OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH
O ANJO DA ESCADA
Jerónimo
Bosch pintou diversas povoações a arder.
O
incêndio que destruiu parte de Hertogenbosch no verão de 1463 terá deixado
marcas profundas na memória do adolescente. A casa da sua família foi poupada,
mas o acontecimento influenciou-lhe a imaginação. Por outro lado, não existiu
localmente um corte, ou um hiato, entre o fim das Idades Média e Moderna. Na
Flandres, seguiram-se naturalmente uma à outra. As ideias modificaram-se
lentamente e, na época em que Bosch viveu, as chamas continuavam a estar
associadas, no espírito de muita gente, ao fogo infernal.
O
tríptico “As tentações de Santo Antão” está exposto no Museu Nacional de Arte
Antiga, em Lisboa, e constitui, para mim, uma das obras mais perturbadoras de
Jerónimo Bosh.
Na
tábua central, ao cimo e à esquerda, arde uma aldeia.
Os
moradores desistiram de combater o incêndio e refugiaram-se do lado de cá,
junto a um riacho. Parecem aguardar por uma embarcação que os traga para lugar
seguro. No edifício situado atrás deles, vê-se uma roda e uma grande trave
enegrecida. Será o que resta de um moinho de vento.
Um
pequeno ribeiro protege o bairro que se encontra mais próximo do observador.
É
espantosa a tranquilidade com que a vida decorre na vizinhança da desgraça.
Veem-se alguns animais domésticos. Um velho está sentado num banco, à porta de
casa. Uma mulher lava roupa no riacho. Um homem subiu a uma árvore morta para
recolher mel. Aves brancas estão pousadas no teto de colmo duma habitação,
enquanto outras esvoaçam perto. Não parecem preocupadas com as chamas que
avistam.
Deixei
para o fim a que é, para mim, mais importante. Bosch recorre a simbologias
complexas para nos transmitir as suas mensagens e nem todas são fáceis de
entender. Espantam-me as figuras aladas que continuam a bater as asas, logo
acima das chamas. Não pretendem fugir. Poderiam ter escapado facilmente, quando
o incêndio deflagrou. Estão ali para tentar proteger alguém, ou alguma coisa
que tem para elas um significado maior que o da vida. Não se sabe quantas já
tombaram com as asas queimadas.
Há
alarme nos céus e na terra. Quase se ouvem os sinos tocar a reabre.
Do
lado direito, aproxima-se outro ser alado que transporta uma escada nas mãos.
Seguem-no, um pouco atrás, uns tantos companheiros. Serão reforços para os que
combatem a destruição causada pelo fogo. Os que chegam sabem que vão arriscar
as vidas. Não os conheço. Se fossem humanos, pensariam como eu: a única razão
válida para um ser se deixar matar, podendo fugir, é a proteção dos seus.
De
que servirão as escadas, para um ser que voa? Não serão para subir. Haverá
necessidade de descer a espaços confinados, onde as asas não poderão abrir.
Não
tenho conhecimento de referências ao “Anjo da Escada”, o que não quer dizer que
não existam. Poderão ter sido divulgadas. Longe vão os tempos em que o meu neto
António dizia ao primo pequeno:”pergunta ao avô; ele sabe tudo”. Os meus netos
aprenderam há muito a conhecer as minhas limitações.
Para
mim, esta imagem é das mais perturbadoras que o grande pintor do Brabante nos
deixou. Os anjos, ou lá o que forem, terão tentado salvar os ovos, a
descendência. Falharam.
O
quadro de Bosh não tem seguimento. A chave do enigma, a existir, há de
encontrar-se dentro dos limites da moldura. As chamas, com o seu pesado
significado simbólico repetem-se em muitos dos seus quadros.
Tão
pouco sei se o Anjo da Escada provém de alguma lenda pouco conhecida ou se
nasceu da prodigiosa imaginação do pintor de Hertogenbosch.
Julgo
poder afirmar, que desde então, ninguém mais avistou Anjos. Os que contaram
tê-los visto, ou eram mentirosos, ou alucinados.
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