a recrutar as companhas também no interior do País. Para escaparem à tropa, os rapazes embarcavam durante cinco viagens consecutivas ou seis intervaladas. Alguns nunca tinha visto o mar até à véspera do embarque.

Quando se fala em bacalhau há, contudo, terras que saltam logo para a ponta da língua: Ílhavo para os oficiais, Caxinas e Nazaré para os pescadores.
Os nazarenos constituíam um grupo com certa identidade. Dizia-se que, quando se viam em grande aflição no mar, em vez de lutarem até ao fim pela sobrevivência, se abraçavam uns aos outros, dizendo:

- Ao menos morremos juntos, meus irmãos!

Algumas das pragas inventadas na Nazaré correram mundo, a bordo das embarcações de pesca. Recordo umas tantas:

- Haviam de te nascer tantos cornos na testa quantos de ovos são precisos para partir a proa ao navio!

- Havias de encontrar no chão uma carteira cheia de dinheiro e, quando te baixasses para a apanhar, caía-te a caixa do peito!

- Havia de te dar uma dor que, quanto mais corresses mais te doesse e, se parasses, rebentavas!

- Que o mar seja fogo e o céu gasolina!
Nunca ouvi lançar uma praga de viva voz. Eram gentis e pacíficos os pescadores da Nazaré com quem naveguei.
Foto: net

domingo, 12 de setembro de 2010

CRÓNICAS DO MAR




A ALIMENTAÇÃO A BORDO DOS NAVIOS BACALHOEIROS








Comia-se bem, a bordo do Gil Eannes, no final da década de 60. As refeições dos oficiais consistiam em sopa, prato de peixe, prato de carne e sobremesa. O resto da tripulação não passava nada mal. Os navios de pesca tinha a vantagem de poderem recorrer ao peixe do dia.
Noutros tempos, não era assim. Nas viagens de longo curso, antes de existirem frigoríficos, a alimentação era sujeita a grandes limitações. Levava-se o que não se estragava: biscoitos, salgados e conservas. Ainda hoje, na Ilha Terceira, nos Açores, na costa oposta a Angra do Heroísmo, existe a povoação de Biscoito, que terá ganho o nome da provisão que ali iriam fazer os navios do largo.
Durante as travessias, raramente se podia pescar. A comida era um enjoo. Os navios costumavam levar galinhas e uma vaca, ou algumas cabras. Os animais ocupavam espaço e a comida deles também. Faziam muita porcaria e eram abatidos cedo. Quando se matavam, era uma festa, mas a carne tinha de ser consumida depressa, para não se estragar.
Ao passar ao largos dos Açores, rumo à Terra Nova, lá se apanhava alguma tartaruga, o que permitia fazer belas canjas. Uma vez por outra, arpoava-se um golfinho imprudente que se divertia a acompanhar a embarcação. Dizia-se que dava bons bifes de cebolada.
Consultemos uma lista de produtos alimentares embarcados para uma viagem de cerca de seis meses, num lugre de 30 pescadores, durante a década de 1920-1930:

40 barricas de farinha de trigo

18 barricas de carne de vaca salgada

50 Kg de carne de porco salgada

1350 Kg de batatas

1100 Kg de feijão seco encarnado e branco

150 Kg de feijão frade

150 Kg de grão de bico

100 Kg de arroz

100 Kg de açúcar

10 Kg de especiarias

90 Kg de banha

200 Kg de toucinho

60 Kg de café moído

5 Kg de chá

360 Kg de cebolas

Duas latas de chouriço

400 litros de azeite

200 l de vinagre

40 l de óleo para frituras

400 l de vinho

400 l de aguardente

8 fardos de bacalhau seco

120 garrafas de cerveja

12 garrafas de vinho do Porto


Não parece muito o chouriço... É curioso reparar que o número de litros de aguardente é igual ao de vinho.
Nos Bancos da Terra Nova, inventavam-se pratos a fingir carne, como o arroz de corações de bacalhau, mas as opções eram reduzidas. As cagarras, uma variedade de gaivotas, davam uma bela caldeirada, depois de passarem três dias em vinha de alho, para lhes tirar o sabor a peixe. As gaivotas espreitam a escala em grandes bandos, à espera dos restos. A sua pesca é cruel: isca-se o anzol com um pedaço de fígado de bacalhau e atira-se ao vento. Não se pode escolher quem vem ao isco e, às vezes, sacrificam-se gavinas e albatrozes.
A adaptação de motores aos navios de madeira iniciou-se no começo da década de 30. Durante bastante tempo, os lugres tiveram propulsão mista, à vela e a motor. Alguns passaram a dispor de frigoríficos para o isco e para as provisões dos tripulantes.
Ainda hoje o cozinheiro é o homem mais importante a bordo, a seguir ao capitão. Acima desse, só Deus, e mora longe... Sujeitos a uma vida de dureza extrema, a satisfação do estômago era das poucas que os pescadores iam conseguindo no dia a dia.












Fontes: Francisco Correia Marques. Em: Oceanos, nº 45, Janeiro/ Março 2001.




Foto do autor.




segunda-feira, 31 de maio de 2010

quarta-feira, 26 de maio de 2010

27 DE MAIO DE 1977


EM MEMÓRIA DE DOIS AMIGOS


Na madrugada de 27 de Maio de 1977, um grupo armado assaltou a cadeia de S. Paulo. Depois, tomou conta da Rádio Nacional de Angola.
Na vizinhança, tinham-se concentrado algumas centenas de manifestantes. As tropas fiéis a Agostinho Neto e os militares cubanos dispararam sobre os populares e retomaram o edifício. Por volta das 14 horas, ocuparam também o quartel da 9ª Brigada, onde teria estado preso Saidy Mingas.
O exército cubano, que tinha dado um contributo decisivo para o desfecho da guerra civil e constituía a força militar mais poderosa em Angola, apoiou o presidente Neto e garantiu-lhe uma vitória rápida. Foi decretado o recolher obrigatório.

No dia seguinte, foram encontrados na zona da Boavista, dentro de um jipe e de uma ambulância, os corpos de oito pessoas, entre as quais se contavam três membros do Comité Central do M.P.L.A.: Saidy Mingas, ministro das Finanças. Veríssimo da Costa (Nzaji), chefe da Segurança das F.A.P.L.A. e Paulo Mungungu (Dangereux).

Do grupo de vítimas, faziam ainda parte Eurico Gonçalves, comandante do M.P.L.A. que se encontrava doente com filaríase, e Garcia Neto, antigo estudante de Direito da Universidade de Coimbra que vira o Curso interrompido pelos agentes da P.I.D.E. e passara vários anos nos calabouços até ser libertado no dia 26 de Abril de 1974. Os dois últimos, alheios à contenda entre Nito e Neto, foram sacrificados por acaso. Eram amigos um do outro, e do Comandante da Polícia de Luanda, João Saraiva de Carvalho. Tinham vivido juntos em Coimbra, na República do Kimbo dos Sobas. Ao saberem que se estavam a passar movimentações anormais, dirigiram-se a casa do João, para se informarem. Prevenido, o Chefe da Polícia ausentara-se. Os dois visitantes foram apanhados pelos revoltosos, que vinham procurá-lo, e passados pelas armas.

Numa praia de Luanda, apareceram ainda vários cadáveres carbonizados. Havia quem afirmasse que os homens tinham sido queimados vivos.

A vingança não se fez esperar. O ódio soltou-se nas ruas de Luanda e propagou-se a Angola inteira. Os nitistas foram trucidados.
O número total de mortos é desconhecido. Bastantes meses depois, a Amnistia Internacional calculava que tivessem sido executadas, sem julgamento, entre vinte e quarenta mil pessoas, mas ninguém sabe como foram feitas essas contas. Ao que parece, ocorreram fuzilamentos em todas as Províncias. Terão sido muitas vezes precedidos de tortura. Em Luanda, prosseguiram durante meses a fio.
Consta que foram abatidos muitos jovens. Diz-se que alguns nem sabiam quem era Nito Alves. Sem fontes credíveis que permitam uma boa aproximação à verdade histórica, vive-se muito do que se ouve. Terão desaparecido turmas inteiras de alunos das Faculdades de Angola. No Lubango, alguns dirigentes da J.M.P.L.A. poderão ter sido amarrados de pés e mãos e empurrados para o abismo da Tundavala.
O fim de alguns mais conhecidos transpirou, ainda que os relatos disponíveis devam ser encarados com reserva.
A ordem para o fuzilamento de Nito Alves terá partido do Presidente da República Popular de Angola. Escreveu-se que João Jacob Caetano, o Monstro Imortal das lendas da guerra da independência, morreu garrotado. Sita Valles entrou de mão dada com o marido, José Van Dunem, nas instalações do Ministério da Defesa. O casal terá sido enviado para o Forte de S. Miguel. Nenhum dos dois saiu de lá com vida.
A história do 27 de Maio está por fazer. Quem sabe o que se passou, ou esteve ligado ao processo contra-revolucionário, ou dá-se com quem esteve, e cala-se. Há quem sugira que a dissidência de Nito Alves poderia ter tido solução política. Certo é que a repressão foi desproporcionada e que pereceram muitos inocentes.

Uma das consequências da revolta falhada foi a centralização do Poder. O debate político empobreceu no interior do M.P.L.A., em parte por falta de interlocutores. Reduziram-se as possibilidades de exprimir postos de vista diferentes e de defender posições de grupos sociais específicos.






Modificado de: Retornados - O Adeus a África. Editorial Cristo Negro, Lisboa, 2009.



Fotos pequenas: Internet.


Foto grande: festa da minha formatura, em 1967. Eurico Gonçalves é o terceiro da direita, na fila detrás. Garcia Neto é o 2º da esquerda, na fila da frente.





Também publicado em Milhafre.










sábado, 8 de maio de 2010

VICE-PRESIDENTE


O rumor ontem posto a circular sobre a existência de ameaças contra a vida do Presidente da República Portuguesa (PRP) levou-me a pôr por escrito uma ideia antiga. A meu ver, a próxima revisão constitucional deverá incluir a criação do cargo de Vice-Presidente da República.

Os candidatos a PRP vão tendo, cada vez, mais anos. A morte, natural ou resultante de atentado ou de acidente, a renúncia ao cargo, ou a impossibilidade física e intelectual para continuar a exercer funções irão conduzir, algum dia, à vacatura do lugar.

A nossa Constituição prevê essa possibilidade:

Art.º 125º - O PRP será eleito nos 60 dias posteriores à vacatura do cargo.

Art.º 132º - Durante a vacatura do cargo, até tomar posse o novo PRP, assumirá as funções o Presidente da Assembleia da República.

É de supor que, até à posse do novo PRP, o normal funcionamento das instituições fique perturbado. Por outro lado, as qualidades adequadas ao exercício da Presidência da República e da Assembleia da República são diferentes. De outro modo, uma das funções poderia nem existir.

As eleições são dispendiosas. Ao contrário da voz corrente, os titulares dos cargos mais altos da hierarquia do Estado são relativamente mal pagos.

Não dispondo de dados que me permitam fazer contas, ainda que aproximadas, atrevo-me a presumir que, mesmo que um Vice-Presidente só viesse a entrar em funções de substituição uma vez em cada cinco mandatos, ainda ficaria mais barato aos cofres do Estado do que um único processo de eleição antecipada.

O Vice-Presidente deveria ser oriundo da mesma família política do PRP e eleito na mesma lista, como acontece na generalidade dos Países com regimes presidencialistas.


Imagem: busto da República existente no Museu Militar de Lisboa.

Também publicado em Milhafre.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

DA CRIAÇÃO

Quem nunca escreveu um romance terá dificuldade em imaginar as teias e os enredos que se começam a formar logo que alguém se atreve a animar de vida pessoas feitas de palavras. Inventar comporta riscos. O escritor compreende a angústia e a perplexidade que terá experimentado o velho Jeová depois de soltar Adão e Eva no Jardim do Éden. As criaturas não fizeram o que Deus pretendia, mas o que tinham a fazer. É que os homens e mulheres que nascem da caneta ou das teclas do computador, essa gente sem suporte físico, sem veias nem tripas, os personagens que deviam estar gratos à imaginação de quem os pôs no mundo, começam logo a exigir autonomia, senão independência. Esses indivíduos agem segundo a própria natureza e dão passos que não pensámos e que não recomendaríamos. Será isso a que chamam liberdade.
Não admira que as páginas dos livro se comecem a entrelaçar, alheias a qualquer plano ou intenção. O criador só em parte controla a própria obra.

Escrevi, inventei, afastei-me da realidade. As povoações são, em boa parte, as pessoas que as habitam. Ao usar a minha cidade como cenário, colocando lá gente diversa da que existiu, o Lubango mudou também e desprendeu-se do chão do Planalto para integrar o mapa do romance. Esses homens e mulheres que descrevo nunca viveram. Os leitores têm nas mãos um conjunto de páginas de fantasia, enxertadas numa cidade que se perde, ou se encontra, no mundo dos sonhos.
Estive mesmo tentado a mudar-lhe o nome, mas pareceu-me que seria traição.

Ao virarem a última folha, os mais atentos terão constatado que as senhoras virtuosas da cidade, que eram a grande maioria, têm fraca representação esta obra. Que perdoem, se puderem, mas a explicação é bem simples: quem lê não quer saber de vidas honradas. Boas mães de família, filhas obedientes, irmãs bem comportadas, dão, em geral, más personagens de romance. Não podendo espreitar para além das cortinas das vizinhas nem escutar, a meio da noite, súplicas, ameaças e gritos de excitação ou de medo, leitores e leitoras procuram nos livros um cheirinho a transgressão e a pecado, uma pitada de sal no aborrecido caminho que há-de conduzir à salvação.

Quem escreve semeia cumplicidades e põe à mostra atalhos pouco recomendáveis. Não manda ninguém segui-los. O autor assume apenas a sua parte das culpas eventuais.
Em: "Lubango", a publicar em breve.
Imagem: Masaccio, A Expulsão dos Progenitores do Paraíso. A Grande História da Arte, Público, 2006
Postal do Lubango.
Também publicado em O BAR DO OSSIAN.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

LUBANGO


Às vezes, um homem resguarda-se nas recordações. Há dias, deu-me para procurar um álbum velho de fotografias. Abri-o e vi-me menino.
Nessa noite, sonhei que tinha morrido e que me iam meter num caixão grande demais. Era como se tivessem esperado que eu continuasse a crescer e me fizesse maior do que sou.
Numa parte do sonho, alguém pegou num retrato meu. Rasgou-o em pedaços e foi embora. Antes de sumir, voltou-se para trás e mandou-me reconstituir a minha própria fisionomia.
Não sei quem era o mandante, mas detinha algum ascendente sobre mim. Esforcei-me por obedecer. Não fui, porém, capaz de encaixar os retalhos num todo coerente. As peças não se ajustavam. Pareciam provir de existências diversas.
Acordei a meio da noite e preocupei-me. Se calhar, andava a sonhar os sonhos de outrem.
Vou adiantado em anos. Há que dar sentido ao mundo e entender os passos dados. Resolvi regressar a Sá da Bandeira, à procura do fio condutor que faltava à minha vida.
Levantei-me antes de amanhecer, lavei-me e vesti-me. Durante o pequeno almoço, tomei a decisão de começar a busca.
Não o fiz de forma física. A minha cidade fica longe, no espaço e no tempo. Não a visito desde 1964. Havia de ter dificuldade em reconhecê-la, pois a guerra transformou Angola toda. A maioria dos habitantes brancos refugiou-se em Portugal.
O nome do baptismo, Sá da Bandeira, foi riscado do mapa. Desapareceu da geografia, mas não da memória. Dantes, tinha duas denominações. Agora, chama-se apenas Lubango.
Existe, hoje, outra povoação onde moram homens e mulheres diferentes. Estou certo de que, se regressar, me irei sentir estranho. Afundei raízes deste lado do mar. Se voltasse, poderia perder-me nos caminhos novos e até nos velhos.
No entanto, ao percorrer as ruas da lembrança, o asfalto ainda lá está, como um tapete liso. Os jardins continuam bonitos e as árvores frondosas. Os pássaros esvoaçam, como sempre. As montras permanecem espelhadas e cheias de coisas que apetecem. As cascatas da Huíla e da Hunguéria refrescam os sentidos. Os precipícios do Bimbe e da Tundavala continuam a assustar.
Posso imaginar, representadas numa única fotografia, as pessoas que foram importantes para mim, enquanto crescia. Estão lá todas. Ninguém morreu nem fugiu. Não há quem retoque a memória com os estragos do tempo. As moças da minha geração não engordaram nem envelheceram. Ao fundo, reina a Ponta do Lubango. É a mãe de todas as recordações.
Um homem não manda nas lembranças, mas consegue orientar-se por elas. Pode, também, inventá-las, ou usar as de outros e fingir que são suas. Foi assim que este livro começou a nascer. Não é uma autobiografia, embora mostre coisas que me pertenceram ou que ainda são minhas.
Acho que fiquei obcecado pela ideia da fotografia. No centro da imagem que construí, está o meu pai. Eu apareço muitas vezes, com estaturas e rostos que vão mudando. As outras pessoas figuram apenas uma vez.
Não se admirem se as qualidades de alguns e os defeitos de muitos vos parecerem exagerados, nem se espantem por me escaparem acontecimentos óbvios. Eu era pequeno e olhava o mundo de baixo. Qualquer obstáculo me limitava o campo de visão. E, depois, as palavras hão-de parecer sublinhadas, especialmente quando falo de meu pai.
Constatei cedo que a história de um rapazinho não chegava para preencher um volume de duzentas páginas sem entediar o leitor e que a descrição da minha vivência familiar era importante apenas para mim e para os meus irmãos. Servia, no entanto, de testemunho de uma certa forma de colonização. É isso que vale e por isso fica.
Ainda pensei em enfeitar o texto com episódios conhecidos, mas arrependi-me logo. Por um lado, vim de lá novo e sei pouco. Por outro lado, alguns intervenientes estão vivos e poderiam não gostar do modo como seriam retratados. Soltei, pois, a imaginação, com os perigos que ela comporta.


(Do prólogo do romance "Lubango", a publicar em breve).
Fotos: Internet.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

CRÓNICAS DO MAR


Gil Eannes, 24 de Maio de 1970


Acordei com a luz da manhã e espreitei pela vigia.

Não há nevoeiro. É, portanto, dia de festa. Meio disco de sol emerge das águas estanhadas e tinge o mar de violeta, enquanto tímidas nuvens ensanguentadas dão mais cor à alvorada. Verifico que fui dos últimos, a bordo, a levantar-me. É sinal de que não fiz falta.

Poisou no mar um enxame de pontos negros. Se fixar o olhar num deles, noto que desaparece e volta a mostrar-se, ao ritmo da ondulação. Cada pequena mancha é um dóri. Transporta um corpo, uma alma, recordações e esperanças. Há cerca de 1500 num raio de cinco milhas. Espalharam-se em redor de vinte navios, como rebanhos num prado grande repartido por muitos pastores.

Estamos nos Rocks, nos bancos da Terra Nova. Juntou-se cá boa parte da frota portuguesa de pesca à linha. Para fora desta zona, o mar é o deserto de sempre.

Aqui, os homens pescam juntos. Podem conversar e ajudarem-se uns aos outros. Discutem também. Chega a haver lutas, quando os aparelhos se embaraçam e as vozes se alteiam. Em noites de ar límpido, as luzes dos navios alegram o mar. Virgin Rocks é uma aldeia portuguesa com as casas separadas por ruas de água.

O capitão Mário Esteves mandou levantar o ferro. O Gil Eannes desloca-se cuidadosamente, a meio dos dóris. Distinguem-se as expressões nos rostos dos pescadores. A pesca vai mal. De vez em quando, um trol (trawl) recolhe alguns peixes pequenos. Há grandes espaços vazios nas linhas anzoladas.

Os botes vão leves, com a borda bem elevada acima da linha de água. Há-os que têm um pequeno mastro à proa. Outros (não muitos) dispõem de um motor fora de borda.

Choram-se os pescadores que não há peixe, que dantes faziam num dia não sei quantos quintais. Noutros tempos, um navio carregava e estava de volta a Portugal antes de Agosto. Os pescadores pouco lucravam. Quando o peixe é muito, vai quase dado. Contaram-me que ganharam menos numa ano em que encheram o navio do que na época seguinte, em que trouxeram pouco mais de meia carga.

Um grande corpo cinzento de formas arredondadas emergiu bruscamente junto a um grupo de três dóris, fazendo-os balançar mais. Desenhou, por momentos, a figura de um rochedo e logo desapareceu. É um cachalote. Voltou por duas vezes à superfície, sempre perto dos botes, que não parece recear. Os pescadores, sim, temem-nos porque lhes podem virar as embarcações. O homem do dóri mais próximo ergueu um remo na vertical, para chamar a atenção da baleeira que se dirige para nós.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

A BATALHA DO LYS - O ALCÁCER-QUIBIR DA REPÚBLICA



No inverno de 1917-1918, a vontade de combater do Corpo Expedicionário Português era quase nenhuma e a situação disciplinar estava a degradar-se. Alguns oficiais que iam de licença a Portugal "esqueciam-se" de regressar.
Muitos políticos portugueses tinham considerado que a nossa entrada na guerra, ao lado dos britânicos, implicaria o reconhecimento internacional da República e poria um travão às intenções inglesas e alemãs de tomarem conta das nossas colónias. A própria existência de Portugal como Nação independente estava em risco. Sabia-se que, em 1913, a Inglaterra e a Alemanha tinham iniciado negociações para uma eventual partilha das colónias portuguesas. O rei de Espanha chegara a informar os ingleses que, em caso de chegarem a acordo com a Alemanha nesse sentido, a Espanha exigiria para ela o território do Portugal europeu.
A verdade é que Portugal entrou no conflito cerca de dois anos antes da declaração formal de guerra. A 11 de Setembro de 1914, partiu de Lisboa, em direcção às colónias, o primeiro contingente militar. No fim do mesmo ano, as nossas forças já lutavam com os alemães no Sul de Angola e no Norte de Moçambique.
Combinou-se que Portugal enviaria para França 56.000 soldados. Correspondiam aos efectivos necessários para a ocupação de 12 quilómetros de frente, no sector inglês da Flandres. Os portugueses embarcaram entre Dezembro de 1916 e Abril de 1917. Chegaram pouco antes da primeira divisão americana.

Os beligerantes estavam a sofrer desgastes terríveis. Em 1917, dos 3.600.000 franceses mobilizados em 1914, restavam apenas novecentos e tal mil. Os restantes tinham sido mortos, feridos ou capturados. Apesar das incorporações sucessivas, o exército francês de 1917 era mais reduzido que o de 1914. Ocorriam motins e fuzilamentos nas trincheiras.
A 21 de Março de 1918, o sector inglês teve de enfrentar a ofensiva alemã da Primavera. Revelou-se a mais violenta desde 1914. Os alemães tinham dado conta de que a chegada das tropas americanas estava a desequilibrar a guerra em seu desfavor e resolveram atacar, enquanto podiam. O Quinto Exército inglês foi obrigado a recuar cerca de 60 quilómetros e deixou de existir como força de combate.
Os efeitos da derrota britânica fizeram-se sentir no moral das nossas tropas. A 4 de Abril, uma brigada que fora mandada avançar, para substituir a que se encontrava na linha de frente, recusou cumprir a ordem. Era a insubordinação. A indisciplina contagiou outras unidades e a capacidade operacional do C.E.P., que nunca fora muito grande, atingiu o seu posto mais baixo. Alarmado, o general Tamagnini de Abreu solicitou ao comando britânico que substituísse temporariamente toda a I Divisão portuguesa. Os ingleses não estavam em condições de o atender.
A 8 de Abril, parecia que a investida alemã tinha perdido força e a I Divisão do C.E.P. começou a retirar. Estava previsto que a retirada da II Divisão se efectuasse durante o dia seguinte. Não houve tempo para isso.
Na madrugada de 9 de Abril, os portugueses sofreram um bombardeamento violento. Seguiu-se o assalto do exército alemão. Deu-se a "batalha do rio Lys". No espaço de poucas horas, foram abatidos 7.000 soldados e mais de 300 oficiais portugueses. Era o maior desastre militar lusitano desde Alcácer-Quibir.
Os destroços do C.E.P. foram transferidos para a retaguarda. A desmoralização das tropas portuguesas era notória. Embora os ingleses ainda tenham integrado algumas unidades nas suas forças, a guerra, para nós, terminara.




Referências: História de Portugal, direcção de José Mattoso. Círculo de Leitores, 1994.


Fotografias: Internet.




Também publicado em Milhafre.