DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 10 de julho de 2013


                              LIV

      A GUERRA ALÉM FRONTEIRAS


A guerra de libertação da Guiné foi, desde o início, um conflito  em parte internacional. Os guerrilheiros eram vestidos, armados e (no começo) treinados por potências estrangeiras. Atacavam muitas vezes as nossas posições a partir de santuários instalados nos países limítrofes e voltavam para lá quando eram perseguidos. O PAIGC era apoiado pela China, por Cuba e pelo bloco de leste. No entanto, na parte final na guerra, também os países nórdicos forneceram aos guerrilheiros uma ajuda importante.
Os portugueses preparavam o próprio exército, mas apenas fabricavam as espingardas semiautomáticas G3, as munições para elas e o fardamento. Para todo o material mais pesado, incluindo as metralhadoras ligeiras e pesadas, os lança-granadas-foguete, a artilharia, os carros de combate, as lanchas armadas e os aviões de transporte e de combate dependiam dos fornecimentos dos seus aliados da NATO.
Pelo menos durante os primeiros anos de luta armada, o chão da Guiné-Bissau foi palco de um dos múltiplos conflitos do confronto este-oeste. A chamada “guerra fria” chegou com frequência a escaldar.
À luta entre os rebeldes nacionalistas e as tropas coloniais portuguesas associou-se, quase desde o início, um componente de guerra civil que atingiu o auge quando a “africanização” das tropas que combatiam sob a bandeira portuguesa se desenvolveu mais.         
 Portugal nunca esteve em guerra com a República da Guiné. No entanto, beneficiando da conjuntura internacional, o presidente Sekou Touré acolhia fraternalmente no seu território os guerrilheiros que combatiam os portugueses. Ali tinham campos de treino e ali encontravam abrigo sempre que necessário. Era pelo território da Guiné-Conakry que entrava o armamento destinado ao PAIGC, ainda que as más-línguas dissessem que os guineenses, quando podiam, ficavam com parte das remessas. Conakry era a residência habitual de Amílcar Cabral. Funcionava na capital guineense uma escola-piloto para quadros do partido. O facto provavelmente mais grave era a existência, num país soberano oficialmente alheio ao conflito armado, de uma prisão onde eram aferrolhados os prisioneiros de guerra portugueses.
Seriam razões de sobra para Portugal levar a cabo ações militares contra a República da Guiné e dos seus dirigentes, se fosse outro o panorama político internacional.
Mais tarde, também o Senegal acoitou os guerrilheiros e deu apoio logístico e militar a quem combatia uma Nação à qual não tinham declarado guerra. O Direito Internacional estava feito em pedaços. Nenhum dos lados o respeitava.
As grandes organizações internacionais favoreciam claramente os guerrilheiros. O colonialismo era condenado repetidamente. Com o tempo, também as opiniões públicas internacionais se inclinaram nitidamente para o lado dos que defendiam as independências dos próprios países. Portugal era dos pouco países no mundo que ainda conservava possessões ultramarinas, numa altura em que o colonialismo se fizera já anacrónico. Os colonos eram os maus da fita. Tudo o que se fizesse contra eles estava justificado pela História.
Essa questão ainda hoje não é pacífica na sociedade portuguesa. Passaram quarenta anos sobre o 25 de abril e as independências das colónias e estabeleceram-se relacionamentos normais e até laços de amizade com todos os Estados Africanos anteriormente colonizados por Portugal, mas as feridas subsistem. Os soldados portugueses que se bateram pelo que lhes tinham ensinado ser a sua Pátria devem ser considerados heróis ou criminosos de guerra? A meu ver, nem uma coisa nem outra. Foram simplesmente soldados de Portugal, embora houvesse entre eles heróis e criminosos.
Cada época tem a sua moral.
Os militares portugueses começaram cedo a passar para o outro lado das fronteiras na perseguição dos seus inimigos. Adiantavam-se geralmente poucos quilómetros e voltavam a recuar. Essas operações eram habitualmente de pequena envergadura. Com o tempo, a guerra transfronteiriça subiu de intensidade.
Entre 1969 e 1970, a situação militar deteriorou-se na região norte da Guiné. A dada altura, tornou-se necessário desalojar um contingente importante do PAIGC colocado numa base situada do lado de lá da fronteira com a Guiné-Conakry. Coube a Carlos Fabião fazer o primeiro ataque importante a instalações do PAIGC na República da Guiné. Ouçamo-lo:
A operação foi planeada a nível do comandante-chefe e, quando foi altura de reunir o comando da unidade, Spínola disse: «Disseram-me que há aí um oficial que foi promovido por distinção e que é muito conceituado. Vai esse.» Ele não me conhecia, foi assim que me nomeou. Fui ao palácio, falei com o Spínola, que me deu instruções. Comandei essa operação, que correu muitíssimo bem. Tivemos sorte. Tinha três companhias de caçadores, uma bateria de artilharia e a aviação. Os homens do PAIGC estavam na República da Guiné, tinham uma base encostada à fronteira e eu, quando fui de avião, vi a base e pedi ao oficial de Artilharia que ia comigo para fazer um plano de fogo. À tarde, quando estávamos na reunião, eu disse a Spínola que tinha visto a base do lado de lá e ele ordenou-me que bombardeasse. Fiquei indeciso e Spínola perguntou-me se eu estava com medo. Depois deu-me a ordem por escrito. A artilharia acertou em cheio. Tivemos a sorte daquilo cair nos paióis e incendiou-se tudo. Foi a primeira vez que atacámos a República da Guiné. Foi talvez a operação em que eles tiveram mais baixas. A partir daí criou-se o gosto de atacar bases na República da Guiné.
Ouçamos também Pereira da Costa, outro dos “rapazes” de Spínola:
Na Guiné, onde a ameaça antiaérea obrigou a reduzir substancialmente o apoio aéreo que muitas vezes resolvia a situação tática que se vivia no terreno, o "empréstimo" de artilharia de campanha por parte da República da Guiné ao PAIGC, permitiu criar uma situação de superioridade pontual na fronteira Sul.
A operação Mar Verde foi, de todas as intervenções além-fronteiras, a que dispôs de meios mais importantes e de planeamento mais pormenorizado. Falhou, no essencial, por incompetência da PIDE: ninguém sabia que Amílcar Cabral se ausentara de Conakry, o que ainda se podia aceitar, nem que os MIG da Força Aérea da Guiné haviam sido mudados para outro aeroporto, o que se mostrou determinante para o insucesso parcial da aventura. O eventual apoio aos adversários de Sekou Touré com vista a um golpe de estado foi obviamente sobre avaliado.
No rescaldo, Portugal foi enxovalhado na imprensa internacional, que aceitava, com certo despudor, o apoio ativo a atos de guerra da parte dos países fronteiriços (República da Guiné e Senegal). O maior perdedor da Operação Mar Verde não foi, contudo, o governo português. Terá sido a NATO. A União Soviética aproveitou a oportunidade para instalar a almejada base em Conakry. O pretexto foi, naturalmente, obviar a outros ataques da marinha imperialista portuguesa.
Fica no ar a suspeita de alguma loucura no imaginar da expedição. Se as vantagens do derrube do regime de Sekou Touré e a sua substituição por um governo mais favorável aos interesses portugueses são fáceis de entender, a captura ou assassinato de Amílcar Cabral iria servir-nos de pouco.  O PAIGC era já um partido em movimento imparável e a perda do seu líder histórico não o iria abalar de forma significativa. Isso viu-se em janeiro de 1973, quando os seus companheiros o mataram. Pelo contrário, perdia-se um interlocutor. Spínola, quando autorizou a operação, devia ter o monóculo embaciado.



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