DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 29 de abril de 2017


  REMEXIDO
O HOMEM DA SERRA
  O guerrilheiro miguelista que passou à história com o nome de Remexido chamou-se José Joaquim de Sousa Reis e nasceu em Estômbar (Lagoa), em 1796, numa família de camponeses pobres. Foi fuzilado em Faro, no dia 2 de agosto de 1838.
  Órfão aos sete anos, foi recolhido por José Joaquim de Sousa, prior de Alcantarilha, seu tio e padrinho. Aos catorze anos, entrou para o Seminário de Faro. Recebeu as Ordens Menores pelos vinte anos. Por essa altura, apaixonou-se pela Maria Clara, sobrinha do capitão de ordenanças Manuel Inácio de Bastos, e desistiu da vida eclesiástica. A família da moça opôs-se a um namoro desigual, mas o rapaz não desistiu das suas pretensões e levou a sua intenção avante. O casamento foi celebrado pelo padre Alexandre José Águas, o qual, anos volvidos, seria assassinado pela guerrilha do antigo noivo. 

O casamento fez de Joaquim Reis um homem abastado. Não nascera guerreiro e tinha vistas largas. Outros tempos teriam feito dele um cidadão de valor para a terra. Interessou-se pelo desenvolvimento de São Bartolomeu, ajudando a criar uma escola, um forno comunitário e uma feira anual.
A guerra entre liberais e absolutistas veio marcar-lhe o destino. 
Era alferes de ordenanças, uma força miliciana, e colocou-se ao lado das tropas absolutistas de D. Miguel. Quando o visconde de Molellos foi encarregado de organizar a defesa do Algarve, face à ameaça de desembarque das tropas liberais, nomeou José Joaquim de Sousa Reis comandante dos Terços de Ordenanças de Silves. O Remexido passava a ter às suas ordens cerca de três centenas e meia de homens armados. 
Sob o comando do brigadeiro Tomás Cabreira, ajudou a derrotar o marquês de Sá da Bandeira na batalha de Sant`Ana da Serra, em 1834.  
Quando o duque da Terceira invadiu o Algarve, Molellos retirou para o Alentejo. Parte da tropa regular miguelista depôs as armas. Alguns militares associaram-se em pequenas unidades de guerrilha, a que se foram juntando populares que pretendiam beneficiar dos saques.
O Remexido ficou e refugiou-se na serra.
Quando as tropas liberais deixaram o Algarve e partiram para a conquista de Lisboa, deixaram pequenas guarnições nas principais vilas e cidades do litoral, como Lagos, Silves, Portimão, Olhão e Tavira.
As forças miguelistas aproveitaram-se da retirada da maior parte das forças liberais para prosseguirem a guerra na região. O major André Camacho Barbosa encontrava-se em Almodôvar. A 24 de julho de 1933, enquanto os liberais tomavam Lisboa, atacou a vila de Loulé e passou pelas armas os cidadãos conotados com os liberais.


   O Remexido foi encarregado de reconquistar as povoações do barlavento, de Lagos a Albufeira. Como não dispunha de um aquartelamento fixo, subscrevia as proclamações “em quartel volante”. Uma das suas primeiras iniciativas foi atacar a própria aldeia de S. Bartolomeu de Messines, a 19 de julho de 1933. Eliminou a guarnição e chacinou alguns cidadãos que não eram da sua simpatia.
O seu grupo obteve um sucesso considerável nas ações militares, mas depressa ficou conotado com uma série de crimes cometidos contra os adversários políticos, no Algarve e no sul do Alentejo. Em 26 de julho de 1833, na vila de Albufeira, o Remexido terá sido responsável, ou conivente, no massacre de liberais. Aconteceu uma chacina. Bandidos sedentos de ouro e de sangue roubaram, violaram mulheres indefesas, fuzilaram e acutilaram homens e crianças. Ninguém contou os cadáveres, que foram enterrados em valas comuns. Durante algum tempo, Albufeira ficou conhecida com a “Vila Negra”.


Era preciso pagar aos homens e alimentá-los. Os cofres públicos e as lojas de venda de tabaco eram os alvos mais apetecidos. Na falta deles, os guerrilheiros saqueavam as pessoas conotadas com a causa liberal. Roubavam tudo o que podia ter valor, mas não ficavam por aí, Arrombavam adegas e celeiros, despejavam vinhos e azeites e destruíam as colheitas. Aconteceu assim em Alcantarilha, Mexilhoeira, Ferragudo, Porches e nas vilas de Portimão e Lagoa. Nem Estômbar, a sua terra natal, escapou à pilhagem. Toda a zona do barlavento algarvio foi devastada pela guerrilha do Remexido. Lagos, que dispunha de uma guarnição militar suficiente, escapou à pilhagem.


No final oficial da guerra, em lugar de lhe concederem o perdão a que, nos termos da Convenção de Évora-Monte (1834), tinha direito, as novas autoridades liberais sujeitaram a esposa do guerrilheiro ao espetáculo público da rapagem do cabelo e à aplicação de palmatoadas no adro da igreja de Messines, castigos atribuído na época às prostitutas. Mataram-lhe ainda um filho de 14 anos. O povo irado incendiou e pilhou-lhe a casa de família.
O Remexido não reagiu de imediato. Consta que esteve escondido durante vários meses numa gruta do Vale do Barranco.
Regressado ao combate, prosseguiu a guerra, quase por conta própria. Para alimentar e municiar os seus homens, assaltava as quintas mais ricas, as aldeias, os viajantes e os portadores de correio.
A guerrilha foi, em parte, subsidiada pelo próprio D. Miguel e por partidários seus. No entanto, a maior parte do sustento dos guerrilheiros provinha dos assaltos.
   Em 26 de novembro de 1836, procurando dar novo alento à causa absolutista, D. Miguel nomeou para Governador do Reino no Algarve e Comandante Interino das Operações do Sul, o seu fiel servidor José Joaquim de Sousa Reis. O bandoleiro Remexido era agora governador, pelo menos em título.
A guerrilha do Remexido tinha o apoio dos “serrenhos” e assolou as povoações da região de Silves e Loulé. As autoridades locais propuseram uma política de terra queimada: concentrar os habitantes em localidades vigiadas, recolher o gado e até retirar as colmeias, a fim de se pôr fogo ao mato onde se acoitavam os guerrilheiros.
A serra passou a estar controlada por doze divisões militares. As alfaias agrícolas foram recolhidas para que não pudessem servir de armas e mesmo os ferreiros foram chamados às guarnições militares, para não apoiarem a cavalaria rebelde.
O Remexido dispersou parte das suas forças, misturando-as com as populações a que pertenciam. Os bandoleiros miguelistas resistiram às tropas da rainha até 1838, quatro anos passados sobre a convenção de Évora Monte.


No dia 28 de julho desse ano, soube-se que o Remexido estava na Portela da Corte das Velhas, à frente de duas centenas e meia de homens. O coronel Fontoura ordenou que seguissem imediatamente para lá quatro colunas militares regulares idas de Almodôvar, S. Martinho das Amoreiras e S. Bartolomeu de Messines. O inimigo foi localizado e cercado no Monte do Grou, perto de S. Marcos da Serra. O combate travado foi desigual e meia centenas de homens foi abatido pelo fogo legalista. Os guerrilheiros retiraram em desordem, deixando para trás o Remexido, que foi desarmado e preso.
  Quando se soube em Loulé do acontecido, o presidente da câmara mandou repicar os sinos e acender luminárias nas ruas. O prisioneiro pernoitou na cadeia local. No dia seguinte, partiu para Faro, onde foi julgado em Conselho de Guerra e fuzilado, apesar de, segundo se diz, a rainha D. Maria II lhe ter concedido o perdão. 
  O Remexido deixou a vida e entrou na lenda.
   

   Fonte:
REVISTA DO ARQUIVO MUNICIPAL DE LOULÉ n.º 13 2009 191. O Remexido e a resistência miguelista no Algarve. José Carlos Vilhena Mesquita (artigo recolhido na Internet).

sexta-feira, 28 de abril de 2017


JOÃO BRANDÃO


Outro quadrilheiro lendário da época do Zé do Telhado foi João Vítor da Silva Brandão. Nasceu em Midões (Tábua), em 1825, e morreu em Angola, em 1880. Acusado de numerosos assaltos na região natal, ficou conhecido como “O terror das Beiras”.
Parece ter sido mais politizado que Zé do Telhado. Detinha também outra cultura. Em 1870, quando estava preso na cadeia do Limoeiro, aguardando embarque para Angola, compôs os “Apontamentos da vida de João Brandão, por ele escritos nas prisões do Limoeiro, envolvendo a História da Beira desde 1834”.

                                                  Casa onde nasceu João Brandão

Em épocas conturbadas, nem sempre é fácil traçar a fronteira que separa os criminosos comuns de alguns guerrilheiros. À paz instituída entre liberais e miguelistas pela Convenção de Évora Monte, em 1934, seguiu-se um período de sobressalto. Dezenas de milhares de soldados deixaram as fileiras e não encontraram emprego. Os miguelistas, que antes haviam abusado do poder que detinham, eram agora os perseguidos. Houve confiscos, demissões massivas de funcionários e múltiplas retaliações. Terão ocorrido milhares de assassinatos políticos.
    Lisboa era longe e servida por más estradas. A ordem tradicional, assente na força dos concelhos e no regime do morgadio, soçobrara e não fora ainda substituído pelo poder central, que chegava às Beiras diluído. A influência do clero fora reduzida.  
O “Bando dos Brandões”, que incluía o João, os seus irmãos António e Roque, o pai e vários companheiros não aparentados, terá começado como um grupo de “voluntários da Rainha” que partiu de Midões para combater ao lado dos cartistas na guerra civil de 1846. Serviu primeiro os Cabrais. Após a Regeneração, ora apoiava o governo, ora a oposição.
 O bando terá perseguido os últimos realistas, certos ou suspeitos, que persistiam nas vilas beirãs. Com espadas, punhais e com as armas de fogo da época, impôs na região o medo e o fogo, substituindo os “caceteiros” miguelistas.


A época era de alianças instáveis e de associações improváveis. No rescaldo da Patuleia, João Brandão chegou mesmo a lutar ao lado do miguelista general Póvoas. A coerência política não seria determinante, nesses tempos agitados.
Hoje, a personalidade do chefe do bando continua mal conhecida. Como tantos, foi um fruto da sua época. Herói ou criminoso, provavelmente as duas coisas, valente sem dúvida, participou nas fraudes eleitorais comuns nesse período, colaborando nas “chapeladas” e condicionando o poder local.


Durante anos, os Brandões serviram diversos governos do país, o Tribunal da Relação do Porto e as autoridades de Coimbra e de Viseu.   
O triunfo da Regeneração, com o estabelecimento do rotativismo político e a pacificação de Portugal, tornou obsoletas as quadrilhas que haviam servido, com maior ou menor disciplina, os agentes do poder central. Chegara ao fim o tempo dos bandoleiros. Muitos foram abatidos pelas tropas regulares. Outros tiveram de prestar contas à Justiça.  
João Brandão foi preso na vila de Tábua, em junho de 1869. Foi acusado somente de um dos muitos crimes que lhe eram atribuídos: o assassinato de um padre. Bastou para que fosse condenado e desterrado para Angola, no ano seguinte.
Morreu no Bié, em 1880.
A condenação de João Brandão foi celebrada nas ruas de várias povoações beirãs. Organizaram-se festas populares para celebrar o fim de uma era de medo e violência.
A sua lenda continua a fazer parte da tradição cultural portuguesa. Quem não conhece esta cantiga?

                      «Lá vai o João Brandão,
                      A tocar o violão,
                      Casaco à moda na mão 
                      E atão? E atão? E atão?»


quinta-feira, 27 de abril de 2017


          ZÉ DO TELHADO



Curiosamente, há menos de três anos, um amigo meu, nascido no sul de Angola, contou-me uma história de família de que acabara de ter conhecimento.
No leito de morte, uma tia-avó pediu que os familiares se aproximassem e contou-lhes um segredo que guardara toda a vida. Eram descendentes do Zé do Telhado, que arranjara filhos fora de portas.
Eu tinha com o Zé do Telhado um relacionamento antigo e literário, enquanto companheiro de cárcere de Camilo Castelo Branco, na cadeia da Relação do Porto. O famoso bandoleiro protegeu o escritor de inimigos que ele arranjara na cadeia. Em troca, Camilo Castelo Branco convenceu o seu advogado, Marcelino de Matos, a defender gratuitamente José do Telhado. O causídico fez que o salteador fosse julgado como réu de uma única morte sem premeditação, e como caluniado na maioria dos roubos arguidos. José Teixeira foi apenas condenado a degredo perpétuo.
José Teixeira da Silva nasceu no Lugar do Telhado, Castelões de Recesinhos, Penafiel, em 1816. Filho de camponeses pobres, aos 14 anos foi viver com um tio na Sobreira, freguesia de Caíde de Rei, para aprender com ele o ofício. O tio era castrador de animais.
Ao chegar à maioridade, José Teixeira alistou-se no quartel de Cavalaria 2, “Os Lanceiros da Rainha”, em Lisboa. A sua unidade lutou contra os setembristas, pela restauração da Carta Constitucional, na revolta dos Marechais, em 1837.
Desmobilizado, recebeu autorização do tio para casar com sua prima Ana e regressou a Recesinhos. O casal viria a ter cinco filhos.
Em 1846, José Teixeira envolveu-se na Revolução da Maria da Fonte. Serviu sob as ordens do general Sá da Bandeira, a quem terá chegado a salvar a vida. Foi feito sargento e distinguiu-se por valentia em combate, sendo condecorado com a medalha de Cavaleiro da Torre e Espada, a mais alta condecoração portuguesa.
Finda a guerra, com a convenção de Gramido, as coisas correram-lhe mal. Amontoou dívidas que não conseguiu pagar. José Teixeira da Silva tornou-se no salteador Zé do Telhado. 

                   Zé do Telhado com um irmão
Foi o chefe da mais famosa quadrilha do Marão. Saqueou casas senhoriais em todo o Vale do Tâmega e em algumas regiões do Douro. É então que surge a lenda de que roubava aos ricos para dar aos pobres. Terá mantido, em geral, uma postura cortês, quase cavalheiresca, para os donos das casas assaltadas. Diz-se também, que distribuía parte dos saques pelas famílias pobres da vizinhança.
O bandido mais célebre do país foi capturado em março de 1859, quando procurava escapar-se para o Brasil. Conheceu, na cadeia da Relação do Porto, Camilo Castelo Branco, que o lembra nas “Memórias do Cárcere”.
Degredado para Angola, aos 45 anos, viveu em Malange. Fez-se comerciante, negociando no que podia: borracha, cera e marfim. Prosperou. Juntou-se a uma negra, de quem teve três filhos, mas continuou a enviar regularmente dinheiro à esposa. Era conhecido como o Kimuezo, um homem de barbas grandes.
Morreu de varíola, aos 59 anos. Foi sepultado em Xissa, perto de Mucari, a 50 quilómetros de Malange.

Sepultura de Zé do Telhado

De modo curioso, que poderá  ter ou não a ver  com a lenda de salteador na Europa, foi-lhe levantada uma sepultura invulgar, uma espécie de mausoléu. Diz-se que continua a estar bem cuidada, como se existisse alguma forma de culto.





quarta-feira, 26 de abril de 2017


 BANDOLEIROS EM PORTUGAL

NA PRIMEIRA METADE 

DO SÉCULO XIX

     João Brandão

O fenómeno das guerrilhas nasceu em Portugal, no começo do século XIX, como reação patriótica contra as invasões francesas.
Mais tarde, a instabilidade política e social em que o país mergulhou, com as lutas prolongadas entre liberais e absolutistas, com revoltas e golpes de estado sucessivos, enfraqueceu a autoridade pública e permitiu que proliferasse o banditismo. Com as quadrilhas engrossadas por desertores, as populações viviam alarmadas.
Durante esse período conturbado em que a lei não chegava a toda a parte, aconteceu algumas vezes que as forças políticas e militares que se defrontavam aceitassem a aliança de grupos de bandoleiros. Por outro lado, certos chefes de guerrilha resvalaram para atividades criminosas.
Tempos de exceção são fábricas de lendas. Irei falar de alguns personagens que se notabilizaram na época, nem sempre pelas melhores razões.

                                                      Remexido
José Joaquim de Sousa Reis, o Remexido, miguelista, era de Lagoa e atuava no Algarve.
José do Telhado terá posto a sua quadrilha ao lado dos setembristas, durante a guerra civil de 1846-1847.
João Brandão, de Midões, espalhou o terror nas Beiras, ao serviço dos Cabrais. Com a Regeneração, passou a “influente” político local, aliando-se umas vezes ao governo e outras à oposição.
Os Marçais de Foz Coa, cartistas, desestabilizaram a região durante dezenas de anos.
Curiosamente, tanto o Zé do Telhado como o João Brandão e o António Marçal receberam altas condecorações militares. O Remexido, tanto quanto sei, não foi condecorado, mas foi nomeado, por D. Miguel, governador do Algarve.


A questão das guerrilhas e do banditismo tem sido teorizada.
Hobsbawm, citado por Célia Taborda da Silva, define aquele a quem chama “bandido social”: «é um camponês fora da lei que o senhor e o Estado consideram como um criminoso, mas que permanece no seio da sociedade camponesa, a qual vê nele um herói, um campeão, um vingador, um justiceiro, talvez mesmo um libertador e, em qualquer caso, um homem que convém admirar, ajudar e manter». O bandido seria “a ponta da lança” do protesto das massas rurais contra as estruturas sociais opressoras.
É impossível não lembrar, nesta altura, os textos de Mao Tse Tung e de Che Guevara.
Hobsbawm vai mais longe e divide os bandidos em três tipos:
«Bandido Generoso», que só mata em legítima defesa e rouba os ricos para dar aos pobres.
«Vingador», bandido cruel, temido e ao mesmo tempo admirado pela população.
 «Haiducs», específicos dos Balcãs, bandidos que atacam os opressores da comunidade.
 Nesta classificação, em Portugal, o único dos bandoleiros famosos a que se pode chamar “generoso” é o Zé do Telhado.  

Fonte: 
Taborda Silva, Célia. Guerrilheiros e bandidos no Douro na primeira metade do século XIX. Douro – Estudos & Documentos, vol. I (3), 1997 (2º), 111-122.

quinta-feira, 20 de abril de 2017



AINDA O ACORDO ORTOGRÁFICO


Recentemente, a Associação Portuguesa de Escritores realizou um inquérito destinado a conhecer as posições dos seus associados sobre o Acordo Ortográfico. 86,7 por cento dos inquiridos pronunciaram-se contra. Eu votei com a minoria. Sou um democrata e respeito a votação, mas não fiquei convencido.
Nós não somos donos da língua portuguesa. Criámo-la, mas constituímos atualmente uma minoria das pessoas que a falam. É um dos nossos maiores legados para a cultura universal. Existem cerca de 225 milhões de lusófonos. Em Portugal, somos apenas dez milhões. Fiz a conta. Dá 4,4 por cento. Podem, naturalmente, ser feitas outros cálculos. A verdade é que, excetuando o Brasil, uma parte não contada, mas significativa, da população desses países desconhece a nossa língua. Os agricultores do interior de Angola e Moçambique continuam a comunicar nos dialetos gentílicos. Nessas paragens, o domínio do Português é um privilégio das elites.



O processo que conduziu ao Acordo Ortográfico foi complexo, moroso e muitas vezes interrompido.
A obra notável de Gonçalves Viana “Ortografia Nacional”, publicada em 1904, foi pouco contestada e esteve na base da reforma oficializada em 1920 pelo governo da República Portuguesa. Teve como consequência um cisma ortográfico: Portugal adotou uma ortografia simplificada, enquanto o Brasil manteve o modo antigo de escrever.
Entre 1931 e 1943, a Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras mantiveram contactos e negociações que permitiram que, em 1943, fosse assinada uma Convenção Ortográfica entre Portugal e o Brasil. A tentativa de acordo não vingou.
Ao longo da década de 70, foram sendo dados novos passos de aproximação. Em 1986, no Rio de Janeiro, foi assinado por representantes de todos os países de língua oficial portuguesa um novo ajuste que, depois de aperfeiçoado, viria a ser oficializado. Era o Acordo Ortográfico de 1990, que seria ratificado pela Assembleia da República Portuguesa em 2008, numa versão intitulada “Segundo Protocolo Modificativo”. Tem sido contestado, pelo menos, em Portugal, Angola e Brasil.
Na discussão deste tema, julgo que deverão ser ponderadas primeiro a necessidade e a oportunidade e, depois, os custos de uma eventual alteração. Será também conveniente perspetivar, na medida do possível, as alterações que o futuro nos trará.
Comecemos pela necessidade. Se olharmos para os lados, encontraremos indicações que vão em sentidos opostos. Os nossos vizinhos espanhóis acordaram, com os países sul-americanos que em tempos colonizaram, uma forma única de escrita que pouco interfere na conhecida autonomia das pronúncias. Ao contrário, os ingleses nunca procuraram estabelecer normas internacionais de ortografia, apesar de existirem variantes consideráveis nos diversos países anglófonos. O árabe e o francês, que são também das línguas mais faladas do mundo, nunca precisaram de acordos ortográficos para serem reconhecidas internacionalmente, embora contem com muitos cambiantes.
As línguas são vivas e tendem a diversificar-se. Acho preferível haver um acordo, mesmo que não seja perfeito, do que deixar a língua à solta, sem nenhum mecanismo que procure regulá-la. Não sou linguista, mas para falar de política de defesa nacional não é preciso ser militar, e para opinar sobre saúde não é indispensável ser médico ou enfermeiro. Acredito na utilidade dum instrumento regulador. A meu ver, boa parte das alterações propostas vem apenas apressar uma evolução que iria ter naturalmente o mesmo resultado, anos mais tarde.


Os peritos dos oito países lusófonos decidiram valorizar a pronúncia em detrimento da etimologia. A questão do Acordo divide os portugueses, bem mais do que seria de esperar dum assunto técnico. Os puristas encontram argumentos na raiz latina ou grega de muitos dos nossos vocábulos. Acham que a correção da linguagem deve passar pelo respeito escrupuloso das regras gramaticais vigentes. Outros pensam que a escrita deve acompanhar de perto a evolução verbal. As novas expressões orais que se vão popularizando terão tanta legitimidade como as antigas. Considero que qualquer acordo deveria harmonizar as duas tendências.
Passemos à oportunidade. Pessoalmente, penso que era tempo de reformular a nossa ortografia. Julgo que este processo nasceu de forma errada. Teria sido mais fácil começar a revisão dentro de portas.
Antes de se chegar a um acordo internacional, o problema deveria ter sido discutido até se alcançar um consenso nacional. O latim está na origem da maioria dos nossos vocábulos, mas não gostaria que nos tentassem obrigar a todos a falar latim ou grego.
O Acordo espevitou os nacionalismos. Portugal é um Estado independente há quase novecentos anos e a língua faz parte da sua identidade nacional. No entanto, há muito que a partilhámos com outros. Tenho orgulho nisso.
 Há quem pense, de forma mais ou menos consciente: “primeiro, tiraram-nos as colónias; agora, querem roubar-nos a língua!”
Ninguém nos rouba nada. A língua portuguesa é tanto deles como nossa.
Existe ainda quem considere que o Acordo Ortográfico é um instrumento da política geoestratégica do Brasil.  
Falemos agora dos custos de um voltar atrás que continuo a esperar que possa ser evitado. Existem factos consumados. A partir do ano letivo 2011-2012, as nossas crianças começaram a aprender a nova grafia. Se os pais e os avós quiserem ajudá-los nos trabalhos de Língua Portuguesa, terão de conhecer e respeitar o seu modo de escrever. Mudar as regras a meio da aprendizagem implicaria lançar a confusão numa geração inteira de miúdos.
O Acordo Ortográfico modificou a grafia de uma minoria de palavras (1,6% em Portugal e 0,5% no Brasil). Para os brasileiros, as diferenças maiores assentam no uso do hífen e na acentuação dos ditongos.
Para nós, a modificação mais importante reside no abandono das consoantes mudas. Aceito que tais consoantes que, segundo os puristas, diferenciam as palavras homófonas e respeitam a etimologia, são dispensáveis. Secundariamente, desaparece o hífen em algumas conjugações do verbo haver e modifica-se a acentuação de diversos vocábulos.
Um dos obstáculos à implementação de mudanças foi sempre a inércia. As pessoas têm receio do esforço necessário para modificar os comportamentos. Desta vez, a tecnologia favoreceu as alterações. Os corretores de texto adotam instantaneamente a grafia antiga à nova, simplificando o processo de transição.
Ainda bem que não escrevemos com carateres chineses… O caminho deles vai ser bem mais árduo que o nosso. No entanto, o processo de simplificação ortográfica do mandarim já começou. Nos teclados dos computadores chineses, o mesmo caráter assume vários significados, dependendo do contexto em que é inserido.
A meu ver, a revisão da ortografia da nossa língua poderia ter ido mais além. De que servem os “h” no início das palavras?
Julgo que, em Portugal, nunca se escreveu tanto, nem tão bem. Tal não admira, dada a elevada prevalência de analfabetismo no nosso país, no passado. Há, contudo, um fenómeno a que deverá dar mais atenção: a generalização do uso dos telemóveis conduziu já à criação de uma grafia própria e simplificada.



As comunicações entre os jovens fazem-se, sobretudo, por mensagens SMS (“Short Message Service” ou, em português “Serviço de Mensagens Curtas”. Atrevo-me a presumir que, hoje em dia, se escreve muito mais ao telemóvel do que ao computador ou à mão.
Entre os que os que comunicam dessa forma, o uso do “k” generalizou-se para substituir o “qu”, quando o “u” não se pronuncia, embora haja também quem use o “q” simples. Foi o que o “f” fez ao “ph”, cerca de um século atrás. Por outro lado, o “ch” é quase universalmente substituído pelo “x”. Mais tarde ou mais cedo, este fenómeno terá repercussão na escrita oficial. Os puristas da grafia que se cuidem…
Modernamente, existem mecanismos poderosos de regulação da linguagem que não precisam de ser acordados. De início, foram apenas os livros. Apareceu, depois, a rádio e, agora, é principalmente a televisão. Tanto o modo de falar dos locutores como a dicção dos personagens das telenovelas irão ter uma repercussão determinante. A pronúncia é também uma questão de moda.
Se o nosso governo pretender conservar no mundo lusófono o modo nacional de falar e escrever, não precisa de se preocupar demasiado com tratados internacionais. Deve criar prémios literários dirigidos aos escritores dos PALOP, investir em bolsas de estudos para os jovens jornalistas mais prometedores, e incentivar a produção conjunta de telenovelas, como se tem já feito com Angola.



terça-feira, 18 de abril de 2017


HITLER


Em miúdo, eu lia tudo o que apanhava pela frente. Li uma tradução da Mein Kampf aos catorze anos e não percebi nada. Chegado a velho, continuo sem entender boa parte do modo de pensar de Adolfo Hitler.
Em termos individuais, Hitler foi o principal responsável pelo apagamento relativo da Europa na cena mundial. Aceito que o declínio das velhas potências era inevitável. No entanto, a Alemanha acelerou esse processo. Já o fizera, entre 1914 e 1918. Não percebo as razões por que o Führer não propôs acordos de paz em meados de 1940, numa altura em que os objetivos fixados pela sua propaganda tinham sido largamente ultrapassados.
Curiosamente, algumas das grandes aspirações nazis foram concretizadas mesmo antes mesmo de começar o conflito. A Áustria foi anexada em 1938 e a ocupação dos Sudetas, um território checoslovaco com predomínio de população de origem alemã, foi reconhecida pelas potências europeias no tratado de Munique, em setembro do mesmo ano. Chego a imaginar que os alemães nem tinham necessidade de desencadear a segunda grande guerra. A França e a Inglaterra iam-se pondo cada vez mais a jeito.
Quem mais tem, mais quer. Os alemães sabiam-se fortes e estavam certos de poder vencer os franceses. Isso, eu ainda compreendo. Agora, a única explicação que me ocorre para a continuação da guerra para lá de maio de 1940 é a megalomania de Hitler e dos seus generais.
 Temeriam a reação posterior dos adversários. A Inglaterra e a Rússia tinham as forças intactas. No entanto, apesar da vastidão do seu território, a Rússia era um país pouco desenvolvido e não poderia competir com a pujança da indústria alemã. Quanto à Inglaterra, a verdade é que foi sempre uma ilha que se aliou sistematicamente ao segundo poder mais forte do continente europeu. Teria sido fácil aos alemães negociar com os anglo-saxões, em detrimento de franceses, belgas e portugueses. Falo destes países por também terem colónias. Quanto à Rússia, bastaria prolongar o pacto que chegou a riscar a Polónia do mapa.



Semanas após o desencadear do conflito, a França, o inimigo tradicional da Alemanha no continente europeu, estava vencida. A Dinamarca, a Noruega, a Bélgica, os Países Baixos e o Luxemburgo tinham sido ocupados. Teria sido possível negociar em posição de força e obter concessões territoriais capazes de satisfazerem a gula germânica.
As colónias portuguesas, e até as suas ilhas atlânticas, seriam presas fáceis. Portugal não era capaz de as defender. Poderiam ser usadas como moedas de troca. O facto de o regime salazarista ser tido como germanófilo serviria de pouco, se a Alemanha ganhasse a II Grande Guerra. Quando da primeira, Portugal começara a lutar contra os alemães em África, dois anos antes da entrada oficial no conflito, que ocorreu apenas em 1916. Por essa altura, as tropas portuguesas haviam sido já batidas em Moçambique, enquanto a situação no sul de Angola, na fronteira com a Damaralândia, fora estabilizada pela intervenção das forças inglesas. Os interesses geoestratégicos da Alemanha não mudaram muito, de 1914 para 1939.
As duas grandes guerras mundiais ditaram o fim dos impérios. Na primeira, caíram os impérios turco e austro-húngaro. Na segunda, desmoronou-se o Império Britânico. A Europa perdeu peso no mundo. Saíram a ganhar os americanos e os russos, que se repartem por dois continentes. Todos os países exclusivamente europeus perderam, incluindo os que alinharam oficialmente do lado vencedor. O «velho continente» deixou de ser o centro económico e político do mundo.  
Tanto os inimigos como os aliados oficiais da França, Inglaterra, Holanda, Bélgica, Espanha e Portugal cobiçavam a liberdade de comércio nas colónias europeias da África, Ásia e Oceânia. No termo do conflito, a Alemanha, provavelmente a única potência europeia que hoje ainda acalenta sonhos de grandeza, foi arrasada. A Inglaterra e a França ficaram reduzidas, de forma provavelmente definitiva, a estatutos de potências medianas. O Reino Unido, como era quem mais tinha, foi quem mais perdeu. A França, a Holanda e a Bélgica desistiram das suas possessões ultramarinas. A Espanha seguiu-lhes o exemplo. 
Os portugueses aguentaram-se mais tempo, sem honra nem glória.  Foram os primeiros a entrar em África, depois dos romanos, e os últimos a sair. Portugal resistiu até que o cansaço dos oficiais mais jovens levou ao golpe militar de 25 de abril de 1974.
Em termos gerais, o espaço deixado vago pela Europa foi rapidamente preenchido. A Rússia construiu o seu próprio império, que iria cair em poucas décadas. Os Estados Unidos da América prescindiram da questão das soberanias. Dominam atualmente o mundo, controlando as economias. Veem, porém, despertar no oriente o gigante chinês, mais tradicional do que a América no que concerne ao exercício de formas de poder.
É fácil conjeturar, embora sirva de pouco. Que seria da Europa e do Mundo se Adolfo Hitler tivesse sido capaz de negociar a paz no termo do primeiro ano de guerra? 


segunda-feira, 17 de abril de 2017



OS MONSTROS DE BOSH


Já falei aqui de Jerónimo Bosh. O pintor flamengo fascina-me. Quando, há coisa de um ano, fui ao Museu do Prado ver a exposição que lhe era dedicada, trouxe de lá um livro com imagens muito belas. Irei hoje partilhar convosco umas tantas que ilustram monstros.



Não posso dizer que os monstros me encantem. A verdade é que os conheço mal.



Sei mais dos ogres dos contos angolanos que dos papões e tragos que assustavam os meninos europeus que não queriam comer a sopa ou eram malcriados para com as tias.



Seguramente ao longo de muitos séculos e, provavelmente, no decurso de milénios, os monstros foram vizinhos dos humanos.



O reino deles era o das trevas. Bastava que a luz das fogueiras esmorecesse para que se chegassem a nós. O escuro libertava das almas o pior da imaginação.



Os seres maléficos que partilhavam a noite com as feras chegavam ao alcance das vozes e (quem sabe?) das pontas dos dedos de um braço estendido.



Os homens fantasiavam depositar nos monstros a essência do mal. Talvez isso ajudasse a purificá-los.



Um preconceito antigo obrigava a que os bons fossem lindos e os maus feios. Os anjos apresentavam-se com as formas correspondentes aos ideais de beleza, enquanto os demónios eram atirados para a outra ponta da escala da estética. Ainda hoje, essa forma de olhar o bem e o mal é aparente nos filmes: os heróis e as heroínas são bonitos e os vilões, em geral, feios. Curiosamente, o diabo era frequentemente representado como um bode e eu sempre achei os bodes graciosos. 



      Nem sempre há consenso em matérias de gosto. Lembro-me do Pascoal, um cabo-verdiano que era tido como um futuro génio da Matemática, nos tempos da minha juventude, em Coimbra. Gostava de perguntar aos mais novos:
− Qual é que tu achas mais giro? Um cavalo, ou um gafanhoto?
Eram todos pelo cavalo, o que lhe permitia desenrolar a palestra preparada sobre as virtudes estéticas dos gafanhotos. Terá reunido poucos adeptos. Mais tarde, a vida não lhe proporcionou os sorrisos que a adolescência perspectivava.



Voltemos a Bosh e aos seus monstros. O mestre flamengo desenhou anjos e santos. Pintou até o que é, no meu modo de ver, o mais lindo rosto de Jesus Cristo. Para mim, a Virgem mais bela foi eternizada em mármore, por Miguel Ângelo, na Pietà. Bosh foi, contudo, bem melhor a criar símbolos do mal do que imagens piedosas. Concebeu figuras extraordinárias de monstros a partir dos pesadelos próprios e alheios e da tradição cultural medieva. Algumas das suas representações são magníficas.


  Os artistas procuravam que as suas obras promovessem o bem e transmitissem mensagens nesse sentido. Poderá ter sido essa, até certo ponto, a intenção de Bosh. 



    Terá desistido, a partir de certa altura. A tolice humana parecia invencível e os homens caminhavam alegremente para a perdição. Jerónimo Bosh terá passado a retratar os seus contemporâneos tais como os via, desistindo de dar conselhos ou de procurar melhorar as pessoas com a sua arte.