DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 27 de outubro de 2015


    OS PAINÉIS DE S. VICENTE DE FORA



II

Na ausência de registos escritos que as expliquem, as cenas pintadas nos painéis vão sendo objeto de diversas interpretações. 
Jorge Filipe de Almeida julga ter encontrado no botim da criança representado no “painel do infante” as iniciais de Nuno Gonçalves e a data de 1445. Tal faria recuar um quarto de século a criação da obra. E diz mais Jorge de Almeida: os painéis não representariam S. Vicente a abençoar a partida dos guerreiros, mas as exéquias simbólicas do Infante D. Fernando, morto em cativeiro, em Marrocos. Era preciso fazer o luto pelo Infante que o império nascente abandonara. Essa hipótese remete-nos para Almada Negreiros, que pensou ser D. Fernando o "santo" representado nas tábuas centrais.        
Recentemente, o historiador João de Castro Nunes julgou ler, no conjunto dos quadros, a intenção do rei D. Afonso V restabelecer a concórdia em Portugal e fazer sarar as feridas produzidas na batalha de Alfarrobeira, onde foi morto o infante D. Pedro, seu tio e sogro. O conflito armado ocorreu em 1449, perto de Alverca. Derrotados, muitos membros da alta nobreza e do clero procuraram segurança fora das fronteiras do reino. A enigmática corda com nós enrolada, pintada no pavimento do "painel do arcebispo" simbolizaria o restabelecimento da unidade nacional, necessária face às campanhas que se avizinhavam no norte de África. A ser assim, o quadro não poderia ter sido pintado antes de 1450.
Como vimos, as datações propostas para os quadros oscilam entre 1445 e 1490. As tentativas diferentes de interpretação aplicam-se a muitos personagens. Os reis propostos vão desde D. João I ao seu bisneto D. João II. A liberdade artística permite, naturalmente, voltar a dar vida a pessoas já falecidas, recorrendo a uma simbologia que nem sempre é fácil de interpretar. 
No "painel do arcebispo", o santo, ou lá quem é, parece abençoar cavaleiros dispostos a partir para a guerra. Não se sabe se o guerreiro que apoia apenas um joelho no chão é o rei ou se, pela modéstia da sua armadura (como faz notar António Salvador Marques) não passa dum soldado comum.  
Houve diversas aventuras militares no começo da dinastia de Avis. Tanto se poderá tratar do embarque para a conquista de Ceuta (e então o rei seria D. João I), como dos preparativos para o ataque a Tanger, em 1437. Poderia ser também uma expedição militar de D. Afonso V, dirigida a uma das várias praças africanas que conquistou. A estar figurado D. Afonso V, um dos cavaleiros presentes seria seu tio D. Afonso, primeiro duque de Bragança.
A tratar-se de D. João I e de Ceuta, o rei e os infantes D. Duarte, D. Pedro, D. Fernando e D. Henrique teriam de figurar no "painel do arcebispo". Ceuta foi conquistada em 1415. No "painel dos cavaleiros" estão representados homens bem mais velhos do que eram os infantes naquela data. Note-se que o infante D. João contava apenas 15 anos e não foi a Ceuta.
Na outra tábua central, apelidada de "painel do Infante", o presumível rei ajoelhado usa espada, mas veste traje de corte. O santo é seguramente o mesmo nos dois painéis. Todas as outras figuras têm fisionomias distintas. Nada impede, contudo, que o autor tenha representado lado a lado reis diferentes e gerações diversas de nobres. A unicidade do conjunto das seis tábuas não é dogma de fé.



António Salvador Marques propõe identificar os quatro cavaleiros representados no painel do mesmo nome como os tios do rei D. Afonso V. Estariam todos mortos na data que da feitura do políptico (por volta de 1460) mas poderiam ter sido copiados de retratos existentes na época e perdido mais tarde. Com base nos símbolos das ordens de cavalaria a que os infantes pertenciam, Salvador Marques articula uma explicação engenhosa para a identificação de cada um. Henrique seria o cavaleiro ajoelhado vestido de roxo, João o vestido de vermelho, Pedro o que traja de verde e Fernando o que veste de negro e tem na cabeça, à maneira de coroa de espinhos, um elmo mourisco.
Ainda segundo António Marques, no painel do rei, D. Afonso V colocaria um joelho em terra frente ao santo. O falecido rei D. Duarte estaria representado com o chapéu borgonhês e a criança seria o futuro rei D. João II. A rainha D. Leonor, mulher de D. Duarte, vestiria de cinzento, enquanto no primeiro plano, a rainha D. Isabel, mulher do rei, vestiria de vermelho.
Tudo isto, assim encadeado, faz sentido. No entanto, as dúvidas persistem.   
Nesta discussão, destinada a perdurar, abundam os argumentos e os raciocínios elaborados, mas identificam-se alguns fatos dificilmente questionáveis.
Em primeiro lugar, os quadros foram encontrados no convento de S. Vicente de Fora, em Lisboa. Parece razoável associá-los à figura de S. Vicente.
Em segundo, o desenho do soalho, descoberto por Almada Negreiros e José de Bragança é facilmente identificável por qualquer observador.



Em terceiro, a semelhança do homem do chapelão borgonhês com a figura associada na Crónica de Zurara ao lema "Talant de bien faire", do infante D. Henrique, é indiscutível.


Em quarto lugar, a orientação da luz no painel dos pescadores difere da de todas as outras tábuas.



Pode argumentar-se que os painéis foram transportados de outro sítio. As obras do convento de S. Vicente foram iniciadas em 1582. As tábuas estariam originalmente integradas no retábulo de São Vicente da capela-mor da Sé de Lisboa. Tal não retiraria S. Vicente dos quadros.
O traçado do soalho pode ser uma coincidência ou um preciosismo do pintor, que terá levado anos a executar a obra e poderá ter trabalhado em lugares com chãos diferentes.
Quando ao homem do chapelão, como vimos antes, tem sido sugerido que a crónica de Zurara foi maliciosamente alterada.  
A discrepância da iluminação do painel dos pescadores, que contradiz a disposição das tábuas com base no desenho do pavimento, é, em teoria, a mais fácil de explicar. A tábua terá sido pintada num local com luz diferente e acrescentada depois ao conjunto. Os traços do sobrado terão sido feitos para facilitar a incorporação.
Em alternativa, poderá ter integrado originalmente outro políptico. A verdade é que faz falta neste. Quem sabe se se perderam tábuas nas obras que a igreja sofreu ao longo dos séculos?  
Serão conjeturas legítimas. As probabilidades de estarem certas são variáveis.
Até se reunirem mais dados, creio que é nestes factos que deve assentar a análise da obra. Nada impede, contudo que os críticos de arte e até os leigos como eu deem asas à imaginação.




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