DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

 

                  OS DIAS DO VENTO SUL

 


Foi com agrado e também com certo orgulho que colaborei na apresentação do livro “Os dias do vento Sul”, da autoria do meu colega e amigo Jorge Seabra, que foi galardoado pela segunda vez com o Prémio de Romance da SOPEAM.

Quem conhece os livros do autor entenderá facilmente o agrado, mas poderá surpreender-se pela manifestação de orgulho por uma obra que não é minha. 

Não é minha, mas provem da mesma grande casa simbólica: A República “Kimbo dos Sobas”, em Coimbra. Todos bebemos da mesma fonte.

Estivemos lá em alturas diferentes – apesar do cabelo branco, o Jorge é mais novo do que eu.

A nossa casa era alheia à praxe coimbrã e só aceitou oficializar-se como “República” para ter assento no Conselho das Repúblicas que iria influenciar pela positiva as sucessivas crises académicas em que uma parte considerável da jovem intelectualidade portuguesa contestou a Ditadura e a guerra colonial. Empenhava-se no combate ao colonialismo, na modernização da sociedade portuguesa, no estabelecimento da Democracia e no estreitamento das relações com o conjunto das nações europeias das quais nos separava, geográfica e ideologicamente a Espanha fascista.

O Kimbo foi fundado por estudantes provenientes de Angola. Durante vários anos, além dos angolanos apenas foram ali aceites os são-tomenses, que, por brincadeira eram considerados naturais de mais uma província de Angola. Depois, foram entrando jovens de cá.

É notável o percurso de muita gente que ali se juntou e cresceu intelectualmente. 

De um grupo pouco organizado de estudantes, quase todos com origem ou vivência africana, saíram um primeiro-ministro de São Tomé e Príncipe, dois generais das FAPLA (um deles foi também ministro do governo angolano), um capitão de Abril, um dos engenheiros portugueses mais reconhecidos aquém e além-fronteiras, nove escritores com obra publicada, um cineasta e dois mártires. Como acabamos de ouvir da boca do Pedro Miguéis, saiu também um dos fundadores da Ortopedia Infantil em Portugal.

Próximo, ainda que nunca tenha vivido no Kimbo, andou também o meu amigo Gilberto Teixeira da Silva, o celebrado comandante Gica das FAPLA. Foi ele quem se encarregou de me abrir os olhos para a política no longínquo ano de 1961.

Parece extraordinário, para um grupo que nunca foi numeroso.

Vou citar apenas os escritores. Além do Jorge Seabra e do Trabulo, escreveram e publicaram livros o Manuel Rui ( o mais conhecido de todos nós), o Álvaro Fernandes,  o Ireneu Cruz,  o  António Faria, o Albertino Bragança, o  Fernando Martinho e o China. Não sei porquê, tenho a sensação de me estar a esquecer de alguém. Que me perdoe. Será o peso dos anos…

O livro “Os Dias do Vento Sul” constitui uma obra extensa e complexa. Assenta, em parte, numa estrutura policial, mas ultrapassa largamente os limites da investigação de crimes e expõe em pormenor alguns aspetos sórdidos que parecem constituir subprodutos tóxicos dos modelos de acumulação de capital vigentes no chamado “mundo ocidental”.

Jorge Seabra dá espaço no seu livro a um episódio trágico, dos muitos que assinalaram a II Grande Guerra. O Laconia, um paquete de 40.000 toneladas da Cunard Lines, foi torpedeado por um submarino alemão no Atlântico Sul, quando seguia de Cape Town para o Canadá. Quando o U-156 emergiu, deu com os sobreviventes debatendo-se nas águas. Os marinheiros recolheram os náufragos que puderam e pediram ajuda a dois outros submarinos alemães e a um italiano que navegavam perto. Os passageiros do Laconia foram apinhados nas torres e nos conveses. Pareciam estar a salvo, ainda que cheios de fome e de sede.

Ao terceiro dia, o piloto de um bombardeiro americano avistou os submarinos e bombardeou-os. Os submarinos imergiram, abandonando os náufragos. Poucos terão sobrevivido. Entre eles, a imaginação do autor incluiu Henriqueta Lott e a sua irmã Lora. Salvaram-se, mas nunca mais se voltaram a ver. Jorge Seabra trouxe a Lora para a Figueira da Foz e casou-a com um pescador de bacalhau. 

O autor desenhou uma mão-cheia de personagens carismáticos que se vão interrelacionando de forma que chega a surpreender e, mesmo, a abalar. 

Bem, não vou contar já o livro todo…

Os meus parabéns ao Jorge Seabra!