DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

                                   
                              AMÍLCAR CABRAL     

                                           LVIII                   

     AMÍLCAR CABRAL – A ALMA E AS CONTRADIÇÕES




Para alguns escritores e jornalistas, Amílcar Cabral foi o maior pensador político africano do seu tempo.
Muitos intelectuais vindos das colónias interiorizaram o marxismo, muito em voga nas universidades europeias que frequentavam. Ora, Karl Marx elaborara as suas teorias a partir do conhecimento da história, da sociologia e da economia das sociedades europeias industrializadas. A África não entrara nas suas contas. Compreende-se que os pensadores negros tenham sentido a necessidade de adaptar o marxismo ao continente africano, em que tanto o proletariado como a burguesia constituíam minorias sociais.
Cabral propôs modificações a aspetos fundamentais da teoria marxista-leninista e houve quem lhe chamasse neomarxista.
A mais importante das suas reflexões diz respeito à luta de classes como motor da história. Na inexistência desse motor, quase todos os povos africanos eram excluídos dela.
«Será que a história só começa a partir do momento em que se desencadeia o fenómeno classe e, consequentemente, a luta de classes?
Responder pela afirmativa seria situar fora da história todo o período da vida dos agrupamentos humanos, que vai da descoberta da caça e, posteriormente, da agricultura nómada e sedentária à criação do gado e à apropriação privada da terra. Mas seria também — o que nos recusamos a aceitar — considerar que vários agrupamentos humanos da África, Ásia e América Latina viviam sem história ou fora da história no momento em que foram submetidos ao jugo do imperialismo.»
A intrusão colonial em África interrompera o processo de desenvolvimento natural dos povos indígenas. Nem Amílcar, nem qualquer teórico da Negritude, se preocupou em quantificar o tempo de evolução que o esperava: séculos ou milénios.
«O nível das forças produtivas, determinante essencial do conteúdo e da forma da luta de classes, é a verdadeira e a permanente força motora da história.»
As trocas culturais tiveram muitas vezes custos sangrentos, mas conduziram a Humanidade para diante. Os países colocados nas charneiras das civilizações chocaram culturas novas. Portugal estava no extremo da Europa. As ideias levavam anos a atravessar a Ibéria, quase sempre transportadas por povos que a história tornara nómadas. Ao contrário, o norte de África entrou cedo na rota das civilizações. A sul, ficavam, primeiro, o deserto e, depois, a inóspita zona equatorial. Durante muitos séculos, uma parte importante da Península Ibérica foi colonizada por africanos.
Depois, a história seguiu o seu curso. Acabaram por ser os portugueses, que não tinham outro horizonte além do mar, os primeiros europeus a fazer chegar ao continente negro novas ideias e novos grilhões.
O colonialismo erodiu as culturas étnicas, mas só o fez muito devagar, começando pela população urbanizada. Os camponeses, mais distantes do colono e menos influenciados por ele, continuaram a ser os guardiões da tradição e do saber antigo. Os indígenas urbanos, muitas vezes descendentes de escravos que não chegaram a ser exportados e ficaram ao serviço dos patrões, assimilaram mais cedo a cultura europeia.
Um negro “assimilado” nem era de cá nem de lá e, às tantas, já não sabia se pertencia ao lado dos brancos ou o ao dos pretos. O apelo do modo de vida dos brancos era forte, mas os patrões não o aceitavam plenamente entre eles. Tratavam melhor a minoria que sabia falar a língua europeia e adotara o modo de vestir e o comportamento dos brancos, mas a cor da pele continuava bem à vista. Os outros negros desconfiavam dessa gente desenraizada.
Cabral não escreveu isso mas terá entendido que, a dada altura, todos, ou quase todos os negros assimilados desejaram ser brancos. Foi uma realidade que Frantz Fanon denunciou como intimamente fraturante.
Em termos históricos, esse fenómeno só atingiu um número importante de negros durante menos de um século. Antes da Conferência de Berlim e da ocupação efetiva do interior dos territórios, os contactos entre as raças davam-se apenas nas feitorias africanas do litoral, sendo muito mais limitados.
Alguns dos filhos das classes médias que iam nascendo nas colónias prosseguiam os estudos na antiga Metrópole. Conheceram o movimento da Negritude. A Negritude permitiu aos intelectuais negros o reforço do amor-próprio através da reafricanização das mentalidades.
Foi a essa pequena burguesia, a este grupo de assimilados, que coube o papel histórico de liderar as lutas de independência das colónias europeias em África. Boa parte dos quadros dirigentes do PAIGC, incluindo o próprio secretário-geral, provinha dela. O peso do pensamento teórico não deixava de assustar Amílcar Cabral. Os vícios da pequena burguesia tinham sido proclamados bem alto pela literatura marxista.  A conclusão de Amílcar foi radical:
«Os pequenos burgueses que construíram a sociedade nova devem suicidar-se como classe política para se integrarem verdadeiramente no meio do povo.»
A elite colonial que assumia a luta revolucionária devia renunciar aos seus privilégios de classe e à cultura assimilada à portugalidade. Era a utopia no seu melhor. Cabral não tinha razão. Até ver, o marxismo falhou em África.
Se alguém tiver necessidade de catalogar a ideologia de Cabral deverá fazê-lo de forma abrangente. O pensamento de Cabral tem tonalidades marxista, democrática e africana negra. Para Amílcar Cabral, a libertação nacional era também um ato de cultura.
Amílcar Cabral foi um homem afável, um teórico com sentido prático que completou a formação intelectual vivendo. Defendeu, mais do que outros, que a guerra de libertação só tinha valor se a provação infligida ao povo servisse para lançar os alicerces de uma nova nacionalidade.
O problema era que, mais do que outros, precisava dela. Cabral renegou a Portugalidade, que se opunha à Negritude. A questão é que as opções dum homem criam uma realidade nova, mas não apagam de todo a anterior. Não é possível amputar um membro nem lançar for metade do coração. Amílcar Cabral combateu o colonialismo. Fê-lo denodadamente, durante uma década, sem nunca deixar de todo de ser português.



segunda-feira, 15 de julho de 2013

                                     
                             AMÍLCAR CABRAL
                                      
                                      LVII



                O GRANDE BAZAR


A União Soviética apoiava o PAIGC com certo pragmatismo. Oferecia-lhes o armamento, mas também o vendia a quem o pudesse pagar. Carlos Fabião comprou alguns lotes, em nome do Estado Português, para as suas Milícias Negras. O comércio fazia-se junto aos aviões. O intermediário era a Norte Importadora do empresário Zoio. O material de guerra descarregado em Lisboa destinava-se oficialmente à polícia de um país sul-americano.
Cada companhia de milícias que eu organizava tinha um preço. Por exemplo, dez mil contos. Davam-me esse dinheiro, eu recrutava 150 pessoas, às quais dava armamento, fardamento, instrução, etc. Com o fardamento e o equipamento não havia problemas, porque o Exército vendia. Mas o armamento era uma chatice, porque o Exército português tinha falta de armas. Havia uma empresa que vendia armamento e que era propriedade, entre outros, do Alpoim Calvão.
A França também vendia armas sem fazer demasiadas perguntas aos compradores. Muita gente terá enriquecido com o negócio. É o que sugere Fabião, uma testemunha íntegra.
O governo português comprava armas aos seus aliados da NATO. Uma parte delas chegava a custo zero, ao abrigo de programas de cooperação. Marrocos e a Checoslováquia foram os primeiros países a armar o PAIGC. Com o desenrolar do conflito a União Soviética tornou-se o principal fornecedor dos guerrilheiros.

     No ano de 1972, os comandos militares portugueses listavam assim o equipamento bélico do PAIGC:

Mísseis terra-ar SAM-7 Strella
Mísseis terra-terra Katyusha (foguetões 122 mm)
Lançador múltiplo de foguetões BX-10
Metralhadoras pesadas Vladimirov de 14,5 mm
Espingarda Kalashnikov de 7,62 mm
RPG2 - lança-rockets
RPG7 - lança-rockets
Viaturas: Anfíbias PT-76 e BTR 40-Pcarros de combate BTR 152 e T-34
Minas AP (antipeesoal)
Minas Ac (anticarro)
Minas aquáticas
Pistola Ceska Zbrojovka (Cal. 6,35 mm)
Pistola Ceska Zbrojovka (Cal. 7,65 mm)
Pistola-Metralhadora "Shmeisser" MP-38
Pistola-Metralhadora "Shmeisser" MP-40
Pistola-Metralhadora "Beretta"
Pistola-Metralhadora "Thompson" (Cal. 11,4 mm)
Pistola-Metralhadora "Sudayev"
Pistola-Metralhadora "Shpagin"
Pistola-Metralhadora M-25
Pistola-Metralhadora M-23
Algumas fontes referem também a existência de quatro aviões de bombardeamento e a eventualidade chegada próxima de mais seis unidades.

ARMAMENTO DAS FORÇAS PORTUGUESAS

Armas Ligeiras
Espingarda 8 mm Mauser m/937
Espingarda automática 7,62 mm G3 m/963
Espingarda automática 7,62 mm FN m/962
Espingarda automática 7,62 mm Armalite AR-10
Espingarda automática 7,62 mm Kalashnikov AK-47 (capturadas)
Pistola-metralhadora 9 mm FBP m/947
Pistola-metralhadora 9 mm FBP m/961
Pistola-metralhadora 9 mm Uzi m/961
Pistola-metralhadora 9 mm Vigneron m/961
Metralhadora pesada 12,7 mm Browning m/955
Metralhadora ligeira 7,92 mm Dreyse m/938
Metralhadora ligeira 7,92 mm Borsig m/944
Metralhadora ligeira 7,62 mm Browning m/952
Metralhadora ligeira 7,62 mm MG42 m/962
Metralhadora ligeira 7,62 mm HK21 m/968
Pistola 9 mm Walther m/961
Morteiro Médio 81 mm Brandt m/931
Morteiro Pesado 120 mm
Canhão sem recuo 57 mm m/52
Canhão sem recuo 75 mm m/52
Lança Granadas-Foguete 37 mm Sneb
Lança Granadas-Foguete 89 mm m/952
Lança Granadas de Espingarda Energa m/953
Lança Granadas-Foguete RPG-2 (capturados)
Lança Granadas-Foguete RPG-7 (capturados)

Armas Pesadas
Obus 105 mm Leichte Feldhaubitze 18R m/41/52
Obus 88 mm QF 25 Pdr Mk 2 m/43/46
Obus 114 mm QF 4,5 in Mk 2 m/46
Obus 140 mm BL 5,5 in Mk 2
Peça AA 40 mm Bofors m/42
Peça AA 40 mm Bofors m/42-B
Peça AA 20 mm CHK1 m/53

Viaturas
Auto TG 1/4 ton 4x4 Jeep m/44
Auto TG 3/4 ton 4x4 Dodge m/48 "Jipão"
Auto TG 2,5 ton 6x6 GMC m/52
Auto TG 5 ton 6x6 Berliet GBC8 "Gazelle"
Auto TG 5 ton 4x4 Berliet Tramagal
Auto TG 1,5 ton 4x4 Unimog
Auto TG 1/4 ton 4x4 Land Rover
Auto Blindado Bren Carrier m/42
Auto Blindado 4x4 Chaimite m/67
Auto Blindado 4x4 GM TT m/47 "Granadeiro"
Auto Blindado TP14 8x8 Panhard ETT m/59
Auto Blindado Rec 4x4 Daimler Mk3 m/63B
Autometralhadora Lig 60 7,62 4x4 Panhard AML m/65
Autometralhadora 4x4 GMC Fox Can m/57

Embarcações
Fragatas da Classe Diogo Gomes;
Fragatas da Classe João Belo;
Navios-Patrulha da Classe Maio;
Navios-Patrulha da Classe Cacine;
Lanchas de Fiscalização Pequenas (LFP) da Classe Antares;
LFP da Classe Júpiter;
LFP da Classe Alvor;
LFP da Classe Albatroz;
LFP da Classe Arcturus;
LFP várias: "Castor", "Algol" e "Sabre";
Lanchas de Desembarque Grandes (LDG) da Classe Alfange;
Lanchas de Desembarque Médias (LDM) das classes LDM 100, 200, 300 e 400.
Navios-Hidrográficos: "Pedro Nunes", "Almeida Carvalho" e "Almirante Lacerda";
Navio de Apoio Logístico: "S. Braz".

Aeronaves, com datas das primeiras aquisições:
DC-3 Dakota (1944)
T-6 Harvard (1947)
T-33 (1953)
PV-2 Harpoon (1954)
F-86 Sabre (1958)
Douglas DC-6 (1961)
Dornier 27 (1961)
Broussard (1961)
Alouette III (1963)
Invader B-26 (1966)
Fiat G-91 (1966)
SA-330 Puma (1969)
Boeing 707 (1970)

Fonte da listagem de armamento: Wikipedia


domingo, 14 de julho de 2013

                           LVI

                O CAPITÃO PERALTA



Da fronteira da Guiné-Bissau ainda se avistam os últimos contrafortes do maciço do Fouta Djalon. São já colinas, com manchas verdes de arrozais dispersos. Para cá, começa a savana. A erva chega aos ombros, a perder de vista. A floresta ladeia os rios e guarnece a fronteira com o Senegal. A faixa costeira é franjada por mangais que sobem ao longo dos estuários e mergulham as raízes, ocultando a terra firme.  
Entre a maré alta e a baixa, a superfície do território modifica-se em cerca de sete mil quilómetros quadrados. É muito, para uma área total que ultrapassa pouco os trinta e seis mil. Sobretudo a sul, o mar entra pela terra. Sucedem-se as rias, os riachos, os pântanos e as lagoas. Amílcar Cabral conhecia bem a geografia da terra onde nasceu. Ouçamo-lo:
Na Guiné, terra cortada por braços de mar, que nós chamamos rios, mas que no fundo não são rios: Farim só é rio para lá de Candjambari; o Geba só é rio de Bambadinca para cima e por vezes mesmo para lá de Bambadinca há água salgada; Mansoa só é rio depois de Mansoa, já a caminho de Sara, perto de Caroalo; Buba, esse não é rio de lado nenhum, porque até chegarmos a terra seca, é só água salgada; Cumbidjã, Tombali, são todos braços de mar, a não ser na parte superior com um bocadinho de água doce na época das chuvas, sobretudo o rio de Bedanda, que vem a Balama buscar água doce. O único rio de facto a sério, na nossa terra, é o Corubal.
Cuba prestou um apoio importante ao PAIGC, embora não se tenha empenhado tanto na Guiné como em Angola. Dizia-se que os condutores dos automóveis do partido, em Conakry, se conheciam por serem guiados por cubanos a fumar charutos.
O infeliz capitão Peralta foi, que eu saiba, o único conselheiro militar cubano apanhado pelas nossas tropas. Participou num ataque ao quartel de Buba, que tinha uma pista de aviação.
 Peralta andou a fazer reconhecimentos para preparar o assalto. Uma patrulha portuguesa encontrou vestígios de passagem de pessoas à volta do quartel e avisou o comandante. Um pelotão de soldados de infantaria foi mandado emboscar, nessa noite, num lugar apropriado.
 Avançaram três bigrupos pelo capim, que dificultava muito a visibilidade. Um bigrupo equivalia a meia companhia nossa. A tropa emboscada abriu fogo e os atacantes puseram-se em fuga. Peralta foi ferido e capturado. Tinha com ele os planos da operação.
 A guerra também tem episódios caricatos. Buba fica a sudoeste da Guiné, no extremo do Rio Grande que tem o seu nome. Peralta fez o reconhecimento da zona com a maré cheia e quase só viu água: o rio e os seus múltiplos braços. Os bigrupos avançaram pelo capim. Quando alcançaram a vizinhança da povoação, a maré vazara. Onde antes estava água, havia agora terra. O rio estava lá ao fundo. Parecia tratar-se duma região diferente.
Os guerrilheiros ainda montaram a artilharia ligeira mas, quando os soldados portugueses dispararam, tentaram escapar-se para o rio. Foram avistados pelos nossos fuzileiros e deu-se a debandada completa.  
O que espanta nessa história, que é relatada por Carlos Fabião, não é a ignorância das condições do terreno por parte de um capitão cubano. Admira é que os comandantes dos bigrupos, que conheciam bem o território onde lutavam, o tenham seguido. Grande seria o prestígio de Fidel Castro na África Equatorial…



sexta-feira, 12 de julho de 2013

                                            
                              AMÍLCAR CABRAL  

                                      LIV       

                  AS MULHERES



      São bem conhecidas as posições de Amílcar Cabral sobre a necessidade de promover a evolução social das mulheres. Isso é refletido em vários dos seus textos. Lembremos alguns:
“Nas condições da nossa terra, qualquer pessoa que manda pode ter, em geral, tantas mulheres quantas quer. Essa é que é a África de hoje ainda. Vejamos os ministros da África em geral: quantas mulheres têm? Mas não avançam nada com a sua terra. Temos que cortar isso na nossa terra completamente.”
“Um bom responsável do nosso Partido, um bom dirigente, tem que ser capaz, como um homem que tem necessidade de uma mulher, ou como uma mulher que tem necessidade de um homem − porque é normal ter-se uma companhia − de escolher seriamente a sua companhia, para dar exemplo como deve ser.”
 “Alguns camaradas fazem o máximo para evitar que as mulheres mandem, embora por vezes haja mulheres que têm mais categoria para mandar do que eles”. “
“Há camaradas homens, alguns, que não querem entender que a liberdade para o nosso povo quer dizer liberdade também para as mulheres, a soberania para o nosso povo quer dizer que as mulheres também devem participar nisso para mandarem também, com os homens. Muita gente diz que Cabral está com as suas manias de pôr as mulheres a mandar também”.
        “Aparece uma rapariga, esperta, mais ou menos bonita, em vez de a ajudar, dar-lhe a mão para avançar, para ser enfermeira, ser professora, para ir estudar, para ser uma boa miliciana, ou qualquer outra coisa, não, faz dela sua amante; porque é muito bonita e ele é que tem o direito de tomar conta dela. Temos de acabar com isso.”
“Quem quer uma bajuda, hoje ou amanhã, pode arranjá-la, conquistá-la, casar com ela, mas não utilizar a autoridade do Partido para ter tantas mulheres quantas deseja. Enquanto houver isso, estaremos a enganar-nos e a dar razão aos tugas e a todos os inimigos do nosso povo”.
Se o seu posicionamento político é claro, pouco se sabe, contudo, sobre o seu relacionamento íntimo com o belo sexo. Consta que, enquanto adolescente no Mindelo, chegou a ser conhecido como conquistador. Bebeu de culturas (a guineense, sobretudo,) em que a poligamia tinha raízes fundas. É natural que, nos meios urbanos, se começassem a generalizar as uniões monogâmicas, mas as bajudas eram uma atração a que só os santos se mostravam capazes de resistir e não consta que tenha havido muitos na África Equatorial. Verdadeiro ou falso, deixamos aqui este texto:  
 “Conhecido o fraco do secretário-geral por mulheres, Awa Cassamá, uma mulher fula conhecida pela sua invulgar beleza, com dois filhos já adultos a servirem nas FARP, foi abordada pelos conspiradores para atrair Cabral para uma cilada.” Recusou participar e procurou avisar Amílcar Cabral da ameaça. Foi assassinada".
Amílcar Cabral casou por duas vezes. Em Lisboa, desposou uma colega de curso, Maria Helena de Athayde Vilhena Rodrigues. Tiveram duas filhas, Iva e Ana Luísa.
 Maria Helena nascera em Chaves e era filha de um capitão médico que perdera em África as duas pernas. Conseguira bolsas de estudo para o Liceu e para a Universidade.
 O ensino era muito exigente no Instituto Superior de Agronomia (ISA). Só chegou ao terceiro ano uma minoria das duas centenas de alunos que tinham começado o curso juntos. Cabral ajudava Maria Helena nos estudos. O futuro líder do PAIGC distinguia-se no ISA pela inteligência e pelo trabalho. Estava sempre disposto a partilhar os seus conhecimentos e era popular entre os seus colegas. Helena considerava-o “uma pessoa extraordinária, com uma grande cabeça”. Admirava-lhe também a cultura. “Todas as vezes que nos encontrávamos, Amílcar trazia um livro sobre questões políticas ou sociais”.
 Quando se soube que Helena se dava com Amílcar Cabral e frequentava a Casa dos Estudantes do Império, começaram a chamar-lhe comunista.
  Amílcar foi a Chaves conhecer a mãe da namorada. Viu-se rodeado pela curiosidade dos miúdos da terra, muitos dos quais nunca tinham visto um negro. Ao passearem juntos em Lisboa, chegava a ser insultado por andar com uma branca. É provável que se sentisse magoado, mas relativizava esses incidentes, atribuindo-os à ignorância e à pobreza.
  As amigas aconselharam Maria Helena a deixar o preto. Ela não lhes deu importância. Casou e acabou por perder a bolsa de estudos, numa altura em que lhe faltavam poucas cadeiras para acabar o curso. O casamento foi modesto. A seguir à cerimónia, os noivos almoçaram sozinhos. Fizeram depois uma festa em que participaram Alda Espírito Santo, Julieta Espírito Santo, Mário Pinto de Andrade e Agostinho Neto.
O jovem casal conheceu dificuldades. Para pagar as contas, foram dando explicações a alunos do liceu e da Faculdade.
Seguiu-se a estadia na Guiné-Bissau. Ali nasceu Iva, a primeira filha. Ao fim de três anos na Guiné, regressaram doentes. Enquanto Amílcar se empregou em Santos, na Brigada Fitossanitária, Maria Helena concluiu a tese.
Quando os antigos professores arranjaram trabalho para Amílcar em Angola, Maria Helena acompanhou-o. Deu aulas em Luanda e no Lobito.
De volta a Lisboa, e entre as idas e vindas de Amílcar, alugaram casa na Avenida Infante Santo. Por essa altura, perceberam que estavam a ser vigiados. À data, Marcelino dos Santos e Mário Pinto de Andrade já tinham deixado Portugal.
Os problemas do casal parecem ter começado quando Amílcar Cabral se deslocou a Paris e comunicou à esposa, por carta, que não regressava. Cabral fizera a escolha decisiva da sua vida e não sabia como gerir a situação da família. Maria Helena resolveu juntar-se ao marido em França. Ele ainda lhe pediu que voltasse a Lisboa. O receio da polícia política fê-lo mudar de ideias. A mulher e a filha estariam mais seguras no estrangeiro.
No ano seguinte, Ana Maria saiu de Portugal e instalou-se em Paris, em casa de amigos. Esteve ali 8 meses, mas Amílcar Cabral fez-lhes pouca companhia. Começara a grande aventura.
O casal acabou por se fixar em Conakry. Ao tempo, a debandada dos quadros franceses deixara o país sem funcionários qualificados. Maria Helena chegou à capital da República da Guiné com a pequena filha Iva e conseguiu facilmente emprego como professora do liceu. Cabral ainda se empregou como técnico agrícola, mas, algum tempo depois, deixou o trabalho para se dedicar exclusivamente à organização da revolta contra Portugal. Viviam com dificuldades, mas iam chegando os amigos: Luís Cabral, Aristides Pereira com a mulher e Abílio Duarte. Helena voltou a engravidar. Amílcar convenceu-a a passar a gravidez em Marrocos (Rabat), onde os cuidados médicos eram melhores.
Embora o que se passava no casal dentro de portas fosse mal conhecido, teriam crescido as divergências, inclusive de índole política. Cabral não quis a mulher de volta a Conakry após o nascimento da segunda filha.
O casal separou-se formalmente em 1966. Ainda antes do ano acabar, Cabral casou-se com Ana Maria Voss e Sá, natural da Guiné e antiga estudante na Checoslováquia. Foi dela que teve a terceira filha, N`Dira Abel.


Segundo um comentário da Internet, Ana Maria Voss e Sá teria casado em primeiras núpcias com José Alves Monteiro, o “Gin” do Ouro Negro, quando o conjunto musical era um trio. A notícia não é relevante, mas não deixa de ser curiosa. Não fui capaz de excluir uma coincidência de nomes.
Maria Helena ligou-se aos oposicionistas portugueses refugiados em Marrocos. Acabou por casar, em Rabat, com Henrique Cerqueira, ajudante de campo do general Humberto Delgado. Após o 25 de abril, Maria Helena regressou a Portugal.
Diana Andringa entrevistou Ana Maria: “Quando o conheci, numa casa da Rua Actor Vale, em Lisboa, não o associei a esse Amílcar Cabral de cujo trabalho na Guiné já tínhamos ouvido os ecos. O engenheiro que me apresentaram não parecia capaz de fazer nada disso…” Ana Maria Cabral ria-se, quando contou esta história.
Segundo o seu testemunho, a confiança exagerada do marido nos companheiros e camaradas abreviou-lhe a vida. Amílcar detestava escoltas e seguranças. Quando alguém do PAIGC procedia mal e era preso, procurava libertá-lo depressa.
Ana Maria testemunhou o assassinato do marido, frente à casa onde habitavam, em Conakry. Apesar da escuridão, foi capaz de reconhecer alguns dos matadores. Não lhe fizeram mal. Ela não era uma personalidade importante do partido e, afinal de contas, era guineense.
 Muitos casamentos são precários e falham por causas variadas. É fácil imaginar que Amílcar Cabral desse conta das dificuldades de aceitação da sua liderança de parte de alguns militantes guineenses do PAIGC. Já lhe bastava ser cabo-verdiano. Ainda por cima, ter uma esposa branca… 
Cabral morreu, mas as suas lições perduram. Disse, em tempos, aos seus companheiros de luta:

“Aqueles que entenderam bem que um homem enquanto tiver três, quatro mulheres, nunca será um homem de verdade e que não há nenhum povo que possa avançar com homens com quatro mulheres”

quarta-feira, 10 de julho de 2013



                                                                                            Capítulo XI

Passada meia hora, Mellie bateu à porta e Joshua foi abrir.
 “ Quem seria aquela pessoa que Margaret dizia ser tão importante?” – Pensava a rapariga. Até que lhe abriram a porta.
- Joshua, o que estás a fazer aqui? – Disse, depois de o beijar. – Lasone disse que tinhas de ficar escondido.
- Fréderique não sabe que estou aqui. Eu não aguentava mais tempo fechado e por isso fugi. – Explicou MacLarens.
- Não podes fugir. É muito perigoso. O Marc fez o mesmo e vê como acabou. Tens de voltar para o teu esconderijo. – Disse, sussurrando.
Quando olhou em redor, viu Mitch e perguntou baixinho:
- Quem é aquele rapaz?
- Chama-se Mitch. Ele perdeu os pais e não tinha para onde ir. Não aguentei vê-lo sozinho. Seria demasiado doloroso para a minha consciência. – Respondeu, sussurrando também. – Mitch, anda cá.
O rapaz aproximou-se e Mellie perguntou-lhe:
- Que idade tens?
- Tenho doze, quase treze.
- Conheço alguém aqui perto que poderá gostar de falar contigo. Volto já. - Disse Mellie.
Percorreu um quarteirão e tocou à campainha.
- Mellie, o que faz aqui? –Perguntou a mulher que abriu a porta.
- Dionise, vim perguntar se o Guillermo quer vir a minha casa. Tenho uma visita que ele poderá gostar. 
- Guillermo, a Mellie convidou-te para ires a casa dela brincares com um rapaz. – Disse a mulher.
Quando disse isto, um rapaz desceu a correr as escadas. Guillermo não tinha muitos amigos na zona e, por isso quando não havia escola, não tinha ninguém com quem brincar. E, por essa razão adorava quando a sua mãe lhe dizia que tinha companhia, ele ficava felicíssimo.
  - Anda, o Mitch está à nossa espera. –Disse Mellie.
 Quando voltaram, os dois rapazes, ambos tímidos não falaram muito. Mas no  momento em que Joshua lhes mostrou uma bola, começaram a divertir-se juntos, mais do que Mitch nos últimos dias se divertira.
- Agora que os rapazes já estão entretidos, contas-me o teu plano? Achas que o Fréderique não irá descobrir que fugiste para aqui? – Perguntou Mellie, zangada.
- Não sei. Terei de pensar rapidamente. Eu não volto para aquela casa sozinho e, disso, Lasone pode ter a certeza.
- Mas aqui estás em perigo. Não te quero mal, por isso peço-te, que por muito  que seja doloroso, que voltes para o abrigo.
 Naquele momento, ouviu-se um estrondo. Fora Jean que arrombara a porta. Este vinha seguido de Fréderique, que disse a Joshua:
 - Estar aqui é cometer suicídio. Nós estamos a observá-lo desde que fugiu. Sabemos que conheceu  um rapazinho chamado Mitchell no comboio, que foi a uma loja comprar um mapa. E se nós conseguimos descobrir, o assassino do seu irmão também o pode fazer,
- Não volto para o abrigo. Pelo menos sozinho, sem a companhia da Mellie e do Mitch.
- Se for com ele, põe-nos numa situação perigosa. E nesse caso, em vez de podermos ter uma pessoa morta, ficamos em risco de ter três. E eu sei que não é isso que o senhor deseja. – Disse Lasone. 
Fréderique tinha razão, mas MacLarens não desistia facilmente. O que poderia ele fazer para arranjar uma solução em que ninguém ficasse em perigo? Foi aí que se lembrou.
       - O senhor e o resto da AFCC estão a vigiar-me durante o dia e a noite, certo? – Perguntou retoricamente. – Por isso, se alguém viesse para aqui para me ver a todas as horas, eu poderia ficar.
- Isso é uma decisão difícil. Como arranjaremos três agentes que o vigiassem em turnos? Nunca ninguém aceitaria mudar-se para aqui. Todos os que trabalham em Reims têm uma razão para se terem afastado do centro da cidade e da população. – Explicou Lasone.
- Tente, pelo menos. Haverá três agentes sem traumas da cidade. Por exemplo, o Jean vem a Paris muitas vezes, não se deve importar.
- Jean só vem, por ser um bom profissional. O senhor tem dois dias para arranjar três agentes da AFCC. Eu também tentarei, mas não prometo nada. – Disse o homem. – Mas se não conseguir, vai para  outro abrigo e ainda menos agradável que em Reims.
Dito isto, saiu da casa, juntamente com o guarda.
           
              Capítulo XII

          
- O que fazemos agora? – Perguntou Mellie.
- Agora… - MacLarens parou para pensar uns segundos e continuou – vai chamar os rapazes. Vamos distribuir tarefas. Eu não posso sair de casa, mas vocês podem.
Quando Mellie regressou com as crianças, Joshua dividiu as tarefas. Juntou Mitch com Margaret e Mellie com Guillermo. Os primeiros ficaram encarregados de telefonar a todos os polícias da AFCC de Reims e os segundos de ir ao laboratório procurar alguém que os ajudasse.
Passados cinquenta minutos, Mitch gritou que tinha arranjado um candidato. Mas que ele primeiro teria de ir lá visitar a casa e ver Joshua. Mesmo sendo perigoso, MacLarens marcou uma reunião para aquela tarde, uma hora depois.
Quando o polícia chegou, MacLarens convidou-o a entrar.
- Sou o Sebastien, o polícia que contataram. Qual de vocês é Joshua MacLarens? – Perguntou.
- Sou eu. Decerto conhece Fréderique Lasone, chefe da AFCC. Ele diz que eu corro perigo por razões que nem eu compreendo bem e por isso preciso de pelo menos três polícias que me vigiem em turnos, todos os dias. É difícil arranjar alguém que aceite estas condições e, para dificultar ainda mais, só temos dois dias para encontrar os três. – Explicou MacLarens.
- Vejo que estão numa situação complicada. Eu tenho mulher e uma filha. Seria possível o meu turno ser à noite, para passar o dia com elas? – Perguntou o polícia.
- Sim, claro. Isso é a sua maneira de dizer que aceita?
- Obviamente que não é uma decisão fácil. Mas é melhor que trabalhar na AFCC de Borgonha, longe da família. – Disse Sebastien.
- Pode começar a trabalhar já amanhã cedo. Depois preparamos melhor os pormenores.
- Concordo. Quando arranjar os três agentes, comunicarei com eles.


                              LIV

      A GUERRA ALÉM FRONTEIRAS


A guerra de libertação da Guiné foi, desde o início, um conflito  em parte internacional. Os guerrilheiros eram vestidos, armados e (no começo) treinados por potências estrangeiras. Atacavam muitas vezes as nossas posições a partir de santuários instalados nos países limítrofes e voltavam para lá quando eram perseguidos. O PAIGC era apoiado pela China, por Cuba e pelo bloco de leste. No entanto, na parte final na guerra, também os países nórdicos forneceram aos guerrilheiros uma ajuda importante.
Os portugueses preparavam o próprio exército, mas apenas fabricavam as espingardas semiautomáticas G3, as munições para elas e o fardamento. Para todo o material mais pesado, incluindo as metralhadoras ligeiras e pesadas, os lança-granadas-foguete, a artilharia, os carros de combate, as lanchas armadas e os aviões de transporte e de combate dependiam dos fornecimentos dos seus aliados da NATO.
Pelo menos durante os primeiros anos de luta armada, o chão da Guiné-Bissau foi palco de um dos múltiplos conflitos do confronto este-oeste. A chamada “guerra fria” chegou com frequência a escaldar.
À luta entre os rebeldes nacionalistas e as tropas coloniais portuguesas associou-se, quase desde o início, um componente de guerra civil que atingiu o auge quando a “africanização” das tropas que combatiam sob a bandeira portuguesa se desenvolveu mais.         
 Portugal nunca esteve em guerra com a República da Guiné. No entanto, beneficiando da conjuntura internacional, o presidente Sekou Touré acolhia fraternalmente no seu território os guerrilheiros que combatiam os portugueses. Ali tinham campos de treino e ali encontravam abrigo sempre que necessário. Era pelo território da Guiné-Conakry que entrava o armamento destinado ao PAIGC, ainda que as más-línguas dissessem que os guineenses, quando podiam, ficavam com parte das remessas. Conakry era a residência habitual de Amílcar Cabral. Funcionava na capital guineense uma escola-piloto para quadros do partido. O facto provavelmente mais grave era a existência, num país soberano oficialmente alheio ao conflito armado, de uma prisão onde eram aferrolhados os prisioneiros de guerra portugueses.
Seriam razões de sobra para Portugal levar a cabo ações militares contra a República da Guiné e dos seus dirigentes, se fosse outro o panorama político internacional.
Mais tarde, também o Senegal acoitou os guerrilheiros e deu apoio logístico e militar a quem combatia uma Nação à qual não tinham declarado guerra. O Direito Internacional estava feito em pedaços. Nenhum dos lados o respeitava.
As grandes organizações internacionais favoreciam claramente os guerrilheiros. O colonialismo era condenado repetidamente. Com o tempo, também as opiniões públicas internacionais se inclinaram nitidamente para o lado dos que defendiam as independências dos próprios países. Portugal era dos pouco países no mundo que ainda conservava possessões ultramarinas, numa altura em que o colonialismo se fizera já anacrónico. Os colonos eram os maus da fita. Tudo o que se fizesse contra eles estava justificado pela História.
Essa questão ainda hoje não é pacífica na sociedade portuguesa. Passaram quarenta anos sobre o 25 de abril e as independências das colónias e estabeleceram-se relacionamentos normais e até laços de amizade com todos os Estados Africanos anteriormente colonizados por Portugal, mas as feridas subsistem. Os soldados portugueses que se bateram pelo que lhes tinham ensinado ser a sua Pátria devem ser considerados heróis ou criminosos de guerra? A meu ver, nem uma coisa nem outra. Foram simplesmente soldados de Portugal, embora houvesse entre eles heróis e criminosos.
Cada época tem a sua moral.
Os militares portugueses começaram cedo a passar para o outro lado das fronteiras na perseguição dos seus inimigos. Adiantavam-se geralmente poucos quilómetros e voltavam a recuar. Essas operações eram habitualmente de pequena envergadura. Com o tempo, a guerra transfronteiriça subiu de intensidade.
Entre 1969 e 1970, a situação militar deteriorou-se na região norte da Guiné. A dada altura, tornou-se necessário desalojar um contingente importante do PAIGC colocado numa base situada do lado de lá da fronteira com a Guiné-Conakry. Coube a Carlos Fabião fazer o primeiro ataque importante a instalações do PAIGC na República da Guiné. Ouçamo-lo:
A operação foi planeada a nível do comandante-chefe e, quando foi altura de reunir o comando da unidade, Spínola disse: «Disseram-me que há aí um oficial que foi promovido por distinção e que é muito conceituado. Vai esse.» Ele não me conhecia, foi assim que me nomeou. Fui ao palácio, falei com o Spínola, que me deu instruções. Comandei essa operação, que correu muitíssimo bem. Tivemos sorte. Tinha três companhias de caçadores, uma bateria de artilharia e a aviação. Os homens do PAIGC estavam na República da Guiné, tinham uma base encostada à fronteira e eu, quando fui de avião, vi a base e pedi ao oficial de Artilharia que ia comigo para fazer um plano de fogo. À tarde, quando estávamos na reunião, eu disse a Spínola que tinha visto a base do lado de lá e ele ordenou-me que bombardeasse. Fiquei indeciso e Spínola perguntou-me se eu estava com medo. Depois deu-me a ordem por escrito. A artilharia acertou em cheio. Tivemos a sorte daquilo cair nos paióis e incendiou-se tudo. Foi a primeira vez que atacámos a República da Guiné. Foi talvez a operação em que eles tiveram mais baixas. A partir daí criou-se o gosto de atacar bases na República da Guiné.
Ouçamos também Pereira da Costa, outro dos “rapazes” de Spínola:
Na Guiné, onde a ameaça antiaérea obrigou a reduzir substancialmente o apoio aéreo que muitas vezes resolvia a situação tática que se vivia no terreno, o "empréstimo" de artilharia de campanha por parte da República da Guiné ao PAIGC, permitiu criar uma situação de superioridade pontual na fronteira Sul.
A operação Mar Verde foi, de todas as intervenções além-fronteiras, a que dispôs de meios mais importantes e de planeamento mais pormenorizado. Falhou, no essencial, por incompetência da PIDE: ninguém sabia que Amílcar Cabral se ausentara de Conakry, o que ainda se podia aceitar, nem que os MIG da Força Aérea da Guiné haviam sido mudados para outro aeroporto, o que se mostrou determinante para o insucesso parcial da aventura. O eventual apoio aos adversários de Sekou Touré com vista a um golpe de estado foi obviamente sobre avaliado.
No rescaldo, Portugal foi enxovalhado na imprensa internacional, que aceitava, com certo despudor, o apoio ativo a atos de guerra da parte dos países fronteiriços (República da Guiné e Senegal). O maior perdedor da Operação Mar Verde não foi, contudo, o governo português. Terá sido a NATO. A União Soviética aproveitou a oportunidade para instalar a almejada base em Conakry. O pretexto foi, naturalmente, obviar a outros ataques da marinha imperialista portuguesa.
Fica no ar a suspeita de alguma loucura no imaginar da expedição. Se as vantagens do derrube do regime de Sekou Touré e a sua substituição por um governo mais favorável aos interesses portugueses são fáceis de entender, a captura ou assassinato de Amílcar Cabral iria servir-nos de pouco.  O PAIGC era já um partido em movimento imparável e a perda do seu líder histórico não o iria abalar de forma significativa. Isso viu-se em janeiro de 1973, quando os seus companheiros o mataram. Pelo contrário, perdia-se um interlocutor. Spínola, quando autorizou a operação, devia ter o monóculo embaciado.