DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quinta-feira, 4 de março de 2021

   

 OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH

               CLOTILDE



 

Contei atrás que fiz uma visita ao Inferno, conduzido pelo Joaquim.

Já vos falei dele. É um pequeno monstro bondoso mas desconfiado, meio humano e meio batráquio. Usa com certa vaidade um enorme gorro vermelho.

Tantas vezes o contemplei no painel do meio do Juízo Final que acabei por o fazer reparar em mim. Entabulámos conversa e acabámos por nos afeiçoar um ao outro.

Certo dia, aceitou acompanhar-me ao sítio onde nascera. Era o único lugar que ele conhecia no mundo. Relatei atrás essa minha experiência.

Tempos depois regressei lá, na mesma companhia. A curiosidade poderá vir a dar cabo de mim, mas quer-me parecer que não tenho emenda.

Da primeira vez, estava tão assombrado que olhei para tudo muito por alto. Espantei-me com a quantidade e variedade dos prodígios que me era dado presenciar. Não admira que me tenha sentido confuso e desorientado. Só assim se explica que não tenha reconhecido a minha prima Clotilde.

Encontrava-se (e encontra-se) no painel do homem-árvore, sentada um pouco acima da porca.

É verdade que eu nunca a vira nua. Não foi coisa que não tivesse tentado, mas a minha prima considerava-me um miúdo e não me dava importância. Gostava de rapazes crescidos. Passaram anos, mas o rosto dela pouco mudou.

A Clotilde era vaidosa e fazia do amor um campo de caça. Gastava mais em roupa do que lhe permitiam o bom senso e as finanças da família e entretinha-se a cativar novos e velhos. Iscava o anzol e esperava que o peixe mordesse. Depois, retirava-o, punha-o de lado e ia pescar noutras águas. Nunca ficava satisfeita. Pretendia ter cada vez mais admiradores.

Vivíamos numa cidade pequena e, embora as regras de conduta para as mulheres já não fossem tão apertadas como na geração anterior, o seu comportamento era fonte de escândalo.

O pai não sabia de nada. A mãe era uma pessoa pouco firme e não tinha mão nela.

Havia quem dissesse que a Clotilde não traria grande mal ao mundo. A sua figura garrida antecipava a primavera e alegrava a cidade. As velhas achavam que ela acabaria por assentar. 

Deixou de ser popular quando o Fernando Moreno se deitou a afogar no nosso rio, depois de ela o descartar, após um namoro fugaz. O moço era estimado na terra e, antes de a minha prima lhe estender as garras, estava para casar com a Luisinha Ferreira, que muitos consideravam mais linda do que a Clotilde e seguramente mais ajuizada. É que não se pode dizer que a minha prima fosse invulgarmente bonita, embora tivesse um corpo bem feitinho. Era o conjunto, a graça e o gosto de arriscar que a tornavam quase irresistível.

Não se sabe se a Clotilde foi abalada pela morte do rapaz. Não deu sinais exteriores disso. Continuou a exercitar o seu poder de sedução.

Terá dito Jesus Cristo que “quem com ferros mata, com ferros morre”. A minha pobre prima acabou por provar do seu próprio veneno. Apaixonou-se por uma homem casado, dez anos mais velho do que ela. Após uma aventura que durou um par de meses, o amante deixou-a. Fê-lo de modo um tanto cruel: declarou-lhe que ela era apenas bonita por fora, que lhe faltavam inteligência e bondade e que nem sequer valia grande coisa na cama.

A vaidade da Clotilde não suportou o desaforo. A jovem atirou-se ao mesmo rio em que se afundara o Fernando Moreno.

A desgraça que acabei de relatar é recente. Aconteceu há relativamente pouco tempo, já na segunda década do século XXI. Como é que a minha prima foi parar ao quadro de um pintor enterrado há quinhentos anos? Não faço a menor ideia.

Estou quase certo de a ter reconhecido. Se não é a Clotilde, é uma mulher extraordinariamente parecida com ela. Perdeu, contudo, o viço que a fazia ressaltar entre as outras raparigas, e a confiança em si própria que lhe emprestava um ar de rainha.

Tem sobre o peito o que parece ser um cágado. Não será apenas aos sapos que se associavam imagens de horror. O burro que a abraça com mãos parecidas com troncos de árvore tem o olhar ingénuo. Que se cuide! A Clotilde é bem capaz de lhe dar a volta.

A rapariga conserva os olhos fechados. Recusa mirar-se no espelho instalado no traseiro do demónio. Expiará a vaidade de que abusou em vida. O burro, ao contrário, parece contente com o que vê. 

Jerónimo Bosch sempre me espantou. É desse pasmo que provêm estas linhas. Ele não pode ter conhecido a minha prima. Algum demónio lhe terá mostrado o rosto, em sonhos. Depois, ou interpretou corretamente o essencial do feitio da Clotilde, ou teve conhecimento de vivências semelhantes.  

A interrogação que se segue é a mais perturbadora. E se lhe desse para me pintar lá a mim? Faria má escolha. Não serei um grande pecador, apesar de não levar propriamente uma vida de santo.

Até onde é que vai o poder dum artista? Será capaz de julgar vizinhos e conhecidos e de retratar nos infernos aqueles que considera de comportamento vicioso?

O grande pintor flamengo ilustra alguns dos próprios preconceitos. A meio das chamas infernais que lhe apraz pintar não figuram padres e, muito menos, bispos. Abundam por  lá os loucos e os pobres que, no seu modo de ver, serão mais sensíveis à influência do Mal.

A classe média urbana em que ele se integrou, ordeira, laboriosa e de boas contas, constituirá, na sua opinião, um relativo reservatório de virtudes.

E se a minha prima me tivesse avistado? Não deu sinal disso. Julgo que entristeceria por saber que a encontrei ali.

 

 


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