DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 2 de março de 2021

 

                    OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH

         O ANJO DA ESCADA


                                             

Jerónimo Bosch pintou diversas povoações a arder.

O incêndio que destruiu parte de Hertogenbosch no verão de 1463 terá deixado marcas profundas na memória do adolescente. A casa da sua família foi poupada, mas o acontecimento influenciou-lhe a imaginação. Por outro lado, não existiu localmente um corte, ou um hiato, entre o fim das Idades Média e Moderna. Na Flandres, seguiram-se naturalmente uma à outra. As ideias modificaram-se lentamente e, na época em que Bosch viveu, as chamas continuavam a estar associadas, no espírito de muita gente, ao fogo infernal.

O tríptico “As tentações de Santo Antão” está exposto no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, e constitui, para mim, uma das obras mais perturbadoras de Jerónimo Bosh.

Na tábua central, ao cimo e à esquerda, arde uma aldeia.

Os moradores desistiram de combater o incêndio e refugiaram-se do lado de cá, junto a um riacho. Parecem aguardar por uma embarcação que os traga para lugar seguro. No edifício situado atrás deles, vê-se uma roda e uma grande trave enegrecida. Será o que resta de um moinho de vento. 

Um pequeno ribeiro protege o bairro que se encontra mais próximo do observador.

É espantosa a tranquilidade com que a vida decorre na vizinhança da desgraça. Veem-se alguns animais domésticos. Um velho está sentado num banco, à porta de casa. Uma mulher lava roupa no riacho. Um homem subiu a uma árvore morta para recolher mel. Aves brancas estão pousadas no teto de colmo duma habitação, enquanto outras esvoaçam perto. Não parecem preocupadas com as chamas que avistam.

Deixei para o fim a que é, para mim, mais importante. Bosch recorre a simbologias complexas para nos transmitir as suas mensagens e nem todas são fáceis de entender. Espantam-me as figuras aladas que continuam a bater as asas, logo acima das chamas. Não pretendem fugir. Poderiam ter escapado facilmente, quando o incêndio deflagrou. Estão ali para tentar proteger alguém, ou alguma coisa que tem para elas um significado maior que o da vida. Não se sabe quantas já tombaram com as asas queimadas.

Há alarme nos céus e na terra. Quase se ouvem os sinos tocar a reabre.

Do lado direito, aproxima-se outro ser alado que transporta uma escada nas mãos. Seguem-no, um pouco atrás, uns tantos companheiros. Serão reforços para os que combatem a destruição causada pelo fogo. Os que chegam sabem que vão arriscar as vidas. Não os conheço. Se fossem humanos, pensariam como eu: a única razão válida para um ser se deixar matar, podendo fugir, é a proteção dos seus.

De que servirão as escadas, para um ser que voa? Não serão para subir. Haverá necessidade de descer a espaços confinados, onde as asas não poderão abrir.

Não tenho conhecimento de referências ao “Anjo da Escada”, o que não quer dizer que não existam. Poderão ter sido divulgadas. Longe vão os tempos em que o meu neto António dizia ao primo pequeno:”pergunta ao avô; ele sabe tudo”. Os meus netos aprenderam há muito a conhecer as minhas limitações.

Para mim, esta imagem é das mais perturbadoras que o grande pintor do Brabante nos deixou. Os anjos, ou lá o que forem, terão tentado salvar os ovos, a descendência. Falharam.

O quadro de Bosh não tem seguimento. A chave do enigma, a existir, há de encontrar-se dentro dos limites da moldura. As chamas, com o seu pesado significado simbólico repetem-se em muitos dos seus quadros.

Tão pouco sei se o Anjo da Escada provém de alguma lenda pouco conhecida ou se nasceu da prodigiosa imaginação do pintor de Hertogenbosch.

Julgo poder afirmar, que desde então, ninguém mais avistou Anjos. Os que contaram tê-los visto, ou eram mentirosos, ou alucinados.


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