DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 27 de março de 2021

 

        CONTOS DE HERTOGENBOSCH


         O DIÁRIO DE ADÃO




   Data impercetível 
 

  Os dias no Paraíso são longos. Vivo sozinho e tenho poucos afazeres. As horas do dia custam a passar e as da noite ainda são piores.

Para me entreter, resolvi escrever um diário.

A princípio, Deus não se mostrou de acordo comigo.

− Queres o que não pode ser. A escrita só vai ser inventada daqui a muito tempo.

− Mas o Senhor Deus sabe tudo!

Confesso que hesitei. Estive tentado a introduzir uma interrogação na frase.

Deus coçou a cabeça, antes de responder.

− Sim... No entanto, há coisas que não devem ser reveladas antes de as criaturas estarem preparadas para as conhecerem.

− E os anjos? Estão preparados?

− O Gabriel está. Nunca teve grande jeito para a guerra nem para a música. Aprendeu outras coisas.

− Sabe ler e escrever?

− Sabe, embora não tenha grande prática…

− Empresta-mo?

− Como? Os anjos não são coisas! Não se emprestam!

− Não me expressei bem. Permite que ele me ajude?

Deus coçou outra vez a cabeça. Não via razões para se opor à minha pretensão. No entanto, lá no fundo do seu infinito conhecimento, alguma coisa lhe sugeria que a ideia não era boa.


  Data impercetível


Quando o Senhor me amassou em barro e me transmitiu o sopro da vida, dei por mim no Paraíso. Olhei em redor e não vi pessoas. Ainda esperei ter companheiros com quem pudesse conversar. Não os havia ou, pelo menos, não se viam.

Procurei-os em vales e montanhas, nos recônditos das cavernas e nas grandes planícies. Calcorreei o Jardim todo, ou quase todo. Gastei muito tempo nisso.

Confesso que estremeci, quando alcancei o extremo oriental do Éden. É uma fronteira natural. Confesso que estremeci, quando alcancei o extremo oriental do Éden. É uma fronteira natural. Consta de dois desfiladeiros, separados por uma montanha, que nem é muito elevada. É por eles que se esgueiram os grandes rios Tigre e Eufrates.

Mais além, ficava o desconhecido. Viviam lá animais selvagens e seres terríveis a quem ninguém dera ainda nomes. Dizia-se que o Senhor passava pouco tempo por aquelas bandas.

Apercebi-me do meu destino, ou de uma parte dele, algum tempo depois de começar o diário, quando o Caim aprendeu a andar e entendi que era parecido comigo. Por essa altura, a Eva estava outra vez grávida há vários meses. Deus quer a terra povoada. É preciso obedecer-lhe.

Quem escolheu o nome para o meu menino foi ela. Nunca percebi onde o foi buscar. Acho que Deus não pôs as mulheres no mundo para que as compreendamos.


Data impercetível


O Gabriel lá me veio ajudar a ser escritor. Imaginem a cena… Eu, nu, de mãos atrás das costas, um pouco nervoso, a caminhar em trajetos curtos, de um lado para o outro, enquanto ditava. Ele, sentado no chão, a escrever com uma pena de pato numa folha de papiro…

O anjo olhava-me e parecia achar que eu tinha pressa demais. Não me admirei. Suponho que os seres eternos desconhecem a urgência de algumas situações humanas.

Os anjos não gostam muito de se sentar no chão. Acham que sujam as penas. Perguntei-lhe:

− Como é que sei se estás a registar exatamente o que eu digo?

Gabriel voltou para mim os seus olhos cândidos e declarou, com a inocência que lhe competia:

− Não podes saber. Para tal, terias de aprender a ler, ou de adivinhar os meus pensamentos.

− Ensinas-me a ler?

Gabriel movimentou, ao de leve, uma asa e aplicou ao rosto uma expressão suave de censura.

A mímica dos anjos é pobre. Não conheço nenhum que seja capaz de fazer teatro. Não sabem o que é teatro? Perguntem à Eva, quando ela se desentende comigo. Se quiserem ir mais longe, para conhecerem um encenador, visitem a serpente...

− Não – acabou por responder o anjo. − Deus avisou-me de que irias fazer esse pedido e proibiu expressamente que te ensinasse.

− Há algum mal em aprender?

O anjo hesitou, antes de falar. Via-se que a minha pergunta o incomodava.

− Estamos rodeados pelas trevas. É melhor não conhecermos alguns caminhos que podem levar à escuridão.

− Poderemos sempre escolher não os trilhar…

− Acho que confias demasiado no teu livre-arbítrio.

 Calei-me. Até essa altura, poucas ocasiões tivera para fazer escolhas determinantes.

 Concentrei-me no diário. Pode ser que alguém venha a lê-lo. Não gostaria que me tomassem por tolo ou por insensato.

 

Data impercetível

Tenho a certeza de que o Gabriel filtra as minhas palavras. Não o faz por mal. Está na sua natureza limar arestas e procurar consensos. Acontece, deste modo, alguma forma de censura. O anjo não põe lá tudo o que eu digo. Pelo menos, não o transcreve precisamente da mesma maneira. Os palavrões, por exemplo… Inventei alguns e divirto-me a repeti-los quando Deus não está por perto. Por outro lado, há coisas que eu não seria capaz de confiar ao Gabriel. Por exemplo: a serpente ensinou-me maneiras novas de fazer sexo. Agora, eu e a Eva divertimo-nos mais. Nunca contaria isso ao anjo. Ele iria logo a correr comunicar tudo ao Senhor.

Por outro lado, receio que lhe dê para colocar no texto acrescentos de natureza ética. Seria falta de consideração pelo que digo e penso. Apesar de ele ser um pouco ingénuo, tem a obrigação de saber que existem diferenças consideráveis entre os homens e os anjos. É preciso respeitá-las. 

Estranhamente, Deus nunca deu sinais de estar interessado naquilo que vou ditando ao Gabriel. Achará irrelevante o que digo e penso. Terá outras preocupações.


Data impercetível

Julgo que a serpente é, depois de mim, a criatura mais interessante que Deus pôs na terra. É curiosa, astuta e tem sentido de humor, ao contrário dos anjos, que são uns chatos. Aprendi muitas coisas com ela. É mesmo a minha única amiga.

Confesso que me faz alguma confusão falar dela no feminino pois esse ser, bastante preocupado com a própria elegância e com a imagem que transmite, comporta-se, de modo geral, como macho. Talvez cultive certa ambiguidade. Dei nome a vários animais, mas não me calhou escolher o dela. E que é que lhe havia de chamar?

Dou-me bem com a Eva, mas falta-me alguém com quem conversar. Conversas de homem, entendem? Quando os meus filhos crescerem, julgo que a vida será menos aborrecida. No Paraíso, os dias são iguaizinhos uns aos outros e, com as noites, passa-se o mesmo, apesar dos esforços da Eva. Se não falasse, de vez em quando, com a serpente, acho que andaria a precisar de tomar Prozac.

A serpente é uma criatura sensata que procura olhar as coisas como elas são. Não partilha com o Senhor Deus a dicotomia obsessiva entre o claro e o escuro, o bem e o mal. Percebe o que está mesmo em frente aos olhos de todos: a maior parte dos tons do mundo são em cinzento. Concordo com essa graduação e com a relativização dos critérios. Ajudam-me a entender melhor o que me rodeia. Deus sabe tudo, mas espreita lá de muito alto. Acho que vê as suas criaturas como um grande rebanho destinado a seguir cada dia os mesmos caminhos e alimentar-se nos mesmos pastos. A serpente, a bem dizer, é mais humana. Tem as suas próprias fraquezas e compreende as minhas. É tolerante para com os meus pequenos erros e tem sempre uma palavra amiga para me confortar nas horas más. Parece ter nascido para ouvir e perdoar. Claro que não vou ditar nada disto ao pamonha do anjo. Iria logo enfiar isso tudo nas orelhas de Deus.


Data impercetível

Vou contar-vos como é o Jardim do Éden. Trabalho lá seis dias por semana e só descanso ao sábado, pois Deus encarregou-me de o cultivar e guardar. Não sei por quê, as palavras que vou dizer a seguir não parecem bem minhas. É como se falasse com uma voz diferente. Talvez as tenha ouvido a algum anjo.

Do solo fez o Senhor Deus brotar toda a sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal.

E saía um rio do Éden para regar o jardim, e dali se dividia, repartindo-se em quatro braços.

Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim para o cultivar e o guardar.

E lhe deu esta ordem: de toda a árvore do meu jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás: porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.

O Senhor não falou de carne, mas também nos alimentávamos dela. Eu armava laços a ratos e coelhos, que abundavam por ali. Depois de os esfolar com uma pedra de arestas aguçadas, comia-os crus. Ainda não aprendera a fazer lume.

Para me dar uma companheira, o Senhor Deus praticou a primeira intervenção cirúrgica com anestesia geral da História da Medicina. Induziu-me um sono profundo, retirou uma das minhas costelas e fechou o lugar com carne.

Haviam de ver a maravilha que produziu a partir de uma simples costela…

Naquele tempo, andávamos nus. Quando chovia, abrigávamo-nos numa caverna. Sem contar com Deus, que vestia uma túnica branca que quase se confundia com a sua barba comprida, o primeiro ser que vi vestido foi a serpente. Antes de o Senhor Deus a castigar, obrigando-a a rastejar sobre o ventre, ela tinha braços e pernas. Usava uma roupa estranha e colorida em que tinha grande vaidade e que lhe deixava de fora apenas a cabeça, as mãos e os pés. Lembro que estes eram fendidos, como os das cabras.

Às vezes eu, a Eva e as crianças deslocávamo-nos para longe da caverna e ficávamos expostos às intempéries. Tive sempre jeito para inventar coisas. Com três paus e com as peles de dois animais grandes que tinha encontrado mortos, construí uma espécie de tenda que nos ia protegendo da chuva e do sol. A Eva ficou contente, principalmente por causa dos meninos. 

Agora, observo os meus netos a brincar e, por vezes, entristeço. As crianças têm uma facilidade extraordinária de experimentar a alegria. Nem eu nem a Eva tivemos meninice. Fomos postos no mundo, já adultos. Tal não voltará a acontecer com humanos, a não ser que o Senhor decida de forma diferente.


Data impercetível

Quando fomos expulsos do Jardim do Éden, julguei que o meu diário terminara. Tendo-se Deus agastado comigo, não parecia provável que um servo Dele aceitasse continuar a registar por escrito as minhas impressões. No meu modo de ver, os anjos são demasiado dóceis e obedientes. Não foram dotados de imaginação. Apenas eu fui feito à Sua imagem e semelhança. Percebi, nessa altura, que havia um preço a pagar por isso.

Pedi ao Gabriel as folhas de papiro em que ele inscrevera a minha voz. Cedeu-mas prontamente, lembrando que não me iriam servir de nada, uma vez que eu não sabia ler. Guardei-as mesmo assim. Um homem não é feito apenas de razão. Conservei-as o melhor que pude. Entendia que constituíam material frágil e que o tempo acabaria por as reduzir a pó.

Ao abalar, e antes de as arrumar na trouxa, sugeri ao Gabriel que, quando lhe desse jeito, me visitasse para continuar o trabalho iniciado. Fiquei surpreendido por ele ter acedido.

Verifiquei, depois, um facto curioso. Fora do Éden, os anjos são invisíveis. Ninguém avistou nenhum, embora muita gente tenha imaginado que tal aconteceu.

 O Gabriel continua a registar o meu diário. Não deixa de ser interessante ver a pena deslizar como se ninguém a comandasse, enquanto eu falo e as folhas de papiro se vão enchendo de um sem número de carateres indecifráveis. 

A Eva, por vezes, gasta um pouco do seu tempo a observar aquela cena. Cansa-se logo. Tem um feitio prático. Acha que me perco com inutilidades e que o anjo é tolo por me dar ouvidos.


            Data impercetível

Como sabem, fui o primeiro homem. Agora, passados anos, já existem uns tantos. São todos meus filhos, ou meus netos. Embora alguns tenham estabelecido família, habitam perto de nós.

Vou conversando com os crescidos pois, para os pequenos, a Eva tem mais paciência que eu. De modo geral, dou-me bem com eles. Dão mostras de um respeito que me agrada. Tento não envaidecer e não deixo de ter os pés bem assentes no chão.

Dito isto, será justo reconhecer que a serpente foi o meu primeiro amigo verdadeiro.

Espero que, aos que me leiam, chegue a sorte de terem um amigo. Trata-se de uma pessoa (ou de um ser), ao pé de quem nos sentimos bem. Em caso de dificuldades, irá ajudar-nos o melhor que puder. Se nos virmos mergulhados em dúvidas, há de apontar o caminho que lhe parecer mais certo. Se a vida nos correr bem, celebrará connosco. Se nos virmos derrotados e tivermos vontade de chorar, estará perto de nós para nos dar um abraço. Era assim a serpente. Acabou por ser punida por me influenciar.

A Eva foi posta no Jardim pouco tempo depois de mim. Tivemos muitos filhos e filhas, quase a seguir uns aos outros.

No início da humanidade, os irmãos tinham de procriar com as irmãs, por não haver mais gente no mundo.

Eu vivi muitos anos e cheguei até aos dias em que foram estabelecidas regras novas de moral. Interditam a ligação carnal entre irmãos, criando um pecado novo a que se chamou incesto. Não tenho nada contra essas normas. Habituei-me a aceitar a passagem do tempo e as mudanças que ele traz. Possuo, contudo, memória e sei que todos os homens e todas as mulheres provêm de ligações incestuosas entre os meus primeiros descendentes.

Não era bem isto que tencionava ditar hoje ao anjo. A verdade é que os anos cobram o seu tributo. A minha cabeça já não é como dantes. Perdi-me em rodeios. No entanto, o que acabo de dizer serve de pretexto para explicar as razões autênticas do crime do meu filho mais velho.

Sei que circula uma história fantástica sobre a inimizade entre os irmãos. Consta que Caim levou ao Senhor os frutos da terra, enquanto Abel lhe ofereceu as primícias do seu rebanho. O Senhor Deus ter-se-á agradado de Abel e da sua oferta, desdenhando da de Caim.

Nada disso se passou. Deus sabe, melhor do que ninguém, que a cultura dos campos e a criação de gado contribuem, de forma semelhante, para a alimentação e o progresso do Seu povo.

O que aconteceu foi muito diferente. Nasceu uma amargura nova chamada ciúme.

Abel era ainda adolescente e não tinha esposa. Cortejou a sua irmã Enoque, casada com Caim.

A seu ver, nem estava a pecar. Tratava-se somente de aproveitar os frutos do Jardim do Éden. Enoque era linda e a vida era bela.

Caim viu Abel deitar-se com a sua mulher e deixou que o coração se lhe enchesse de ódio.

Como o irmão mais novo era mais alto e mais forte do que ele, o primogénito esperou que Abel adormecesse, depois de ter o desejo satisfeito, e esmagou-lhe a cabeça com um pedregulho.

Deus amaldiçoou-o e pôs-lhe um sinal no rosto, mas não lhe retirou Enoque. Fê-lo habitar a terra de Node, ao oriente do Éden, onde criou muitos filhos e filhas. Não se sabe se algum deles foi gerado por Abel.


Data impercetível


Fui expulso do Jardim. Deus zangou-se também com a Eva. Garantiu-lhe:

Multiplicarei os sofrimentos da tua gravidez; em meio de dores darás à luz filhos; o teu marido te governará.

O Senhor Deus colocou a oriente querubins armados de espadas. Guardam os caminhos para a Árvore da Vida. 

Sem a minha família, o Jardim foi deixado ao abandono. É uma pena. O mato há de estar a tomar conta de tudo, enquanto os animais se devoram uns aos outros.

 Nesta região nova, para onde fui exilado, o solo não é tão fértil nem tão irrigado como o do Éden. Sou obrigado a suar, para sustentar a família com os produtos da terra.

Como se isso não bastasse, tenho saudades e vontade de voltar. Se me perguntarem:

− De onde és? Onde pertences?

Responderei: sou do Éden; foi o primeiro solo que pisei e foi lá que me conheci. Os meus filhos chorarão sempre o paraíso perdido.

Sinto também falta da serpente. Não a voltei a ver desde que Deus nos castigou. Ou foi enviada para uma terra distante, ou anda por aí, com vergonha de se mostrar na sua nova forma. Coitada! Foi sempre vaidosa.

Tardei a pensar nisso, mas lembro agora que nunca lhe conheci companheiro. O senhor Deus deu a cada macho a sua fêmea e a cada fêmea o seu macho. A serpente apresentou-se sempre com aspeto mais ou menos masculino mas, hoje, ocorrem-me dúvidas. Seria macho ou fêmea? Teria filhos? Por onde andaria o seu parceiro, se é que tinha algum?

Devia ter. Deus pretende que as suas criaturas se multipliquem e ocupem a terra.

De certo modo, a serpente era um personagem singular. Com aquele modo de ser, melífluo e manipulador, teria poucos amigos. No entanto, acho que ela sentia uma necessidade enorme de os ter. Julgo que gostava verdadeiramente de mim. Dava-se bem com a Eva, mas colocava-a num patamar inferior. É que ela não passava de uma mulher.

Chego a pensar que fui o único amigo da serpente. 

Por vezes, imagino-a a rastejar e encho-me de pena.


Data impercetível

A expulsão do Jardim do Éden marcou pesadamente a nossa família. Não admira que, decorridos tantos anos, ainda se fale nisso. Muito do que se diz agora não corresponde ao que realmente se passou.  

O Senhor Deus dá as suas ordens de forma pouco clara. Julgo que pretende que nos enganemos algumas vezes. Ouvi-o sempre atentamente, mas cheguei a fazer confusão entre a árvore do conhecimento e a árvore da vida. A Botânica é complicada.                        

 A verdade é que não comi do fruto da árvore do conhecimento, que fica no meio do Jardim. A Eva deu-lhe uma dentada e cuspiu-o logo. Disse que tinha um gosto desagradável. Nunca pretendi comparar-me a Deus no entendimento do bem e do mal. A Eva também não. Aliás, eu e o Senhor temos feitios tão diferentes que havíamos de divergir consideravelmente na análise de cada caso particular.

Existia no Jardim outro fruto proibido. Era o da árvore da vida, que proporcionava a vida eterna. Também o não provei. Viver para sempre nunca foi coisa que eu cobiçasse.

A serpente habituara-se a ir sozinha para aqueles lados. Como era curiosa e cheia de engenho, aprendeu a preparar uma bebida especial. Arrancava algumas folhas da árvore do conhecimento, pisava-as com uma pedra, juntava-lhes um pouco de água e deixava ficar tudo a repousar durante alguns dias. Resultava uma infusão adocicada que induzia sonhos agradáveis. Durante eles, julgava assistir a acontecimentos que iriam suceder no futuro.

Sendo minha amiga, quis partilhar comigo o dom da profecia. Deu-me a beber da poção que descobrira.

Bebi uns golos. A princípio, senti-me estranho. Quase a seguir, achei-me engrandecido. A bebida dava sono. Sentava-me numa pedra, à sombra da árvore, e ficava a assistir ao deslizar dos sonhos. A sensação era deliciosa, embora não tenha meios de saber se os prodígios que presenciei de olhos fechados acontecerão algum dia.

Viciei-me na poção. Havia dias em que acordava cedo e ia logo ter com a serpente para partilhar a sua bebida.

Vi cidades de prédios mais altos que todas as árvores da terra. Os seus habitantes vestiam roupas estranhas e deslocavam-se no solo, sobre as águas e pelos ares, em aparelhos enormes em que cabia muita gente.

Às vezes, a serpente sentava-se a meu lado e bebíamos a infusão da mesma cabacinha. Nunca fomos parecidos um com o outro e possuíamos organismos diferentes. Não admirava que reagíssemos de forma diversa à bebida. Enquanto eu me sentia eufórico e muito leve, como se caminhasse sobre as nuvens, ela deixava-se tomar pela ansiedade. Chegava a chorar durante aquelas experiências.

Certa vez, perguntou-me:

− Estás a ver o mesmo que eu?

− Não posso saber, mas conto-te o que observo. O fogo de Deus está a ser despejado sobre uma cidade.

− É Sodoma, uma terra de pecadores…

− Não são todas?

Veio um dia em que assisti a uma chuva incessante que começou por engrossar as torrentes dos rios e foi cobrindo, uma a uma, as montanhas do mundo, até perecerem afogadas todas as criaturas de Deus. Todas não, que um neto meu chamado Noé construiu uma grande arca flutuante onde se abrigou com a sua família e com um casal de cada espécie animal existente, doméstica ou selvagem. 

A ira de Deus não se estendeu aos peixes que nada se incomodaram com o dilúvio e nadaram alegremente. Que mal lhe terão feito as avezinhas, para Ele as obrigar a voar sem terem poiso até as forças lhes faltarem e se afundarem nas águas infinitas?


Data impercetível

A serpente confidenciou-me, certo dia, depois de sorver um golo da infusão:

− Não sou como os anjos…

Eu já sabia. Não valia a pena abrir a boca para dizer uma coisa tão óbvia. Deixei-a continuar.

− Eu e eles pensamos de forma distinta. Diferimos até no modo como pesamos as palavras. Não te aconselho a acreditar em tudo o que digo.

Eu nunca fui parvo. Aprendi a mentir, antes de a conhecer, e sabia que ela me enganava algumas vezes.

Serviu-se outra vez do líquido da cabacinha e prosseguiu.

− Sabes? Às vezes, invento histórias e conto-as aos outros. Sei-as dizer tão bem… Havias de ver… Aceitam-nas como se fossem verdadeiras.

Senti um pouco de ciúme. Quem seriam os outros? Agradava-me imaginar que era o seu único interlocutor. No entanto, ela poderia narrar os seus contos aos meus filhos e aos filhos deles.

Dias depois, pensei melhor. Se calhar, a serpente não falava com mais ninguém. Estaria a gabar-se, a insuflar o ego. Era coisa que eu era capaz de compreender. Talvez Deus a tivesse criado também a partir do barro.

Uma única vez, ouvi a serpente deixar escapar uma acusação ao Senhor:

− Deus é mau…

Lembro-me de ter retorquido, sem grande convicção nas palavras:

− Não é mau. É apenas justo.


Data impercetível

Aconteceu que o Senhor Deus reparou que iam faltando folhas nos ramos mais baixos da sua árvore favorita. Não teve qualquer dificuldade em identificar os culpados.

Julgo que ainda assistiu a alguns dos meus sonhos, para comprovar a falta. Por causa dela, castigou todos os meus descendentes. Devo fazer notar que apenas uma ínfima porção deles havia já nascido.

Expulsou-nos e, durante muito tempo, conversou pouco com os homens.

Se calhar, chegou a arrepender-se de nos ter criado. Ele é terrível, quando se zanga. Presenciei, em sonhos, o afogamento da maior parte dos seres vivos. O Senhor Deus fez verter a água do céu para os submergir.

Acho que é propenso a reações exageradas. Será por ter de tomar sozinho todas as decisões. Não tem ninguém que o aconselhe. Não me parece que os anjos sejam capazes de o fazer. Bem poderia escutar a serpente…

Quando me vim embora, escondi na trouxa algumas estacas pequenas da árvore do conhecimento e plantei-as na terra que passou a pertencer-me. Estou para ver se vão secar ou se darão rebentos novos.

Não sei se o Senhor deu pelo furto. Talvez não… Tem andado preocupado com a agitação que grassa entre os Seus anjos.

 

 

 

 

 



terça-feira, 23 de março de 2021

 

     OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH


               OS PÁSSAROS



Este conto foi escrito há algum tempo, antes de eu ter programado o trabalho que agora apresento. Considero, contudo, que se enquadra bem nele. Os leitores serão os meus juízes, como sempre.   

Antigamente, o mundo não era como é hoje.

Pelo menos, não era encarado da mesma maneira. Havia quem imaginasse o Universo a branco e preto. O Bem demarcava-se nitidamente do Mal.

Os múltiplos tons de cinzento que sempre predominaram no entendimento e na prática moral dos homens demoraram a ser reconhecidos. Os gatos negros escasseavam por darem má sorte e os galos da mesma cor eram abatidos cedo. Quanto aos bodes, apesar de assemelharem às representações do diabo, iam sendo tolerados. Faziam falta para cobrir as cabras e os rebanhos eram fontes de leite e de carne. As pessoas preocupavam-se primeiro com a vida e, só depois, com a salvação.

Naquele tempo, cometiam-se poucos pecados veniais. Eram épocas de exagero e muitas as mulheres de meia-idade tendiam a ser beatas ou bruxas. O mundo das concertações, que também era o dos pequenos desencontros, existia, sem ser muito considerado. O espaço das exceções e anomalias era mal visto e abandonado aos feiticeiros. Sim, refiro-me à época em que o demónio era rei das encruzilhadas.

Vou falar de um pequeno feiticeiro que viveu na freguesia de Cheganças, na região do Douro, no começo do século XVII. Chamava-se Eneias, sabe-se lá por quê. Pelos oito anos, quando avistava uma estrela cadente, Eneias já abaixava o olhar na sua direção e colhia do chão um punhado de areia, uma pedra, um ramo de erva, ou fosse lá o que fosse que a estrela apontara. Depois, entrava sorrateiramente na igreja e, quando ninguém o olhava, lançava o que tinha apanhado para trás da pia de água benta. Era assim que ficava a conhecer as feiticeiras da terra. Admirou-se por uma ser irmã do juiz e outra amante do padre Joaquim.

Aos catorze anos, aprendeu a enfeitiçar pássaros para proteger os campos cultivados. Aqueles cérebros pequenos eram fáceis de convencer. Dizia-lhes: “eu te benzo, pardal pardo, não comas o milho da tapada; quando lá for, quero-o achar”.

Enfeitiçados ou não, os passaritos precisavam de se alimentar. Mudavam-se para os terrenos vizinhos, que não estavam protegidos por rezas.

Pelos dezoito anos, Eneias interessou-se pelos morcegos. Apreciava-lhes o voo e procurava entender as suas inflexões bruscas. Nos finais de tarde, punha-se a espreitar, para ver de que lado vinham os primeiros. Acabou por descobrir o local onde um bando se abrigara. Era um pombal abandonado, na quinta do velho Matias.

Entrou lá a meio de uma tarde de verão e viu-os, pendurados pelas patas nas traves do teto, com as asas encolhidas e as cabeças para baixo. Revelaram alguma agitação pela irrupção da luz e pelo som produzido pelo intruso, mas não saíram de onde estavam.

Eneias voltou lá na manhã seguinte. Levava luvas de couro. Trepou a parede, usando os nichos vazios destinados às pombas para se segurar, e agarrou um dos que estavam mais baixos, tentando não o magoar.

Levou-o para casa e observou-o atentamente. Com as asas fechadas, cabia na mão. Tinha orelhas grandes. O focinho fazia lembrar o de um cão muito pequeno, mas o nariz era largo e achatado como os dos porcos. O rapaz tinha ouvido dizer que um animalzinho daqueles era capaz de comer, numa única noite, insetos que, no conjunto, pesavam tanto como metade dele, mas não acreditara. Os insetos eram quase todos muito pequenos. Podia lá ser!

Tentou enfeitiçá-lo, mas não foi capaz. Esses ratos alados e quase cegos eram imunes a rezas e benzeduras. Meteu o morcego numa caixa de papelão onde tinham vindo uns sapatos e fez-lhe furos para que pudesse respirar.

De manhã, deu com a caixa vazia. O morcego levantara-lhe a tampa e escapara-se pela janela aberta.

Nesse mesmo dia, ocorreu-lhe uma ideia má. O padre falara, na igreja, de anjos revoltados que tinham sido precipitados no inferno. Citara o profeta Isaías. Eneias tinha excelente memória e fixara aquela passagem quase de cor: “Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filho da alva! Como foste lançado por terra! Tu dizias: Eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus! Subirei acima das mais altas nuvens e serei semelhante ao Altíssimo!”

Noutro domingo, padre Joaquim citara o Apocalipse: “Houve guerra no céu; Miguel e seus anjos lutaram contra o dragão e os seus anjos. Foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor do mundo. Foi atirado para a terra e, como ele, os seus anjos.”

Eneias meteu uma ideia na cabeça e não mais foi capaz de se livrar dela. Deus transformara os anjos vencidos em morcegos, condenando-os a voar de noite e a alimentarem-se de insetos até mostrarem arrependimento.

Sustentar uma ideia assim nada teria de perigoso, desde que o moço a calasse. Acontece que a prudência não é própria da juventude e que os rapazes gostam de falar entre si e com as raparigas. Ainda por cima, Eneias convencera-se de que o tempo da punição se estava a gastar e que o Senhor se preparava para transformar de novo os morcegos em anjos, devolvendo-lhes o antigo esplendor. Seria bom e até prudente começar a venerar aqueles seres magníficos.

O jovem benzedor já era mal visto em Cheganças por alguns proprietários considerarem que ele afastava os pardais dos campos de centeio e milho dos vizinhos que lhe pagavam, empurrando-os para os dos donos menos dispostos a abrir os cordões às bolsas.

Quando a história dos morcegos que tinham sido anjos chegou aos ouvidos do padre Joaquim, ele achou que a questão era grave e não deveria ser tratada localmente. Comunicou-a ao bispado.

Esconderei dos leitores o final desta história, para não os entristecer. A Inquisição andava muito atenta a factos destes.

Tanto quanto sei, nunca mais houve benzedores de pássaros em Cheganças. Quanto aos morcegos, continuam a voar de noite e a alimentar-se de insetos. Até agora, ninguém avistou um anjo entre eles.

 


domingo, 21 de março de 2021


        CONTOS DE HERTOGENBOSCH


            OS MONSTROS





Os monstros de Bosch fascinam-me. Custa-me encará-los como criaturas maléficas. A serem símbolos de pecados, sê-lo-ão de faltas veniais.

Desta vez, pus-me a olhar o painel da esquerda do tríptico dos Santos Eremitas. Na parte inferior do quadro há uma série de figuras extraordinárias.

Quando se está muito tempo seguido no museu, é quase impensável não procurar estabelecer conversa com eles. Como sou escritor, sinto-me igualmente tentado a inventar diálogos em que participamos todos.

Comecemos pelo que tem por cabeça um ninho de coruja e por ventre uma cabeça de mulher que parece barbeada. As pernas descem-lhe das orelhas.

Ao lado, está uma espécie de pássaro escuro que poderá ser híbrido de caranguejo. Contam-se seis patas deste lado. As do outro, se as houver, não estão à vista. Tem um bico comprido e uma flor, que poderá ser um crisântemo, na crista.

Abaixo do pássaro, está uma espécie de sapo pálido com uma cinta, que parece inúti, a meio do corpo. Enfeita-se, na cabeça e na cauda, com o que poderão ser picos de porco-espinho.

Ao cimo, está outro pássaro, quase todo branco. Parece ter colheres na extremidade do bico. Tem a parte traseira do corpo colorida e ostenta uma bela cauda em leque. Cobre a cabeça com um lenço branco que descai para os lados e protege as pernas compridas com botas de cano alto. Acaba de apanhar um lagarto de cauda compridíssima e parece preparar-se para o comer.

De costas, está sentada uma figura que lê um livro. Tem à vista uma perna muito magra. O ombro direito parece prolongar-se num corpo de peixe. Usa um xaile de pontas aguçadas e tem nas costas uma espécie de cachimbo pendurado por fios.

Um pássaro pousado perto espreita o livro, ou escuta a leitura.

Veem-se mais figuras, monstruosas, mas serão demasiadas para a nossa história. Há que acomodar os artistas ao enredo. Fiquemos por aqui e ouçamos o que dizem.

Quem primeiro se pronunciou foi a cabeça da mulher de nariz comprido.

− Vou-me embora. A conversa não está a ter interesse.

O pássaro branco acabou de engolir o lagarto. Não tenho a certeza, mas acho que deu um arroto. Falou-lhe.

− Acho que ainda é cedo para recolhermos. Tens assim tanto que fazer?

A velha deteve-se e voltou-se para ele.

 − Bem sabes que não faço nada. Aqui no Inferno, não se trabalha.

O pássaro riu-se, antes de protestar. Tinha um riso estudado.

− Não? E os diabos, pobrezinhos… Estão sempre a fazer mal aos condenados.

− Sempre… Até parece que és cego… É só quando os capatazes estão perto. Gastam a maior parte do tempo a jogar aos dados e a falar mal uns dos outros. Quem é que quer saber dos danados?

− Acho que ninguém.

O pássaro-caranguejo deu a sua opinião.

− O problema é serem muitos os condenados. Se desaparecessem uns tantos, ninguém dava por nada.

O sapo tinha alma de filósofo. Concordou com ele, de modo geral.

− Tens razão. Essencialmente, fazem parte da paisagem. No entanto, se um dia abalassem, ias sentir a falta deles.

− Ninguém abala deste lugar! – Garantiu a velha.

− Apesar de haver cá pouca coisa para uma pessoa se entreter…

− Alguns leem – disse o pássaro branco apontando para o híbrido sentado. – Aquele não larga o livro, nem para ir à retrete.

− O Jesualdo? – Interrompeu o sapo. – Conheço-o há muito tempo. Aquele idiota nunca aprendeu a ler. Enfeita-se com o livro por que acha que, assim, eleva o estatuto pessoal.

− E o pássaro que está pousado ao lado?

− Esse é esperto. Aprendi algumas coisas com ele.

− O que é que aprendeste?

− Ouvi dizer coisas que estão escritas no livro. O Inferno não existiu sempre. No princípio era o Verbo e pairava sobre as águas.

− O que é o Verbo?

− Não sei. Perguntei ao pássaro e ele também não sabe. Mas deixem-me continuar. A dada altura, Deus separou a terra das águas.

− E a seguir?

− A seguir, também não sei. Ou faltam páginas ao livro, ou ele se esqueceu do que leu. Nunca ouvi falar de um pássaro que tivesse grande memória. No entanto, ouvi dizer que Deus se zangou com alguns dos seus Anjos e os atirou para o Inferno. É o lugar em que estamos.

− Será verdade?

− Quem sabe? E que importância isso tem, agora?

A mulher entoucada com o ninho de coruja fartou-se da conversa.

− Convosco não se aprende nada. Vou-me embora.

E lá foi.

Fiquei a vê-la afastar-se.

Desconhecia a língua usada no Inferno e surpreendeu-me entendê-la quase na perfeição. Terei aprendido a ler-lhes os pensamentos.

Uma das coisas que me encantam nos monstros de Bosch é que não pretendem ensinar-nos nada. Na verdade, pouco sabem. Falta-lhes a curiosidade que leva os humanos a aprender. Por vezes, chegamos a saber demais. Alguns de nós acabam mesmo por conhecer os caminhos diretos para o Inferno.