DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 2 de fevereiro de 2019


                                 D. JOÃO V 


                E O CONVENTO DE MAFRA




D. João V era filho de Pedro II, provavelmente um sifilítico, e de sua segunda esposa, D. Maria Sofia de Neuburg. Segundo Júlio Dantas, D. Pedro terá sido contagiado pela sua primeira mulher, Maria Francisca Isabel de Saboia, que terá trazido de França a infeção.
João, que viria a ser o quinto rei do seu nome em Portugal, nasceu em Lisboa, a 22 de outubro de 1689 e faleceu, na mesma cidade, a 31 de julho de 1750. Durante o seu reinado, foi desembarcada, em média, no porto de Lisboa, uma tonelada de ouro por ano.
A riqueza, que não resultava do trabalho dos seus súbditos em Portugal, inchou-lhe o ego e permitiu-lhe mandar erigir obras megalómanas: a Basílica Patriarcal de Lisboa, a Biblioteca da Universidade de Coimbra e, claro está, o Convento de Mafra.
D. João V governou como monarca absoluto. Nunca convocou as Cortes. Mandou em Portugal durante mais de 43 anos.
Alguns cronistas trataram-no mal. Chamaram-lhe estúpido, vaidoso e mulherengo. Houve quem sugerisse que era bissexual.
Sabe-se que o rei era beato e propenso à lascívia. Teve inúmeras mulheres. Gerou seis filhos legítimos e uma mão cheia de bastardos.
Pagava generosamente os seus favores. Tanto quanto se sabe, alimentou apenas uma paixão: Madre Paula fê-lo percorrer, vezes sem conta, o caminho do convento de Odivelas.
Fortunato de Almeida defende o soberano: vícios pessoais são estranhos aos domínios da História, enquanto não perturbarem os negócios públicos. De facto, durante o seu reinado, Portugal ganhou prestígio junto da comunidade internacional.
Ouçamos, agora Oliveira Martins, que faz de advogado do diabo: Mafra levou, em dinheiro e gente, mais do que Portugal valia.
Joel Serrão tem uma postura mais abrangente e, a meu ver, mais ajustada à realidade histórica. Ouçamo-lo:
Quando D. João V iniciou o seu reinado, estava-se em plena Guerra da Sucessão de Espanha que, para Portugal, significava o perigo das ligações daquele país à grande potência continental que era a França, com todas as consequências de reforço do perigo espanhol, tanto na metrópole como no ultramar. O esforço militar português era manifestamente desproporcionado em relação às suas responsabilidades e interesses…
… A subida ao trono austríaco do imperador Carlos III, pretendente ao trono de Espanha, criou o ambiente próprio para a paz que foi assinada no Tratado de Utreque, em 1714.
D. João V permaneceu inalteradamente fiel aos seus interesses atlânticos, comerciais e políticos. No conjunto, seguiu uma orientação de neutralidade face à Europa. Casou com uma princesa austríaca, Mariana de Áustria.
 O rei verificou cedo que a Áustria ficava demasiado distante para poder ser uma aliada eficaz.
Como a ligação à Espanha era manifestamente perigosa, restava a aliança inglesa que, além disso, oferecia múltiplas vantagens estratégicas e comerciais.
É de notar que Portugal exportava sal, couros, vinho, tabaco e citrinos, vendidos a bom preço nos países do norte da Europa.
Estou inclinado a dar razão a Fortunato de Almeida. Apesar dos seus desmandos, o rei contribuiu, com a sua governação, para a paz e para o desenvolvimento do país.
Voltemos a ocupar-nos das obras grandiosas que mandou edificar.


Poucos porão em dúvida a utilidade do Aqueduto das Águas Livres, que minorou o problema crónico de abastecimento de água à capital do Reino. Um alvará régio de D. João V impulsionou o projeto, embora nem o rei, nem a corte se tenham envolvido diretamente no empreendimento. A iniciativa da construção pertenceu ao procurador da cidade de Lisboa, Cláudio Gorgel do Amaral. O aqueduto foi financiado por um imposto adicional sobre a carne, o vinho e o azeite vendidos em Lisboa. As obras começaram em 1731 e arrastaram-se até 1799 (Saraiva). O segmento que atravessa o vale de Alcântara, com quase um quilómetro de comprimento, tem uma beleza invulgar.  
A Biblioteca dita joanina da Universidade de Coimbra representou um esforço no sentido de pôr ao alcance de estudantes e professores o que de melhor se publicava no mundo das ciências. Trouxe, seguramente, vantagens duradouras à instituição. É razoável pensar que se poderia ter conseguido o mesmo efeito com um investimento bem menor, mas o que está feito, está feito, e as suas instalações são visitadas anualmente por muitos milhares de turistas vindos de todas as paragens.
A Basílica Patriarcal de Lisboa foi derrubada pelo terramoto de 1755. Poucos se lembram dela e não entrará nas nossas contas.
Resta-nos Mafra. Confesso que o monumento constitui, para mim, uma referência especial. Habitei uma das alas do convento, de outubro a dezembro de 1969, acompanhado por 600 outros cadetes que frequentavam o Curso de Oficiais Milicianos, na Escola Prática de Infantaria, que ali funcionava. A E.P.I. foi desactivada em 2013 e substituída pela  Escola das Armas do Exército Português.


O Exército Português formava, nesse edifício, os oficiais milicianos de baixa patente que iriam comandar pelotões ou companhias, numa das três frentes da guerra colonial. Os médicos cumpriam ali o primeiro ciclo do Curso de Oficiais, antes de seguirem para as instalações militares da Estrela, onde completavam a formação castrense.
 Sendo impensável defender a edificação do conjunto Igreja/Palácio/Convento de Mafra recorrendo ao simples binómio custo/benefício, haverá que atender a outros fatores. Com essa construção D. João V projetou uma imagem de grandeza, em Portugal e no mundo.
Os trabalhos tiveram início em 1717, sob a direção do arquiteto prussiano Johann Friedrich Ludwig. O monarca contava então 28 anos de vida. O edifício, construído em pedra lioz, uma variedade de calcário abundante na região, estende-se por uma área de perto de quatro hectares. Chegou a ocupar simultaneamente 52.000 trabalhadores. Houve alturas em que foram recrutados à força para acelerarem a obra. Curiosamente, em 1731, ocorreu uma greve dos pedreiros que trabalhavam na construção (Joel Serrão).


O convento foi destinado à Ordem de S. Francisco e pensado inicialmente para 13 frades. À medida que chegava o ouro do Brasil, o projeto cresceu, primeiro para 40, a seguir para 80 e, finalmente, para 300 monges. Entretanto, agregou-se-lhe o Palácio Real.
Diz-se que o edifício tem mais de 4700 portas e janelas. É pouco provável que alguém as tenha contado recentemente.
As pinturas e as esculturas religiosas existentes na capela e no convento foram encomendadas aos melhores artistas do século XVIII. Vieram sobretudo de Roma. 
A Basílica foi sagrada a 22 de outubro de 1730, data do 41º aniversário do rei. Ainda não estava pronta. Ingressaram no convento 328 frades arrábidos, vindos de diversos conventos mandados extinguir por decreto real.
No Palácio, os aposentos do rei e da rainha eram separados por uma conveniente distância de 230 metros. O palácio foi usado essencialmente pelos membros da família real que iam caçar à Tapada. Terão sido essas as dormidas mais dispendiosas da História de Portugal.
Mafra possui uma das mais belas bibliotecas da Europa. Abriga 30.000 livros encadernados em couro e gravado a letras de ouro, entre os quais se encontram raridades bibliográficas.
Hoje, é quase impossível falar de Mafra sem referir a obra de José Saramago, “Memorial do Convento”. A primeira edição do livro foi publicada em 1982. É com as palavras “ D. João, quinto do nome” que o romance começa. Prossegue com duas histórias paralelas: o relato da construção do convento e a história de amor entre Baltazar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas, contagiados pelo sonho do padre Bartolomeu Lourenço que pretendia construir uma máquina de voar.
Saramago satiriza os costumes do rei, da nobreza e do clero e critica, com ironia e amargura, os sacrifícios a que a construção dessa obra megalómana obrigou o povo chão. Sigamos a cerimónia oficial do início da edificação, nas palavras do escritor consagrado com o Prémio Nobel:
Foi a pedra principal benzida, a seguir a pedra segunda e a urna de jaspe, que todas três iriam ser enterradas nos alicerces, e depois foi tudo levado em procissão, de andor, dentro da urna os dinheiros do tempo, ouro, prata e cobre, umas medalhas, ouro, prata e cobre, e o pergaminho onde se lavrara o voto, deu a procissão uma volta inteira para mostrar-se ao povo que ajoelhava à passagem, e, tendo constantemente motivos para ajoelhar-se, ora a cruz, ora o patriarca, ora el-rei, ora os frades, ora os cónegos, já nem se levantava, bem poderemos escrever que estava muito povo de joelhos. Enfim se encaminharam el-rei, o patriarca e alguns acólitos para o sítio onde se havia de colocar a pedra e as pedras, descendo por uma espaçosa escada de madeira que tinha trinta degraus, porventura em memória dos trinta dinheiros, e de largura mais de dois metros. Levava o patriarca a pedra principal, ajudado pelos cónegos, e outros destes a pedra segundeira e a urna de jaspe, atrás el-rei e o geral da Sagrada Ordem de S. Bernardo, como esmoler-mor, e que, por o ser, levava o dinheiro.
Assim desceu el-rei trinta degraus para o interior da terra, parece uma despedida do mundo, seria uma descida aos infernos se não estivesse tão bem defendido por bênçãos, escapulários e orações, e se aluíssem estas altas paredes que formam o cabouco, ora não tema vossa majestade, repare como o escorámos com a boa madeira do Brasil por maior fortaleza, aqui está um banco coberto de veludo carmesim, é uma cor que usamos muito em cerimónias de estilo e de estado, com o andar dos tempos vê-la-emos em sanefas de teatro, e sobre o banco está um balde de prata cheio de água benta, e também duas vassourinhas de urze verde com os cabos guarnecidos de cordão de seda e prata, e eu, mestre-da-obra, verto um cocho de cal, e vossa majestade, com esta colher de pedreiro de prata, perdão, senhor, de prata de pedreiro, se pedreiros a têm, estende a cal, mas antes a espargiu com a vassourinha molhada na água benta, e agora, ajudem-me aqui, podemos assentar a pedra, porém, sejam as mãos de vossa majestade as últimas a tocar-lhe, pronto, um toque mais para toda a gente ver, pode vossa majestade subir, cuidado não caia, que o resto do convento nós o construiremos…

Texto retirado, com modificações do capítulo "The National Palace of Mafra and King JohnV - some historical and medical insights", a incluir no trabalho "Medical Heritage of the National Palaced of Mafra", coordenado por Maria do Sameiro Barroso.