DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sexta-feira, 12 de março de 2021

           

           CONTOS DE HERTOGENBOSCH


            A ESPADA E A LUZ





Aconteceu em Santa Luzia, há meia dúzia de anos.

O sol pusera-se há coisa de meia hora. Dentro em breve, iria escurecer.

Caminhei para poente, ao longo da margem da ria, como se perseguisse o rasto do dia que findava.

De repente, adivinhou-se um vulto luminoso no céu. Aproximou-se rapidamente e pareceu crescer enquanto se precipitava. Pensei que era um avião que caía. Temi pelas vidas encerradas nele.

Acabou por mergulhar nas águas a curta distância de mim. Não se tratava duma aeronave. Posso jurar-vos que tombou um anjo lá de cima. Distingui-o com clareza.

Nunca tinha avistado um. Confesso que duvidava que existissem.

Era igualzinho aos que aparecem nas pinturas sagradas, como rosto e corpo de homem e grandes asas brancas atrás dos ombros. Vinha nu e segurava uma grande espada na mão direita.

Estava ferido no peito, mas não largou a arma até se afundar.

As águas revolveram-se, antes de o aceitarem. A ondulação produzida pelo impacto levou as águas até perto da marca da maré cheia.

Instantes mais tarde, nada indicava na superfície líquida o lugar da queda.

Olhei em volta. O mundo parecia tranquilo, como se nada de especial se tivesse passado e fosse acontecimento corriqueiro despenharem-se anjos em Santa Luzia.

Deu-se apenas uma mudança. A ria mudou de cor. Não foi o vermelho do sangue que a tingiu. Foi como se alguém a tivesse pintado com uma tinta luminosa magnífica de um azul irreal.

Não sou pintor, nem entendo de cores. Outros poderão compreender e recriar as tonalidades que avisto. No entanto, para se deslumbrar, um homem não precisa saber muito.

Relato o que vi, o melhor que sei. Tratava-se de um azul estranho, metálico, na fronteira com o verde. Há ferros que luzem assim e matam.

Fui andando, sem tentar compreender. Limitei-me a sentir. É uma impressão que fica um passo adiante de testemunhar.

Luta-se nos céus.

Não sei contra quem combatem os anjos. Talvez defendam o Universo de uma ameaça estranha. Serão, então, os nossos guerreiros mais avançados. Há de haver alguma forma de os ajudar.

Poderão travar uma guerra civil. Não seria a primeira. As Escrituras referem uma, ocorrida no começo dos dias. Os anjos são criaturas submissas, mas influenciáveis. De tempos a tempos, nasce um líder entre eles.

Olhei e entristeci. Crescia da ria uma impressão profunda de derrota. No entanto, tive que fechar os olhos, para os proteger. A essa hora, a superfície das águas devolvia aos céus uma luminosidade maior que a que recebera ao longo do dia inteiro.

 



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