DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017



CARLOS NUNES PINTO

TAMEGÃO



XIX


“ No voo o passarinho não olha para trás. Nossos olhos é que seguem o passarinho até à eternidade “

− O Menino já se alongou em altura para ouvir coisa que eu vou contar.
Admirei-me, afinal era sempre eu que funcionava tipo saca-rolhas!
− Nas outras vidas que tive…
− Nas outras vidas?!
− Se cala, senão não ouve nem escuta. Nas outras vidas, tantas que já nem sei, me vivi sempre Tamegão. Numa escrevi, noutra virei rei, pobre em muitas, como agora.
− Também escrevias?!
− Quando os branco hoje pensa que eu não sabe ler, eles é que não sabe ler os próprios pensamentos. Me lembro ainda do livro com este fim: “ Quando a abelha pica a flor, as pétalas tremem”.   
− Como se chamava o livro?
− Nessa vida, os livro não tinha nome, só tinha fim, cada um depois escolhia o dito nome.
− Tamegão, tu nessas vidas foste sempre negro?
− Nalgumas primeiras não. Todos tinha mesma cor por causa do sol que não andava. Ficava sempre parado no meio lá de cima. Nem sombras se pronunciavam. Quando o sol começou a fazer viagem é que aconteceu o escuro da noite. Aí já começaram a aparecer os filhos do escuro. No tempo dos todos igual até as palavras todas se entendiam, se falava a voz dos passarinhos, mesmo os bichos. Na outra vida depois, as pessoas começavam a falar só com pessoas. Na outra ainda, mais tarde, já nem as pessoas entendiam as pessoas, até agora.
− Espera aí, Tamegão. Que vida é esta que tens agora?
− Eu agora já não está nesta vida, está na que vem.
− Por isso é que adivinhas tudo?
− Eu até sabe uma coisa, mas o Menino não vai contar nos outros.
− Prometo.
− Um dia, nesta vida nova, nesse tecto aí em cima se vai abrir um buraco muito grande. Todas águas vai cair dentro da Terra. Essas águas vai encher o mar até tapar a Terra toda. Só vai ficar a ponta duma serra grande onde Tamegão vai abraçar Luana. Nossos filhos, dois, um rapaz, uma menina, vão ter asas para não precisar pisar a terra molhada. Vão brincar como os passarinhos, vão-se beijar como os passarinhos, vão ter ninho, vão ter filhos. Os filhos desses filhos vão ter filhos também. A Terra nunca mais vai acabar. Acaba essa, se inicia outra.
− E sempre com Luana ao pé de ti, não é?
− E com o Menino também, voando como um passarinho! 


sábado, 25 de fevereiro de 2017


CARLOS NUNES PINTO

TAMEGÃO


XVIII

 “ Quando o coração fala, a gente não precisa dizer mais nada “ 


− Só tenho pena de não ver o mar.
− Nunca viste mesmo?
− Só vi nos olhos de Luana.
− Tamegão, você gosta muito de Luana, não é?
− Menino fica calado, Luana está a chegar.
− Então, Luana, bonita como sempre!
− Eu só não gosta dessa blusa que se vê tudo.
− Porquê, Tamegão?
− Por causa dos outros.
− Luana, tu já viste o mar?
− Nunca.
Fiquei a pensar como havia de conseguir mostrar o mar àquelas criaturas.
Falei com o Tio Cardoso. Se ele quisesse, até nos podia levar no comboio, de borla. Afinal, era o revisor.
Consegui. Bendito Tio Cardoso!
Marcámos o dia − sexta-feira próxima.
Lembrei-me: coitada da Luana, nem um fato de banho tem.
− Eu precisa disso para quê?
− Todas as pessoas precisam, se querem nadar no mar.
− Eu aqui nada na cachoeira, mas é nua.
− Eu sei − disse Tamegão − eu já espreitou.
− Já?!
− Muitas vezes!
Telefonei à Júlia.
− Preciso que emprestes um fato de banho para uma amiga minha usar. É só por um dia.
Chegámos a Moçâmedes perto das onze horas da manhã. Lá estava a Júlia à nossa espera, com um fato de banho na sacola.
Vi que estranhou que a minha amiga fosse negra, mas não disse nada, nada mesmo. Levou Luana para casa, para trocar os panos garridos que vestia por um fato de banho branco.
− Meu Deus ! − agora fui eu quem ficou admirado
Tamegão estava sereno.
Na praia, Luana se atirou para a água e nadou, nadou, nadou.
Tamegão tirou os sapatos, arregaçou as calças e instalou-se no rebentamento das ondas.
− Menino, parece que o mar me está a dar beijinhos!
− E está a dar mesmo, os deuses são sempre beijados nos pés.
− Menino, não fala isso alto para o mar não ouvir!
− Porquê?
− Pode descobrir que eu sou feiticeiro. Estes beijinhos me estão a fazer bem!
Luana nadou em nossa direcção. Parecia cansada. Quando encontrou pé, quis levantar-se mas não conseguiu. Nova tentativa e correu para o Tamegão. Abraçou-o, feliz. Afastei-me um pouco, não queria quebrar aquele encantamento.
Quando, disfarçadamente, olhei para eles, vi o sol espelhado nas gotas que Luana tinha trazido do mar, coladas no seu corpo moreno. Também Tamegão as viu.
De mãos dadas, levou-a para a água.
− Luana, essas gotas de Sol tem que se devolver.
Tamegão passou levezinho sua mão no corpo de Luana, arrastando, de cima para baixo, todas as gotas que se iam misturando com as águas do mar.
No comboio de regresso, Luana adormeceu no ombro do Tamegão. Quando acordou do sono, ou talvez ainda ensonada, disse:
− Luana está feliz porque tua mão acariciou o meu corpo inteiro.
Tamegão emudeceu. Só seu pensamento se libertou:

Ontem
Eu e Luana
Ficámos parados no centro da terra.

Dum lado
A maré cheia
quase a chegar ao fundo do infinito

No outro lado
a areia da praia se prolongou
se espalhando no deserto
de terra quente
que o Sol um dia queimou

E foi naquele mar
Que abraçava a areia
Que eu ouvi
Os estalinhos dos beijos

Que Luana mandou para mim.


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017



CARLOS NUNES PINTO

TAMEGÃO


                             XVII 



     Tamegão me ensinou: 

“ Quando a gente sabe, não precisa dizer. Quando a gente não sabe, também não precisa “


O Administrador pediu que o comerciante Lauro Gonçalves, um dos mais evoluídos da Vila, se deslocasse à Administração.
− O assunto é este, Sr. Lauro: no próximo dia 26 temos cá a visita do Sr. Governador do Distrito. Preciso que o senhor leia um discurso na sessão solene.
− Sr. Administrador, quem é que escreve o discurso?
− Vou pedir ao Sr. Secretário. Ele escreve bem e, como o que interessa é falar dos problemas da região, com certeza que o fará com gosto. O Sr. Lauro só tem que o ler várias vezes em casa e tudo vai correr bem.
− Sim senhor.
Outra coisa não podia dizer o Sr. Lauro.
O Administrador mandou que chamassem o Seculo Colomboloca José e pediu-lhe o mesmo.
Era dos poucos negros que sabia ler. Ficou inchado.
− Sim, senhor, Sr. Administrador.
Quando ia para casa, lembrou-se de qualquer coisa que o fez tremer.
− Eu vai ler o quê?!
Não dormiu toda a noite. De manhã cedo, foi ter com Tamegão, sua única safa.
Tamegão ouviu-o atentamente e depois perguntou:
− Mas você tem de falar de quê?
− Também não sei.
Tamegão foi a uma gaveta e retirou vários papéis lá de dentro. Fingiu que os lia. Finalmente, disse:
− Você vai ler este.
− Obrigado, me salvou!
Na sessão solene, o aspirante administrativo anunciou o discurso do Sr. Lauro Gonçalves
− Excelentíssimo Senhor Governador do Distrito, Excelentíssima Esposa, meus senhores, minhas senhoras….
No final, ouviram-se bastantes palmas.
O aspirante anunciou:
− Agora, o discurso de uma autoridade tradicional, o Seculo Colomboloca José.
Cumprindo com o que lhe tinham dito, Colomboloca José ofereceu o seu discurso a:
− Excelentíssima Senhora Esposa do Sr. Governador  

                                       “Mulher”
                                        
                                         Mulher
                                         É como cerveja
                                         A gente só bebe
                                         Quando deseja

A mulher do Administrador mudou a posição do rabo na cadeira.

                                         Mulher
                                         Não precisa ter nome
                                         Mulher
                                         É produto que se consome

O Administrador apertou a mão da mulher com muita força.
Dona Bia se voltou a agitar na cadeira − parecia ter bicho-carpinteiro.
                             
                                         Mulher
                                         Não precisa de afecto
                                         Mulher
                                         Para mim é só objecto

O Administrador olhou para o Governador para pedir desculpas, ou até mesmo para mandar retirar dali o Colomboloca. Reparou que o Governador tinha um ligeiro sorriso nos lábios.

                                         Mulher
                                         Se torce na cama
                                         Mulher minha
                                         Nunca reclama

Ouviu-se um grito no salão.
− Ah!,grande Colomboloca !
Tinha sido o Artur, rapaz que começava a beber muito cedo.

                                         Camisa passada
                                         Comida já pronta
                                         Doença curada
                                         É isso que conta

− Estás a ouvir, Júlia? Aprende com esta! – Disse-lhe o marido.
                                        
                                         Mulher inteligente
                                         Não tem que se mostrar
                                         Mulher da gente
                                         Se sabe comportar

− Ouviste, Maria Antónia? Parece que até os pretos já te conhecem! – Outro marido falou  
                                        
                                         Se mulher tem alma
                                         Não sei que isso é
                                         Mulher para mim
                                         É aquilo que é

Todos perceberam que o discurso tinha acabado porque Colomboloca baixou a cabeça em jeito de vénia, como lhe disseram que tinha de fazer.
Ninguém bateu palmas. Colomboloca se agitou. Olhou  para a porta de saída e apeteceu-lhe fugir.
A esposa do Governador, percebendo a intenção, levantou-se com distinção, subiu os degraus do palco e abraçou efusivamente Colomboloca.
Disse-lhe ao ouvido:
−Todos os poetas são assim. A sua alma é diferente da nossa.
Deu-lhe um beijo na face que o deixou a pensar:
− Foi primeira vez que recebo beijo de mulher branca. Só você, Tamegão, sabe fazer estes feitiços.
Romperam no salão palmas que se espalharam pela África inteira.


terça-feira, 21 de fevereiro de 2017


CARLOS NUNES PINTO

TAMEGÃO

XVI

   “ Quando a gente põe a Lua dentro do Sol, é o Sol que se apaga “



Há três dias que Luana não aparecia. Tamegão se inquietou.
− Eu precisa ver Luana.
Arrancou resoluto até a casa dela. Percorreu o carreiro que ligava as duas casas. Caminho estreito, porque os negros nunca caminhavam aos pares, um à frente, os outros atrás – resultava sempre e apenas um trilho.
Quando Tamegão chegou, deparou-se com uma surpresa.
− Saparalo, você hoje está em casa? Hoje não trabalhou na estação?
− Não, ontem trabalhou até meia-noite, hoje ficou de folga. Sr. Tamegão, este caminho você nunca fez, não é?
Tamegão arranjou rapidamente uma saída.
− No dia de ontem o Sr. Administrador pediu para fazer recenseamento das pessoas do quimbo.
− É o quê recenseamento?
− A gente tem que dizer as pessoas que cada cubata tem.
− E você vai fazer isso? Você costuma dizer que não faz nada para os brancos!
− Vou fazer, mas vou-lhes fintar.
− Como vai fazer isso?
− Assim: como na tua casa, vou falar que tem Saparalo mais três miúdos.
− E Luana?
− Vai dizer que Luana está na casa do Tamegão.
− Se os brancos descobre?
− Se vai fazer assim: quando a rusga chegar de noite, Luana foge para minha casa e pronto!
Luana, que ouvia tudo de dentro da cubata, pensou: Tamegão sabe muito, quer Luana com ele de noite.
Saparalo falou com Luana:
− Você ouviu Tamegão falar?
− Ouvi, mas eu não concorda.
− Porquê?
− Luana tem medo dos espíritos que visita Tamegão de noite.
− E agora como é que eu vai dizer que não pode enganar os brancos porque você tem medo?
− Não se preocupa, eu logo vai falar com ele.
À tarde, Luana conversou com Tamegão.
− Você quer enganar os brancos ou Saparalo?
      −Eu pode enganar os dois.
− Tamegão, faz favor, não mistura duas coisas no mesmo saco!





domingo, 19 de fevereiro de 2017


TAMEGÃO

CARLOS NUNES PINTO


XV

“ Recensear para os brancos é contar as pessoas, para mim é contar as almas “


−Tamegão, você tem que ir no recenseamento, já lhe avisei na semana passada – disse o sipaio.
− Tá bem, eu hoje vai.
Vestiu a camisa branca das festas e foi direitinho à Administração.
Estava uma grande fila, colocou-se no fim.
Reparou que estava ali um senhor branco que punha um número no peito das pessoas, depois espreitava para dentro de uma caixa preta, apertava um botão e dizia: já está!
Chegou a vez do Tamegão. O mesmo ritual. Depois do “já está”, Tamegão foi conduzido para outra mesa, onde o Chefe do Posto perguntou:
− Como te chamas?
− Tamegão.
− Tamegão quê?
Não entendeu, o chefe teve de lhe explicar.
− Tens de dar dois nomes. Se tem aqui outro Tamegão como é que a gente sabe que você não é o outro?
Ficou mais confuso.
− Neste mundo só tem um Tamegão.
− Diz lá, Tamegão… qualquer coisa.
− Quarquer – Coisa eu não gosta.
− Se queres ficar sem coisa nenhuma, pronto, podes ficar!
− Tamegão Sem- Coisa- Nenhuma ainda é pior.
− Então, em que ficamos?
− Fica só Tamegão.
Assim ficou, como sempre foi.
− Sabes escrever?
− Sei, sim senhor – mentiu.
− Então, assina aqui o teu nome.
Tamegão desenhou uma bola grande e outra mais pequena lá dentro.
− Já estás com a mania dos brancos que assinam com a marca do gado? Para a semana passa por cá, que já está tudo pronto.
Nessa tarde, fui visitar o Tamegão.
− Onde é que foste de manhã?
− Nesse tal de recenseamento. Me perguntaram se sabia escrever o meu nome e eu escreveu.
− Como foi que fizeste isso?
− Eles queria dois nomes, eu assinou uma bola grande com uma mais pequena lá dentro.
− O que é isso quer dizer?
− Bola grande sou eu, bola pequena é o Menino. Agora eu ficou “Tamegão Carlitos”.




sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017



TAMEGÃO

CARLOS NUNES PINTO

XIV





“ Disseram tantas mentiras que agora parecem verdade“


Assim que regressei, fui visitar o Tamegão:
− Tamegão, cheguei.
Abriu os braços. Abraçou-me.
Ficámos tanto tempo assim que deu para eu sentir o seu coração bater, mas muito lentamente.
− Tamegão, o teu coração bate devagarinho.
− E o teu parece de um passarinho. Quando o menino chorou lá longe, o meu coração se agitou. Você me chamou porquê?
− Porque precisava de chorar.
−  Não faz mais isso, me faz muito mal.
− Como acontecia  com o teu pai lá no cemitério?
Mudou de conversa.
− Teu irmão segundo também não chorou porque ficou com vergonha.
− Vergonha de quê?
− Ficou com peneiras do casaco novo, mas o tal homem que enganou você também enganou ele.
− Como?
− Casaco tinha um bolso roto.
− Roto?
− Sim, lá no fundo.
Juro que fiquei satisfeito, afinal fomos os dois enganados. Também me vou rir dele como ele se riu de mim.
Tamegão adivinhou a minha intenção.
−Não precisa gozar com ele. Ele já está a pagar. Ele falou:
− Tia, podes coser o bolso do meu casaco?
− Não, o Albérico que o cosa.
− E agora? Como é que ele vai resolver isso?
− Não é ele que vai resolver, é você.
− Eu?!!
− Você vai lá na loja desse Sr. Albérico e diz nele: “Sr. Albérico, está aqui o casaco do meu irmão para o senhor mandar arranjar o bolso que o meu pião rasgou. Esqueci-me dele a rolar toda a noite lá dentro. Agora, o meu irmão quer-me bater”.
− Oh, miúdo, não fui eu quem o mandou pôr no bolso do teu irmão!
− Mas foi o senhor que mo vendeu, e que nunca mais  parava de rolar!
− Dá cá o casaco.
− O Sr. Albérico também pode mandar pôr um travão no meu pião?
− Desculpa lá isso. Uma coisa te vou garantir: se um dia fizerem um que nunca pare, eu não te vou vender, vou-te oferecer. Aceitas?
− Concordo.
− Aperta cá essa mão.
Quando apertou a minha mão, o Sr. Albérico ficou pálido. Percebeu que eu tinha seis dedos!