DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015



SINOPSE DA HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO 

DE ANGOLA


          III

 MOÇÂMEDES E SÁ DA BANDEIRA

A OCUPAÇÃO DO INTERIOR DE ANGOLA PELOS PORTUGUESES.

Em Angola, a presença portuguesa era antiga nas cidades costeiras, sobretudo em Luanda e Benguela, e em algumas regiões vizinhas. Dos grandes espaços interiores e das gentes que os habitavam, pouco se sabia.


A vila de Moçâmedes foi construída junto à praia, de acordo com um plano simples e geométrico. Quatro ruas paralelas entre si eram cortadas por travessas e formavam quarteirões regulares. Havia iluminação a petróleo. As casas, de um só piso, tinham quase todas quintal. 
A povoação teve origem num presídio para degredados. O clima era benigno e havia terras férteis. Existiam no Brasil nesse tempo, como noutros, portugueses na miséria. Viviam-se tempos de agitação social e a colónia lusitana de Pernambuco era hostilizada. O governo de Lisboa precisava de brancos em Angola e proporcionou-lhes meios de transporte.
A barca “Tentativa Feliz”, protegida pelo brigue “Douro”, fundeou em Moçâmedes, em agosto de 1849, trazendo 180 portugueses.
A instalação dos colonos processou-se com alguma dificuldade. Mesmo assim, como a crise social em Pernambuco se agudizava, em novembro de 1850 desembarcaram mais 107 emigrantes. Moçâmedes foi desenvolvida por gente de torna-viagem.  



Os que vieram do Brasil aproveitaram os terrenos de aluvião das margens dos rios Bero e Giraúl. Giraúl quer dizer “fim do caminho”. Eram terras férteis mas escassas. Não dispondo de mais espaços de cultura, desenvolveram o comércio e a pesca. A vila foi progredindo.
Alguns negociantes exportavam gado para longe. Não o criavam, porque não havia pastos na região. Recebiam-no dos negociantes que o compravam no interior.
    Em Luanda e Benguela, os descendentes dos escravos constituíam o grosso da população negra urbana. Desenraizados e esquecidos das antigas tradições, falavam um português modificado e vestiam à europeia. Em Moçâmedes, terra fundada após a abolição oficial da escravatura, eram poucos os filhos dos libertos.
Ali, chamavam funantes aos que andavam pelo mato a comerciar. Aquela gente ia a toda a parte. Deixava as cidades costeiras e subia as margens dos rios secos. Por vezes, fixava-se. Havia povoações espalhadas por uma grande área: Munhino, Curoca, Bibala, Bruco, Tchivinguiro, Humpata, Huíla, Chibia. Um grupo de pescadores algarvios tinha-se estabelecido em Porto Alexandre, a sul, na costa deserta.

                                              Bernardo de Sá, Marquês de Sá da Bandeira

Em 1836, Em Portugal, a vitória setembrista levou ao governo, entre outros, Passos Manuel e Bernardo de Sá Nogueira, visconde e mais tarde marquês de Sá da Bandeira. Foi o visconde quem assinou, em dezembro desse ano, o decreto que punha fim ao tráfico de escravos. Foi também o responsável pela elaboração de um projeto de desenvolvimento dos territórios coloniais. Pretendia-se que as colónias africanas abastecessem a “metrópole” com os seus produtos, em troca dos têxteis e dos vinhos portugueses. Cabia-lhes substituir o Brasil, que se tornara independente.
Entre 1870 e 1890 alguns países europeus deitaram olhares cobiçosos ao continente negro. Queriam garantir o fornecimento de matérias-primas e conseguir mercados para a produção industrial. Estas ambições iam contra os direitos que Portugal julgava seus, por prioridade nas descobertas.
Em 1877, o madeirense D. José da Câmara Leme era aspirante de marinha. Trabalhara em Luanda, Benguela e Moçâmedes. Sabia que as colónias de África eram invejadas por ingleses e alemães. Ou se povoavam, ou se ficava sem elas. 
Escreveu ao Governador-geral de Angola, Ferreira do Amaral, expondo-lhe as suas ideias. Os portugueses mais à mão eram os da ilha da Madeira. A população crescera e a terra não chegava para todos. Havia muita gente disposta a partir em busca de vida melhor.
Ferreira do Amaral apadrinhou o plano e apresentou-o ao governo de Lisboa. O ministro do Ultramar era quem podia decidir.
 A resposta à iniciativa do Condutor de Obras Públicas foi relativamente rápida. Câmara Leme foi nomeado Diretor da nova Colónia e, paralelamente, encarregado de construir dois troços de estrada para ligar o Lubango à Humpata e à carreteira que ia da Chela à Huíla. 
Em 1885, a Conferência de Berlim instituiu o princípio da ocupação efetiva dos territórios como fonte de soberania. Tocou em Lisboa a sineta de alarme. A emigração para África ganhou prioridade.
A bacia do Lubango situa-se a uma altitude de 1.800 metros e cobre uma área superior a 1.000 hectares. É rodeado por uma cadeia de serras que se abre apenas a leste. É por ali que entra o vento e sai o rio.

                      Ponta do Lubango, ou Ponta da Chela

Quem olha em volta, pela primeira vez, fixa os olhos no sul. A Ponta do Lubango interrompe bruscamente a serra do Mucoto e ganha para sempre espaço nos sonhos.
Há pequenos ribeiros que levam água todo o ano. Juntam-se no lugar da Machiqueira, ali bem perto, para formar o rio Caculovar, que vai desaguar no Cunene.


A caravana que transportava os emigrantes alcançou uma extensa colina no meio da bacia e fez alto. As carroças foram descarregadas. Na manhã seguinte, os bóeres voltaram com os carros, serra abaixo, para buscar a gente que ficara.
Os madeirenses deitaram logo mãos à obra. Os primeiros trabalhos foram coletivos. Na margem direita do rio Caculovar abriu-se uma clareira onde foram construídos dois grandes barracões de pau-a-pique, um para os homens e o outro para as mulheres e crianças. Edificaram-se, em acampamento separado, cubatas para instalar o diretor da Colónia, o médico, a secretaria provisória e a ambulância.


    A história que se segue é conhecida. Pelo menos, uma cidade em África nasceu do sonho de um europeu, neste caso, um ilhéu da Madeira, e foi desenhada, com régua e esquadro, nas secretarias de Lisboa.

Fonte: Os fragmentos deste texto foram retirados do romance "Os Colonos" (António Trabulo, Esfera do Caos, Lisboa, 2007) e reagrupados.


segunda-feira, 30 de novembro de 2015




SINOPSE DA HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO DE ANGOLA

II

DE CAMBAMBE A BENGUELA. A RAINHA GINGA

Manuel Cerveira Pereira exerceu por duas vezes o cargo de Capitão-general de Angola. Na primeira, entre 1603 e 1606, atingiu Cambambe e mandou erigir ali um presídio. 
    As tentativas de conquistar Cambambe, onde, segundo alguns jesuítas, a prata era tanta que o brilho das montanhas ofuscava o olhar, haviam já custado centenas de vidas portuguesas. Desfez-se, então, um sonho que os nossos acalentavam há décadas: o das minhas de prata. Afinal, em Cambambe havia apenas chumbo.


                              Ruínas do presídio de Cambambe

Entretanto, a vila de S. Paulo de Luanda alcançou certo desenvolvimento e foi promovida a cidade. Em 1618, foi levantada a fortaleza de São Pedro da Barra e, em 1634, a de São Miguel.


                                      Luanda antiga

     Foi mais ou menos por esta altura que a pequena colónia portuguesa passou a chamar-se Angola. O nome provém do título “Ngola”, dado aos sobas da região.
A fixação europeia seguia um modelo mais ou menos uniforme. Os brancos erguiam as suas povoações junto à costa, ao abrigo da artilharia dos navios. Neles se poderiam refugiar, em casos de extrema necessidade. Ali estabeleciam contactos comerciais com os povos vizinhos. 
    A ambição dos recém-chegados a África era insaciável e os conflitos iam acontecendo. Os comerciantes que se aventuravam pelo sertão constituíam elementos fundamentais do processo de colonização.
     Sempre que podiam, as autoridades portuguesas nomeavam sobas complacentes.
Por volta de 1578, começaram a fixar-se colonos portugueses em Benguela-a-Velha, onde é agora Porto Amboim. A iniciativa não resultou e os colonos acabaram por se mudar mais para sul. Levaram com eles o nome da povoação: Benguela. Iria tornar-se a segunda cidade de europeus a ganhar espaço no território angolano.


                                Vista antiga de Benguela

Os presídios, ocupados por degredados e pelos seus guardas, foram aumentando de número. Muxima foi fundada em 1600, Cambambe em 1604 e Ambaca, junto ao rio Lucala, em 1614.
No ano de 1615, entraram em cena os holandeses que ocuparam o porto de Mpinda, situado na margem sul do Zaire, junto à foz. É a atual cidade angolana de Soyo. Na época, era o principal porto da costa angolana. Seriam mais de 4.000 os cativos que dali eram levados anualmente para o Brasil, com escala em S. Tomé.
Note-se que era na ilha atlântica e não em Angola que, de começo, se instalavam os mercadores mais prósperos.
Os holandeses deram-se tão bem naquele porto que até os pombeiros portugueses lhes vendiam escravos. A explicação para o facto era simples: os dos Países Baixos pagavam melhor que a concorrência.
Nesse mesmo ano de 1615, o rei Filipe II de Portugal decidiu separar administrativamente os Reinos de Benguela e de Angola. Tratava-se de encontrar e explorar as minas de cobre que se julgavam existirem na região.
Manuel Cerveira Pereira iniciou o segundo mandato de Capitão-general de Angola em 1615. Acumulou as funções com o governo de Benguela.
Em maio de 1617, fundeou na Baía das Vacas. Desembarcou e fez construir o forte de São Filipe de Benguela.
A miragem do cobre durou ainda menos do que a da prata. As jazidas encontradas eram pobres.
As coisas correram mal a Cerveira Pereira e o Reino de Benguela teve uma existência fugaz. Ano e meio após a chegada, no começo de 1619, o governador foi expulso da povoação e metido num bote. A corrente marítima foi misericordiosa e arrastou-o para Luanda, onde arribou passadas quase três semanas.
Por volta de 1623, João Correia de Sousa, novo governador da colónia, começou uma guerra com o Congo. Seria breve. Desagradados com a interrupção do negócio de escravos, os colonos juntaram-se e expulsaram o governador. O governo português não se incomodou e nomeou prontamente um substituto para João de Sousa. Chamava-se Fernão de Sousa e dirigiu os destinos da colónia de 1624 a 1630. Foi ele quem deu início ao conflito com Nzinga Mbandi, a celebrada rainha Ginga. A luta intermitente iria prolongar-se por quatro décadas.



Em 1641, quando os portugueses se preparavam para a Guerra da Restauração, os holandeses tomaram Luanda. Benguela foi também ocupada.
Os nossos refugiaram-se no forte de Massangano, onde se defenderam como puderam dos ataques de bandos armados do Reino do Congo e da rainha Ginga, que se haviam passado para o lado dos holandeses. Parece ser uma lei da história: os povos subjugados, ou em risco de o serem, tomam sempre o partido de quem é circunstancialmente mais forte.
A guerra da independência prolongou-se e D. João IV não podia dispensar forças que defendessem as colónias africanas. O auxílio veio do Brasil. Em 1648, Salvador Correia, curiosamente nascido em Cádis e filho de mãe espanhola, comandou a frota que expulsou os neerlandeses.



O último rei do Ndongo morreu em 1671, junto ao rio Cuanza, em luta com os portugueses. Nascia o reino português de Angola. Ocupava o território do Reino do Ndondo e de parte do do Reino de Matamba.
A rainha Ginga morrera de velhice, em 1663. Por altura da sua morte, o Reino da Matamba continuava independente. Centrava-se na Baixa de Cassange, na região da atual Malanje.
Morta Nzinga Mbandi, o seu reino mergulhou num período de instabilidade que facilitou o avanço das forças portuguesas, uma vez mais aliadas aos imbangalas. Em 1681, o rei de Matamba, batizado com o nome de Francisco Guterres, morreu em combate. Sucedeu-lhe a rainha Verónica que assinou, em 1683, um tratado de paz com os portugueses. O reino da Matamba perdia a autonomia.
No conjunto, os reinos do Ndongo e da Matamba resistiram dois séculos às investidas dos colonos portugueses.

Fontes: 
Fonseca Santos, Henrique. A conquista de Angola. Os três reinos. Chiado Editora, Lisboa, 2013.
Internet.
Imagens: Internet.





domingo, 29 de novembro de 2015


SINOPSE DA HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO 

DE ANGOLA


I

DE DIOGO CÃO A  PAULO DIAS DE NOVAIS


Desde as viagens de Diogo Cão, de 1483 a 1486, até às explorações levadas a cabo por Hermenegildo Capelo, Roberto e Ivens e Alexandre Serpa Pinto, entre 1877 e 1875, a história da presença portuguesa em Angola decorreu de forma lenta e progressiva. Não fossem os abalos provocados pela tentativa holandesa de substituição dos interesses portugueses na costa ocidental de África, em 1641, interrompida em 1647 pela intervenção dos homens e navios de Salvador Correia de Sá e Benevides, e tudo se resumiria a uma sucessão de pequenos combates e ao fazer e desfazer de alianças com os sobas que dominavam o interior, tendo como fim principal a aquisição de escravos, exportados essencialmente para os engenhos de açúcar do Brasil. Os portugueses tornaram-se exímios em aproveitar as rivalidades entre reinos e sobados e foram estendendo aos poucos as suas áreas de influência.
A instalação progressiva de presídios, ocupados por degredados e pelos seus guardas, deu apoio aos negociantes que se aventuravam pelo interior do território


Em 1483, Diogo Cão chegou ao Zaire e enviou emissários rio acima, numa primeira tentativa de estabelecer contacto com o rei do Congo. Abandonou-os e prosseguiu a viagem para sul, até ao cabo Lobo, tencionando recolhê-los no regresso. De volta, fundeou na foz do grande rio e esperou algum tempo pelos seus embaixadores. Como eles não vieram, fez alguns reféns africanos e rumou a Lisboa.


Diogo Cão regressou ao Zaire dois anos depois e, acompanhado por um guia, subiu o rio até às cataratas de Ielala, a 90 milhas da foz. Recuperou os seus emissários, por troca com os prisioneiros de torna-viagem. Começavam as relações entre os reinos de Portugal e do Congo.

         Inscrições de Diogo Cão em rochas da foz do tio Mponzo

A nossa presença militar em África foi quase sempre complementada com a ação missionária. O missal e o arcabuz davam-se bem e ganhavam força acrescida ao atuarem juntos.


O tráfico de escravos continuou sempre a crescer. A partir de 1530 intensificou-se, com a multiplicação dos engenhos de açúcar no Brasil. As outras exportações do território de Angola eram o marfim e o cobre.
Em 1543, aproximaram-se do litoral norte de Angola os imbangalas, tribos jagas guerreiras provenientes de leste. Começaram por enfrentar os portugueses, mas acabaram por se tornar seus aliados nas lutas contra os potentados regionais.
As relações dos portugueses com o reino do Ndondo, que ia do rio Dande, a norte de Luanda, até além do Cuanza, a sul, tiveram um início complicado. Ndondo ficava a sul do grande reino do Congo e prestava-lhe vassalagem.  Em 1560, Catarina de Áustria, viúva de D. João III e regente do reino, enviou ao Ndondo uma embaixada dirigida por Paulo Dias de Novais. O rei fez-se caro e Paulo Dias esperou meio ano, na foz do Cuanza, pela autorização para viajar para o interior. Chegada a Cabassa, a embaixada foi retida na corte durante cinco anos. Quando o rei a deixou regressar, guardou ainda como reféns os padres jesuítas que a integravam.


Paulo Dias regressou a Angola em 1575, comandando uma frota considerável que aportou à Ilha de Luanda. A ilha, então chamada "das cabras", delimitava uma baía com um excelente porto natural. Estavam lá estabelecidos cerca de 40 portugueses. A ilha era importante por fornecer conchas de zimbo, que serviam de moeda.
    Os navios transportavam 700 homens. Metade eram soldados. Os outros eram mercadores, funcionários, religiosos e artífices, incluindo sapateiros, pedreiros e alfaiates. O objetivo da expedição era retirar ao reino do Congo o monopólio do fornecimento de escravos. A partir de então, o tráfico passou a fazer-se também a sul do rio Dande.
No ano seguinte, Paulo Dias fundou Luanda. Ali, a água potável abundava e o morro, que foi chamado de S. Paulo, constituía uma boa posição defensiva.


 A população branca teve dificuldade em adaptar-se ao clima e padeceu com as doenças tropicais. Ainda assim, a povoação foi-se alargando e dividiu-se em “cidade alta”, a zona nobre, destinada às autoridades civis e religiosas e a “cidade baixa”, onde se instalava a maioria dos habitantes.
Organizavam-se as primeiras expedições armadas para a conquista do interior. Os sobas locais resistiam e o sucesso dos combates variava. Aos poucos, e com a ajuda dos imbangalas, os portugueses foram alargando a sua área de influência.


Foi Paulo Dias de Novais quem fundou o primeiro presídio português em terras de Angola: Massangano.

Fonte: Fonseca Santos, H. A conquista de Angola; Os três reinos. Chiado Editora, Lisboa, 2013.
Imagens: Internet.

domingo, 15 de novembro de 2015


GIL EANES E A ESCRAVATURA


A questão da escravatura continua a ser abordada com algum pudor nos países que a praticaram.
Portugal, que fez dela um comércio em larga escala, foi também um dos primeiros países do mundo a decretar a sua abolição. Não a introduziu em África.  A escravatura fez parte da tradição cultural e da prática de vida de povos de todos os continentes e era já corrente entre os hebreus dos tempos bíblico. Persistiu até aos nossos dias. A Mauritânia apenas a aboliu em 1981.
Será conveniente enquadrar a escravatura na história do nosso processo colonial. A Expansão Portuguesa começou pelas expedições de marinheiros algarvios à costa africana, em busca de proveitos comerciais. A conquista de Ceuta e o ataque a Tânger, em que estiveram envolvidos centenas de navios e milhares de homens, são testemunhos do interesse da Coroa Portuguesa em meter lanças em África, mas têm pouco a ver com os esforços bem mais modestos, em moeda, em tripulações e em navios que levaram à exploração progressiva do litoral africano quase deserto, cada vez mais para sul. Neste contexto, a passagem do Cabo Bojador abriu as portas à exploração de toda a costa ocidental africana. Dali até ao Cabo da Boa Esperança, onde confluem o Atlântico e o Índico, não existem outros obstáculos significativos à navegação costeira.


O Bojador está situado na costa do Saara, numa área atualmente controlada pelo Reino de Marrocos. Ali, os recifes e os bancos de areia prolongam-se por muitas milhas mar adentro, impedindo a passagem das embarcações. O fracasso de tentativas sucessivas de o transpor e as naus e as vidas que nelas se perderam fizeram-no entrar no imaginário dos portugueses como símbolo do medo e da morte no mar.


Em 1434, Gil Eanes, de Lagos, comandou quinze homens que partiram numa barca de trinta toneladas com uma única vela redonda e navegaram para sul, com a costa africana à vista. Note-se que a embarcação tinha tonelagem muito inferior à das caravelas e não dispunha de velas latinas. Provavelmente, teria também menor calado, o que poderia ser um fator importante na travessia dos baixios. 

Quando se aproximou do Cabo, o capitão rumou para oeste, até longe da costa. Terá navegado durante um dia inteiro. Quando deu com um mar tranquilo, Gil Eanes inverteu o rumo para sudeste, até ter de novo a costa próxima. Percebeu então que havia dobrado o Bojador.


O lado escuro da história é que Gil Eanes, um herói nacional, regressou várias vezes à costa africana para capturar escravos. Caçavam mouros desprevenidos que eram depois vendidos em Lagos, num terreiro que ficava em frente às portas da vila. Julga-se que o Infante D. Henrique esteve envolvido no início desse tráfico.
Encontram-se historiadores que questionam as motivações atualmente apresentadas para a Expansão Portuguesa. Para eles, a necessidade de alargar a fé e o império era pulsão corrente na época e nós, partidários duma visão economicista do passado, deixamos de ser capazes de a entender. Certo é que os escravos foram, desde sempre, uma das grandes fontes de rendimento das colónias portuguesas em África.


De um modo geral, os negreiros portugueses não capturavam escravos. Compravam-nos a quem os tinha apanhado.
No século XVI, a região onde se situa hoje a Guiné-Bissau passou a ser dominada pelo reino do Gabu. Os reis de Gabu vendiam escravos aos portugueses, que os exportavam para as Américas. A região chegou mesmo a ser chamada Costa dos Escravos. Portugal recorreu a alguns destes cativos para povoar as ilhas de Cabo Verde, desabitadas em 1456, altura em que Diogo Gomes as descobriu.
A partir do final do século XIV, a exploração da costa africana tornou-se rentável para os nossos marinheiros e mercadores. No século seguinte iniciou-se a colonização, de forma bem modesta. 


Foram construídos alguns entrepostos comerciais fortificados para residência permanente, os quais serviam também de pontos de apoio à navegação costeira. Chamavam-lhes feitorias. A primeira foi a de Arguim, fundada na região do Cabo Branco, em 1448. O Castelo de S. Jorge da Mina, construído em 1482 na costa do atual Gana, no local onde se situa agora a cidade de Elmina, viria a constituir a mais importante instalação comercial portuguesa na zona Equatorial de África. A atividade comercial consistia na troca de trigo, tecidos, cavalos e conchas (zimbo) por ouro, marfim e escravos.
 No ano seguinte à construção da feitoria de S. Jorge da Mina, Diogo Cão chegou ao rio Zaire.
 No século XVI, os portugueses começaram a estabelecer também feitorias na costa da Guiné, no litoral ou junto aos braços de mar. Nasceram assim as povoações de Cacheu, S. Domingos, Farim, Bissau, Geba, Bolola, Rio Grande de Buba e posteriormente, Bolama, Bolor e Bafatá. Os comerciantes vendiam pólvora, tabaco, aguardente e quinquilharia. Do começo do século XVI às duas primeiras décadas do século XIX, adquiriam sobretudo escravos.
O tráfico de seres humanos foi praticado por nacionais de vários países europeus, incluindo Portugal, durante perto de três séculos.


       O grande Marquês de Pombal decretou o seu fim, na Metrópole e na Índia, em fevereiro de 1761. Foi preciso esperar quase cem anos para que a medida se estendesse ao continente português. Os escravos do Estado foram libertados em 1854 e os da Igreja, que também os tinha, em 1856. Foi apenas em fevereiro de 1869 que a escravatura foi abolida em todo o império português, e ainda assim com exceções até 1878. No Brasil a abolição da escravatura foi também um processo gradual que teve início na convenção assinada entre o Brasil e a Inglaterra em 1825 e culminou na Lei Áurea de 1888.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015





   Este livro consta de uma história grande, feita há muito, e de quarenta contos curtos escritos ao longo do último ano. Deixo aqui o mais pequeno de todos.

A PASSAGEM

 Foi tão simples como desaprender de voar.
 Não tive dor. A dor foi antes. Fiquei vazio e sereno.
 Aqui estou, não sei há quanto tempo. Descobri que, deste lado, o tempo não existe. Pelo menos, não se conta.
Até agora, não avistei anjos nem demónios. Ninguém manifestou interesse em me julgar. Acho, até, que não se importam comigo.
Tenho disponibilidade para tudo e até me deu para filosofar. Sei que o “eu” fratura. Depois de pensar bastante, deixei de tentar dividir o que é indivisível e aceitei a pertença ao Ser universal. A conclusão tranquilizou-me. O destino parece-me razoável.
Quererão saber da passagem. Vou contar-vos. Não sei se me faço ouvir daqui. Estou imóvel, desde que cheguei. Tenho alguns palmos de terra em cima.
É como adormecer, mas sem ter sonhos. Dá-se num instante. Primeiro, falta-nos o ar. Depois, a gente percebe que mudou para uma forma antiga. Mal se reconhece.
Choveu, certamente, pois começa a escorrer água pelas frinchas do teto. Eu próprio me sinto um tanto liquefeito. Ainda assim, não me dou mal, e não estou certo de querer sair.
É pena a caixa estar a encher-se de vermes.


terça-feira, 27 de outubro de 2015


    OS PAINÉIS DE S. VICENTE DE FORA



II

Na ausência de registos escritos que as expliquem, as cenas pintadas nos painéis vão sendo objeto de diversas interpretações. 
Jorge Filipe de Almeida julga ter encontrado no botim da criança representado no “painel do infante” as iniciais de Nuno Gonçalves e a data de 1445. Tal faria recuar um quarto de século a criação da obra. E diz mais Jorge de Almeida: os painéis não representariam S. Vicente a abençoar a partida dos guerreiros, mas as exéquias simbólicas do Infante D. Fernando, morto em cativeiro, em Marrocos. Era preciso fazer o luto pelo Infante que o império nascente abandonara. Essa hipótese remete-nos para Almada Negreiros, que pensou ser D. Fernando o "santo" representado nas tábuas centrais.        
Recentemente, o historiador João de Castro Nunes julgou ler, no conjunto dos quadros, a intenção do rei D. Afonso V restabelecer a concórdia em Portugal e fazer sarar as feridas produzidas na batalha de Alfarrobeira, onde foi morto o infante D. Pedro, seu tio e sogro. O conflito armado ocorreu em 1449, perto de Alverca. Derrotados, muitos membros da alta nobreza e do clero procuraram segurança fora das fronteiras do reino. A enigmática corda com nós enrolada, pintada no pavimento do "painel do arcebispo" simbolizaria o restabelecimento da unidade nacional, necessária face às campanhas que se avizinhavam no norte de África. A ser assim, o quadro não poderia ter sido pintado antes de 1450.
Como vimos, as datações propostas para os quadros oscilam entre 1445 e 1490. As tentativas diferentes de interpretação aplicam-se a muitos personagens. Os reis propostos vão desde D. João I ao seu bisneto D. João II. A liberdade artística permite, naturalmente, voltar a dar vida a pessoas já falecidas, recorrendo a uma simbologia que nem sempre é fácil de interpretar. 
No "painel do arcebispo", o santo, ou lá quem é, parece abençoar cavaleiros dispostos a partir para a guerra. Não se sabe se o guerreiro que apoia apenas um joelho no chão é o rei ou se, pela modéstia da sua armadura (como faz notar António Salvador Marques) não passa dum soldado comum.  
Houve diversas aventuras militares no começo da dinastia de Avis. Tanto se poderá tratar do embarque para a conquista de Ceuta (e então o rei seria D. João I), como dos preparativos para o ataque a Tanger, em 1437. Poderia ser também uma expedição militar de D. Afonso V, dirigida a uma das várias praças africanas que conquistou. A estar figurado D. Afonso V, um dos cavaleiros presentes seria seu tio D. Afonso, primeiro duque de Bragança.
A tratar-se de D. João I e de Ceuta, o rei e os infantes D. Duarte, D. Pedro, D. Fernando e D. Henrique teriam de figurar no "painel do arcebispo". Ceuta foi conquistada em 1415. No "painel dos cavaleiros" estão representados homens bem mais velhos do que eram os infantes naquela data. Note-se que o infante D. João contava apenas 15 anos e não foi a Ceuta.
Na outra tábua central, apelidada de "painel do Infante", o presumível rei ajoelhado usa espada, mas veste traje de corte. O santo é seguramente o mesmo nos dois painéis. Todas as outras figuras têm fisionomias distintas. Nada impede, contudo, que o autor tenha representado lado a lado reis diferentes e gerações diversas de nobres. A unicidade do conjunto das seis tábuas não é dogma de fé.



António Salvador Marques propõe identificar os quatro cavaleiros representados no painel do mesmo nome como os tios do rei D. Afonso V. Estariam todos mortos na data que da feitura do políptico (por volta de 1460) mas poderiam ter sido copiados de retratos existentes na época e perdido mais tarde. Com base nos símbolos das ordens de cavalaria a que os infantes pertenciam, Salvador Marques articula uma explicação engenhosa para a identificação de cada um. Henrique seria o cavaleiro ajoelhado vestido de roxo, João o vestido de vermelho, Pedro o que traja de verde e Fernando o que veste de negro e tem na cabeça, à maneira de coroa de espinhos, um elmo mourisco.
Ainda segundo António Marques, no painel do rei, D. Afonso V colocaria um joelho em terra frente ao santo. O falecido rei D. Duarte estaria representado com o chapéu borgonhês e a criança seria o futuro rei D. João II. A rainha D. Leonor, mulher de D. Duarte, vestiria de cinzento, enquanto no primeiro plano, a rainha D. Isabel, mulher do rei, vestiria de vermelho.
Tudo isto, assim encadeado, faz sentido. No entanto, as dúvidas persistem.   
Nesta discussão, destinada a perdurar, abundam os argumentos e os raciocínios elaborados, mas identificam-se alguns fatos dificilmente questionáveis.
Em primeiro lugar, os quadros foram encontrados no convento de S. Vicente de Fora, em Lisboa. Parece razoável associá-los à figura de S. Vicente.
Em segundo, o desenho do soalho, descoberto por Almada Negreiros e José de Bragança é facilmente identificável por qualquer observador.



Em terceiro, a semelhança do homem do chapelão borgonhês com a figura associada na Crónica de Zurara ao lema "Talant de bien faire", do infante D. Henrique, é indiscutível.


Em quarto lugar, a orientação da luz no painel dos pescadores difere da de todas as outras tábuas.



Pode argumentar-se que os painéis foram transportados de outro sítio. As obras do convento de S. Vicente foram iniciadas em 1582. As tábuas estariam originalmente integradas no retábulo de São Vicente da capela-mor da Sé de Lisboa. Tal não retiraria S. Vicente dos quadros.
O traçado do soalho pode ser uma coincidência ou um preciosismo do pintor, que terá levado anos a executar a obra e poderá ter trabalhado em lugares com chãos diferentes.
Quando ao homem do chapelão, como vimos antes, tem sido sugerido que a crónica de Zurara foi maliciosamente alterada.  
A discrepância da iluminação do painel dos pescadores, que contradiz a disposição das tábuas com base no desenho do pavimento, é, em teoria, a mais fácil de explicar. A tábua terá sido pintada num local com luz diferente e acrescentada depois ao conjunto. Os traços do sobrado terão sido feitos para facilitar a incorporação.
Em alternativa, poderá ter integrado originalmente outro políptico. A verdade é que faz falta neste. Quem sabe se se perderam tábuas nas obras que a igreja sofreu ao longo dos séculos?  
Serão conjeturas legítimas. As probabilidades de estarem certas são variáveis.
Até se reunirem mais dados, creio que é nestes factos que deve assentar a análise da obra. Nada impede, contudo que os críticos de arte e até os leigos como eu deem asas à imaginação.