DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

  
 OS PAINÉIS DE S. VICENTE DE FORA


I
Os painéis de S. Vicente proporcionam-nos um olhar privilegiado sobre a sociedade portuguesa do século XV. Curiosamente, algumas fisionomias perduraram, ao longo de gerações. Todos conhecemos rostos parecidos aos ilustrados nos painéis.
Os especialistas que os estudam andam longe do consenso. Tudo, nessa pintura, é questionado: a data, o autor (ou autores) do políptico,  o propósito, a identidade do santo e dos personagens representados e até o enquadramento dos painéis.
As tábuas foram encontradas em 1882, no Paço de S. Vicente de Fora, onde terão chegado a servir de andaimes para obras. Em 1909, foram restauradas por Luciano Freire, na Academia Real de Belas Artes. Findo o restauro, foram expostas, em dois trípticos, no andar nobre do palácio.
No ano seguinte, José de Figueiredo publicou o seu livro «O pintor Nuno Gonçalves. Arte Portuguesa Primitiva». Interpretou os painéis como dois trípticos separados. Considerou o monograma descoberto na bota da figura ajoelhada no «Painel do Infante» idêntico a outras assinaturas do pintor régio de D. Afonso V e atribui-lhe a autoria da obra. Teria sido pintada entre 1470 e 1480. Figueiredo deu a cada um dos painéis os nomes pelos quais os conhecemos atualmente. Centrou a interpretação da obra na figura de S. Vicente, erigido em patrono da cristandade na cruzada contra os marroquinos infiéis.
Julga-se que os painéis pertenceram ao retábulo de S. Vicente da capela-mor da Sé de Lisboa. Em 1912, foram transferidos da Academia de Belas Artes para o Museu Nacional de Arte Antiga.
Em 1926, José de Bragança e Almada Negreiros repararam na disposição do desenho do pavimento. Contrariava a disposição das tábuas enquadradas nos trípticos. Os seis elementos formariam uma unidade. Tem sido essa, desde então, a opinião prevalecente, apesar de não se conhecerem (que eu saiba) na pintura europeia da época polípticos com seis elementos dispostos lado a lado.
A disputa pela primazia desta descoberta terá levado a um episódio de pancadaria entre o crítico de arte e o pintor.
Almada não aceitou a autoria proposta e falou sempre nos painéis «atribuídos» a Nuno Gonçalves. Francisco da Holanda, no século XVI, atribuiu a feitura dos painéis a um certo Mota, pintor de D. João II.
Ter sido ou não Nuno Gonçalves a executar a obra-prima não é coisa que me tire o sono. Lembro uma polémica sobre William Shakespeare. Houve quem pusesse em causa que tivesse sido ele o autor das múltiplas obras de teatro representadas com a sua assinatura. “Se não foi Shakespeare – considerava um dos intervenientes da polémica – foi outro inglês genial que viveu exatamente na mesma época e escreveu esses livros magníficos». Que diferença faria chamar-se John Smith?
Tendo encontrado duas iniciais na dalmática, Almada Negreiros achou que o santo era o infante D. Fernando. Por encaixar no espaço disponível, considerou ainda que o políptico teria integrado inicialmente o retábulo da Capela do Fundador, no Mosteiro da Batalha.
Não é o desenho do soalho o único fator a ter em conta na disposição dos quadros. A iluminação não pode ser esquecida na análise duma pintura. Encontramos aqui o que parece ser uma incongruência insanável para quem aceita integrar as seis tábuas numa só unidade horizontal: a iluminação do «painel dos pescadores», que contradiz a das restantes pinturas. Aqui, a luz vem da direita, provindo da esquerda nos cinco outros painéis.
Clemente Baeta propõe uma explicação lógica para esta discrepância: Os painéis teriam sido concebidos para serem colocados em paredes diferentes. Poderia existir uma janela entre o painel dos pescadores e o dos frades. Esta conjetura põe em causa a interpretação de Almada Negreiros, assente no desenho do soalho.
 Existe outra possibilidade: os quase sessenta retratos foram pintados seguramente em alturas diferentes, ao longo dum período considerável de tempo e nada nos diz que tinham sido traçados na mesma sala. Isto faz-nos voltar ao problema da disposição dos painéis.


Além de S. Vicente e do infante D. Fernando, para a figura de aspeto efeminado e veste eclesiástica (dalmática, uma vestimenta dos diáconos) foi também proposta outra identidade: o adolescente, D. Afonso, filho de D. João II, falecido aos 16 anos.


No quadro maior representado à nossa esquerda, estão representados dois dos atributos habituais de S. Vicente (a dalmática e o Evangelho). No da direita, o objeto preto sustentado pelo braço esquerdo do santo poderá um livro mas, em vez da palma do martírio, o diácono empunha a vara do comando. 
 A figura mais popular de toda a obra é certamente a que usa o chapelão borgonhês. A Borgonha foi um ducado semi-independente, de grande importância na Idade Média. O seu território distribuía-se por parte da França e da Bélgica. Por ser a essa a terra de origem do pai de D. Afonso Henriques, a nossa primeira dinastia foi chamada de «Borgonhesa». A Borgonha era uma região mais fria que a nossa. Ali esteve em moda, durante algum tempo, um chapéu grande com uma espécie de cachecol integrado. A semelhança com a imagem que se pode ver na Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara, geralmente ligada ao Infante D. Henrique pela associação da sua divisa «Talant de bien faire», presente também no seu túmulo no Mosteiro da Batalha, é inquestionável. Essa imagem de D. Henrique entrou no nosso imaginário e é a figura de proa do monumento aos descobrimentos, patente em Belém. 



Acontece que há quem ponha em dúvida a autenticidade da Crónica da Guiné. Não teria sido modificado o retrato, copiado diretamente do painel do rei, mas a legenda. O homem figurado seria D. Duarte, mas a sua divisa «Tant que serey» teria sido alterada para se assemelhar à do seu irmão D. Henrique. A razão residiria no seu processo de glorificação de D. Henrique ocorrido no reinado de D. Manuel.
A meu ver, esta conjetura é demasiado elaborada. Não terá sido imaginada apenas para justificar uma teoria já amadurecida?   
    A serem autênticas a imagem e a divisa, voltaria tudo ao começo, na identificação das figuras centrais do políptico. Quase todos os intérpretes começaram por tentar nomear uma das figuras e partiram dela para a caracterização das restantes.

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