OS PAINÉIS DE S.
VICENTE DE FORA
I
Os painéis de S.
Vicente proporcionam-nos um olhar privilegiado sobre a sociedade portuguesa do
século XV. Curiosamente, algumas fisionomias perduraram, ao longo de gerações.
Todos conhecemos rostos parecidos aos ilustrados nos painéis.
Os especialistas
que os estudam andam longe do consenso. Tudo, nessa pintura, é questionado: a
data, o autor (ou autores) do políptico, o propósito, a identidade do santo e
dos personagens representados e até o enquadramento dos painéis.
As tábuas foram
encontradas em 1882, no Paço de S. Vicente de Fora, onde terão chegado a servir
de andaimes para obras. Em 1909, foram restauradas por Luciano Freire, na
Academia Real de Belas Artes. Findo o restauro, foram expostas, em dois
trípticos, no andar nobre do palácio.
No ano seguinte,
José de Figueiredo publicou o seu livro «O pintor Nuno Gonçalves. Arte
Portuguesa Primitiva». Interpretou os painéis como dois trípticos separados. Considerou
o monograma descoberto na bota da figura ajoelhada no «Painel do Infante»
idêntico a outras assinaturas do pintor régio de D. Afonso V e atribui-lhe a
autoria da obra. Teria sido pintada entre 1470 e 1480. Figueiredo deu a cada um
dos painéis os nomes pelos quais os conhecemos atualmente. Centrou a
interpretação da obra na figura de S. Vicente, erigido em patrono da
cristandade na cruzada contra os marroquinos infiéis.
Julga-se que os
painéis pertenceram ao retábulo de S. Vicente da capela-mor da Sé de Lisboa. Em
1912, foram transferidos da Academia de Belas Artes para o Museu Nacional de Arte Antiga.
Em 1926, José de
Bragança e Almada Negreiros repararam na disposição do desenho do pavimento.
Contrariava a disposição das tábuas enquadradas nos trípticos. Os seis elementos
formariam uma unidade. Tem sido essa, desde então, a opinião prevalecente,
apesar de não se conhecerem (que eu saiba) na pintura europeia da época
polípticos com seis elementos dispostos lado a lado.
A disputa pela
primazia desta descoberta terá levado a um episódio de pancadaria entre o crítico
de arte e o pintor.
Almada não
aceitou a autoria proposta e falou sempre nos painéis «atribuídos» a
Nuno Gonçalves. Francisco da Holanda, no século XVI, atribuiu a feitura dos
painéis a um certo Mota, pintor de D. João II.
Ter sido ou não
Nuno Gonçalves a executar a obra-prima não é coisa que me tire o sono. Lembro
uma polémica sobre William Shakespeare. Houve quem pusesse em causa que tivesse
sido ele o autor das múltiplas obras de teatro representadas com a sua
assinatura. “Se não foi Shakespeare – considerava um dos intervenientes da
polémica – foi outro inglês genial que viveu exatamente na mesma época e
escreveu esses livros magníficos». Que diferença faria chamar-se John Smith?
Tendo encontrado
duas iniciais na dalmática, Almada Negreiros achou que o santo era o infante D.
Fernando. Por encaixar no espaço disponível, considerou ainda que o políptico
teria integrado inicialmente o retábulo da Capela do Fundador, no Mosteiro da
Batalha.
Não é o desenho
do soalho o único fator a ter em conta na disposição dos quadros. A iluminação
não pode ser esquecida na análise duma pintura. Encontramos aqui o que parece
ser uma incongruência insanável para quem aceita integrar as seis tábuas numa
só unidade horizontal: a iluminação do «painel dos pescadores», que contradiz a
das restantes pinturas. Aqui, a luz vem da direita, provindo da esquerda nos
cinco outros painéis.
Clemente Baeta
propõe uma explicação lógica para esta discrepância: Os painéis teriam sido
concebidos para serem colocados em paredes diferentes. Poderia existir uma
janela entre o painel dos pescadores e o dos frades. Esta conjetura põe em
causa a interpretação de Almada Negreiros, assente no desenho do soalho.
Existe outra possibilidade: os quase sessenta
retratos foram pintados seguramente em alturas diferentes, ao longo dum período
considerável de tempo e nada nos diz que tinham sido traçados na mesma sala.
Isto faz-nos voltar ao problema da disposição dos painéis.
Além de S. Vicente
e do infante D. Fernando, para a figura de aspeto efeminado e veste
eclesiástica (dalmática, uma vestimenta dos diáconos) foi também proposta outra
identidade: o adolescente, D. Afonso, filho de D. João II, falecido aos 16
anos.
No quadro
maior representado à nossa esquerda, estão representados dois dos atributos
habituais de S. Vicente (a dalmática e o Evangelho). No da direita, o objeto preto sustentado pelo braço esquerdo do santo poderá um livro mas, em vez da
palma do martírio, o diácono empunha a vara do comando.
A figura mais popular de toda a obra é certamente
a que usa o chapelão borgonhês. A Borgonha foi um ducado semi-independente, de
grande importância na Idade Média. O seu território distribuía-se por parte da
França e da Bélgica. Por ser a essa a terra de origem do pai de D. Afonso
Henriques, a nossa primeira dinastia foi chamada de «Borgonhesa». A Borgonha era
uma região mais fria que a nossa. Ali esteve em moda, durante algum tempo, um
chapéu grande com uma espécie de cachecol integrado. A semelhança com a imagem
que se pode ver na Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné, de Gomes
Eanes de Zurara, geralmente ligada ao Infante D. Henrique pela associação da
sua divisa «Talant de bien faire», presente também no seu túmulo no Mosteiro da
Batalha, é inquestionável. Essa imagem de D. Henrique entrou no nosso
imaginário e é a figura de proa do monumento aos descobrimentos, patente em
Belém.
Acontece que há quem
ponha em dúvida a autenticidade da Crónica da Guiné. Não teria sido modificado
o retrato, copiado diretamente do painel do rei, mas a legenda. O homem figurado
seria D. Duarte, mas a sua divisa «Tant que serey» teria sido alterada para se
assemelhar à do seu irmão D. Henrique. A razão residiria no seu processo de glorificação
de D. Henrique ocorrido no reinado de D. Manuel.
A meu ver, esta conjetura
é demasiado elaborada. Não terá sido imaginada apenas para justificar uma
teoria já amadurecida?
A serem autênticas a
imagem e a divisa, voltaria tudo ao começo, na identificação das figuras
centrais do políptico. Quase todos os intérpretes começaram por tentar nomear uma
das figuras e partiram dela para a caracterização das restantes.
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