OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH
CLOTILDE
Contei atrás que
fiz uma visita ao Inferno, conduzido pelo Joaquim.
Já vos falei dele.
É um pequeno monstro bondoso mas desconfiado, meio humano e meio batráquio. Usa
com certa vaidade um enorme gorro vermelho.
Tantas vezes o
contemplei no painel do meio do Juízo Final que acabei por o fazer reparar em
mim. Entabulámos conversa e acabámos por nos afeiçoar um ao outro.
Certo dia,
aceitou acompanhar-me ao sítio onde nascera. Era o único lugar que ele conhecia
no mundo. Relatei atrás essa minha experiência.
Tempos depois
regressei lá, na mesma companhia. A curiosidade poderá vir a dar cabo de mim,
mas quer-me parecer que não tenho emenda.
Da primeira vez,
estava tão assombrado que olhei para tudo muito por alto. Espantei-me com a
quantidade e variedade dos prodígios que me era dado presenciar. Não admira que
me tenha sentido confuso e desorientado. Só assim se explica que não tenha
reconhecido a minha prima Clotilde.
Encontrava-se (e
encontra-se) no painel do homem-árvore, sentada um pouco acima da porca.
É verdade que eu
nunca a vira nua. Não foi coisa que não tivesse tentado, mas a minha prima
considerava-me um miúdo e não me dava importância. Gostava de rapazes crescidos.
Passaram anos, mas o rosto dela pouco mudou.
A Clotilde era
vaidosa e fazia do amor um campo de caça. Gastava mais em roupa do que lhe
permitiam o bom senso e as finanças da família e entretinha-se a cativar novos
e velhos. Iscava o anzol e esperava que o peixe mordesse. Depois, retirava-o,
punha-o de lado e ia pescar noutras águas. Nunca ficava satisfeita. Pretendia
ter cada vez mais admiradores.
Vivíamos numa
cidade pequena e, embora as regras de conduta para as mulheres já não fossem
tão apertadas como na geração anterior, o seu comportamento era fonte de
escândalo.
O pai não sabia
de nada. A mãe era uma pessoa pouco firme e não tinha mão nela.
Havia quem dissesse
que a Clotilde não traria grande mal ao mundo. A sua figura garrida antecipava
a primavera e alegrava a cidade. As velhas achavam que ela acabaria por
assentar.
Deixou de ser
popular quando o Fernando Moreno se deitou a afogar no nosso rio, depois de ela
o descartar, após um namoro fugaz. O moço era estimado na terra e, antes de a
minha prima lhe estender as garras, estava para casar com a Luisinha Ferreira,
que muitos consideravam mais linda do que a Clotilde e seguramente mais
ajuizada. É que não se pode dizer que a minha prima fosse invulgarmente bonita,
embora tivesse um corpo bem feitinho. Era o conjunto, a graça e o gosto de
arriscar que a tornavam quase irresistível.
Não se sabe se a
Clotilde foi abalada pela morte do rapaz. Não deu sinais exteriores disso. Continuou
a exercitar o seu poder de sedução.
Terá dito Jesus
Cristo que “quem com ferros mata, com ferros morre”. A minha pobre prima acabou
por provar do seu próprio veneno. Apaixonou-se por uma homem casado, dez anos
mais velho do que ela. Após uma aventura que durou um par de meses, o amante
deixou-a. Fê-lo de modo um tanto cruel: declarou-lhe que ela era apenas bonita
por fora, que lhe faltavam inteligência e bondade e que nem sequer valia grande
coisa na cama.
A vaidade da Clotilde
não suportou o desaforo. A jovem atirou-se ao mesmo rio em que se afundara o
Fernando Moreno.
A desgraça que
acabei de relatar é recente. Aconteceu há relativamente pouco tempo, já na
segunda década do século XXI. Como é que a minha prima foi parar ao quadro de
um pintor enterrado há quinhentos anos? Não faço a menor ideia.
Estou quase
certo de a ter reconhecido. Se não é a Clotilde, é uma mulher
extraordinariamente parecida com ela. Perdeu, contudo, o viço que a fazia
ressaltar entre as outras raparigas, e a confiança em si própria que lhe
emprestava um ar de rainha.
Tem sobre o
peito o que parece ser um cágado. Não será apenas aos sapos que se associavam
imagens de horror. O burro que a abraça com mãos parecidas com troncos de
árvore tem o olhar ingénuo. Que se cuide! A Clotilde é bem capaz de lhe dar a
volta.
A rapariga
conserva os olhos fechados. Recusa mirar-se no espelho instalado no traseiro do
demónio. Expiará a vaidade de que abusou em vida. O burro, ao contrário, parece
contente com o que vê.
Jerónimo Bosch
sempre me espantou. É desse pasmo que provêm estas linhas. Ele não pode ter
conhecido a minha prima. Algum demónio lhe terá mostrado o rosto, em sonhos.
Depois, ou interpretou corretamente o essencial do feitio da Clotilde, ou teve
conhecimento de vivências semelhantes.
A interrogação
que se segue é a mais perturbadora. E se lhe desse para me pintar lá a mim? Faria
má escolha. Não serei um grande pecador, apesar de não levar propriamente uma
vida de santo.
Até onde é que
vai o poder dum artista? Será capaz de julgar vizinhos e conhecidos e de retratar
nos infernos aqueles que considera de comportamento vicioso?
O grande pintor
flamengo ilustra alguns dos próprios preconceitos. A meio das chamas infernais
que lhe apraz pintar não figuram padres e, muito menos, bispos. Abundam por lá os loucos e os pobres que, no seu modo de
ver, serão mais sensíveis à influência do Mal.
A classe média
urbana em que ele se integrou, ordeira, laboriosa e de boas contas,
constituirá, na sua opinião, um relativo reservatório de virtudes.
E se a minha prima
me tivesse avistado? Não deu sinal disso. Julgo que entristeceria por saber que
a encontrei ali.
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