DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

O BANDARRA


Gonçalo Anes Bandarra nasceu em Trancoso no começo do século XVI. Terá morrido na meia-idade. De origem humilde e escolaridade duvidosa, era dotado de memória invulgar e gostava de recitar de cor longos textos dos Evangelhos. Escreveu trovas proféticas que inflamaram, mais tarde, o mito sebastianista. Ainda no tempo de D. João III, anunciou a vinda de um rei "encoberto", redentor da humanidade. 
Aqui ficam duas quadras do sapateiro de Trancoso.

                                                      Quando de noite me ponho
                                                      a dormir sem me benzer
                                                      tudo o que há-de suceder
                                                      se me representa em sonho.


                                                      Faço trovas verdadeiras
                                                      e versos mui bem cumpridos
                                                      que hão-de vir a ser medidos
                                                      lá nas eras dianteiras.


Bandarra ganhou fama por acertar em algumas predições. Incomodado pelo Santo Ofício, foi deixado em paz, com a condição de "não se intrometer mais a responder nem escrever em nenhuma coisa da Sagrada Escritura".
Eis uma das suas trovas proféticas:

                                                      Já o tempo desejado
                                                      é chegado,
                                                      segundo o firmal assenta:
                                                      já se cerram os quarenta
                                                      que se ementa. 
                                                      Por um Doutor já passado
                                                      o Rei novo é alevantado,
                                                      já dá brado:
                                                      já assoma a sua bandeira
                                                      contra a Grifa parideira
                                                      la gomeira
                                                     que tais prados tem gostado.



Não se entende tudo, mas isso será próprio das profecias. Filipe, primeiro rei do nome em Portugal e segundo em Espanha, fez sepultar seu tio, o cardeal-rei D. Henrique no transepto da Igreja dos Jerónimos. Em 1582, com o intento de pôr termo ao sebastianismo nascente, mandou vir do Norte de África e transladar para o mosteiro um corpo que se dizia ser do rei desaparecido em Alcácer Quibir. Repousa ainda hoje sobre dois elefantes, num sarcófago de mármore. A dúvida quanto à identidade dos restos mortais ficou registada pelo escultor: Aqui jaz, si vera est fama...



Modificado de O Túmulo de Camões, de António Trabulo (aguarda publicação).

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

SNOOPY




Serão incontáveis os cães com o nome do beagle de Charlie Brown. Há muita gente que se lembra do seu equilíbrio improvável na aresta do telhado da casota e do seu pequeno amigo, o pássaro tagarela que preenchia as bolhas da locução com inúmeros is grandes. As minhas filhas também chamaram assim ao cão delas. Arraçado de pequinois, tinha a estatura e o feitio desses pequenotes rabugentos.
Naquele tempo, em Setúbal, as crianças brincavam na rua e os cães andavam à solta. O Snoopy sujeitava-se à hierarquia natural entre os colegas. O tamanho e a força eram os elementos ordenadores. Ao passar frente à casa da Lady, uma pastora alemã temível, atravessava a rua em sentido perpendicular ao eixo, seguia pelo passeio oposto e, no fim do quarteirão, completava o desenho geométrico, regressando ao passeio inicial para continuar o seu caminho em segurança. Observei-lhe repetidamente este tipo de comportamento e dei-lhe um nome: a táctica do quadrado.
O Soopy não tinha os parafusos todos bem ajustados na caixa craniana. Deixava-se ficar imóvel, durante hora, a fitar a porta da casa de banho, o seu inimigo imaginário. De repente, atacava e fazia-o com determinação. Quando o cão completou cinco anos tive de comprar uma porta nova.


A dada altura, o Brutus entrou nas nossas vidas. Embora se enchesse de ciúmes, o Snoopy ficou beneficiado. Deixou de ser o último na escala familiar. Boxer impuro e folgazão, o Brutus obedeceu cegamente ao pequenote enquanto ele durou. Nunca o Snoopy comera tanto. Esgotava a ração dele e comia o que era capaz do prato do acólito, até ficar atafulhado. O outro aguardava com humildade a sua vez de se alimentar. 
Quando o Brutus ia nos seis meses, entretinha-se a brincar com o Snoopy no passeio, frente a uma papelaria. Uma senhora de idade, com a vista cansada, tropeçou nos cães e caiu. No dia seguinte, o Setubalense proclamava em letras gordas: CÃES SELVAGENS ATACAM VELHINHA EM MONTALVÃO. 
O boxer ganhou mais corpo do que os de raça pura. Era um belo animal. Não se se pensam como eu, mas acho que apenas os humanos se interessam pelas características das raças caninas. Os cães importam-se apenas com a estatura dos rivais.
Quando o impedido cresceu, o Snoopy arvorou-se em chefe da exígua matilha e aproveitou para tirar desforra de cães maiores que o tinham incomodado antes. A sua táctica de combate nada tinha de exemplar: intrigava, atiçava o Brutus contra o adversário e ia mordendo as pernas que lhe passavam frente à boca, sem exercer qualquer espécie de discriminação. 
Era um bufo e gostava de chibar. Se ninguém o via, o Brutus refastelava-se no grande sofá de couro da sala. Quando eu chegava, o Snoopy ladrava a acusá-lo. O culpado vinha em passada airosa, como se assobiasse para disfarçar.
Em novo, o cãozinho era ágil e não se deixava apanhar pela rede da Câmara que garantia a saúde dos cães de Setúbal eliminando das ruas os que estavam doentes, velhos ou coxos. Os cachorros saudáveis escapava-lhe facilmente. Quando a leishmaniose lhe enfraqueceu o olhar, o Snoopy foi capturado duas vezes. Paguei as multas e fui buscá-lo ao canil municipal.
Enquanto os outros cães conviviam de forma barulhenta, o Snoopy encostava o focinho à grade do portão e esperava. Da primeira vez saiu disparado, caiu, levantou-se e voltou a correr. A nossa casa era longe, mas foi lá que o apanhei.
Era o cão das minhas filhas e não o meu. Não nos dávamos muito bem. Ainda assim, ensinou-me algumas coisas sobre psicologia canina. Descobri, com alguma surpresa, que o lugar de honra, quando saíamos a passear, era o da trela. Era impensável o pobre Brutus aspirar a ser conduzido pela arreata.
Durante umas férias, em Cabanas de Tavira, o cão teve de engolir o orgulho e dobrar a coluna cervical. A entrada para o nosso apartamento fazia-se por uma escada íngreme de ferro que as suas patas curtas não lhe permitiam trepar. Ali ficava, à espera que alguém lhe pegasse ao colo e o levasse para cima. A partir dessa altura, ficámos amigos. 

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

DA VINCI ESCRITOR



AFORISMOS


Leonardo da Vinci é considerado por muitos um dos espíritos mais brilhantes que a Humanidade produziu. Nasceu, como filho ilegítimo, numa aldeola da Toscânia e terá morrido nos braços dum rei. 
Viveu numa época em que o saber humano era ainda limitado. Um homem de génio podia ser perito em quase tudo. Foi o que aconteceu com Leonardo, que atingiu a excelência em áreas tão diversas como a matemática, a engenharia, a anatomia, a pintura, a escultura, a arquitectura, a botânica e até a música. A sua curiosidade só tinha paralelo na própria imaginação.
Em 1469, com dezassete anos, entrou como aprendiz para a oficina de Andrea del Verrocchio, em Florença. Verrocchio era discípulo de Donatello. Anos mais tarde, foi acusado de sodomia, juntamente com outros alunos de Verrocchio. Foi absolvido por falta de provas e fez por não dar nas vistas durante algum tempo. 



Na idade madura, trabalhou para os grandes de Itália. A estátua equestre que planeou para Francesco Sforza não foi concluída. Quando os franceses ameaçaram Milão, as setenta toneladas de bronze que lhe estavam destinadas foram fundidas para fabricar canhões. 
Da Vinci serviu depois César Bórgia, filho do Papa Alexandre VI, como arquitecto e engenheiro militar. Mudou-se, mais tarde, para Roma, contratado por um Medici. Trabalhou na Cidade Eterna ao mesmo tempo que Rafael e Miguel Ângelo. 



Francisco I de França conquistou Milão em 1515. Ao regressar a casa,  convidou Leonardo a acompanhá-lo. O artista tinha 63 anos.
Não voltaria a Itália. Morreu no solar de Clos Lucé, em Maio de 1519. Alguns pintores românticos como Ingres e Angelica Kauffmann figuraram-no a morrer amparado pelo rei, o que não deve passar de lenda. 
Leonardo da Vinci tinha o hábito de fazer acompanhar os seus esboços de textos explicativos. Escreveu sobre quase tudo o que desenhou. Muitas das suas páginas são dedicadas à pintura e aos pintores, mas encontram-se reflexões sobre óptica, anatomia, geografia, metalurgia e outros temas. Escreveu também algumas parábolas. Hoje, vou copiar aqui alguns dos seus aforismos.






Aquele que ofende os outros não se protege a si mesmo.

A mais exasperante infelicidade dá-se quando as ideias de um homem são mais avançadas que o seu trabalho.

A necessidade é a mestra e a guia da Natureza.

Os obstáculos não conseguem esmagar-me. Quem fixou os olhos numa estrela não muda de opinião.

É um erro tão grande falar bem de um homem sem valor como falar mal de um homem bom. 

Embora as perdizes roubem os ovos umas às outras, as crias nascidas desses ovos regressam sempre à sua verdadeira mãe.

O que é belo nos homens desaparece, mas o mesmo não se passa na arte.


Referências:
Os Apontamentos de Leonardo da Vinci. Edição de H.Anna Suh, Parragon Books Ldª.
Leonardo da Vinci, Pintura Completa. Frank Zolnner, Taschen.
Leonardo da Vinci, Desenhos e esboços. Frank Zollner. Taschen.
Wikipedia.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

LEONARDO DA VINCI - O ESCRITOR

PRIMEIRA PARTE - FÁBULAS



O génio de  Leonardo da Vinci aflorou quase todas as formas de expressão humana. Não se sabe que tenha cantado ou dançado mas pintou, esculpiu, aprendeu e ensinou anatomia, construiu máquinas de guerra e começou uma série de inventos que iriam ter repercussão prática séculos depois, com  a descoberta dos motores. Escreveu também histórias e aforismos, geralmente com preocupações morais. A sua produção literária foi ensombrada pela sua espantosa obra plástica, mas seria quase pecado ignorá-la. Exponho aqui quatro das suas fábulas.




Ao descobrir um ninho com passaritos, o macaco aproximou-se deles com grande alegria, mas, como eles já sabiam voar, só conseguiu apanhar o mais pequeno. Cheio de alegria, foi com ele na mão para o esconderijo; e, tendo ficado a olhar para o passarito, começou a beijá-lo: e, num incontrolável acesso de afecto, deu-lhe tantos beijos, voltando-o ao contrário e apertando-o, o que lhe tirou a vida. Isto é dito com vista àqueles  que, por amarem excessivamente os filhos, são para eles causa de infortúnio.


A figueira que vivia ao lado do ulmeiro, apercebendo-se de que, embora não produzisse frutos, os galhos do ulmeiro tinham o descaramento de impedir o sol de incidir nos seus próprios figos ainda verdes, repreendeu-o, dizendo: "Ó ulmeiro, não tens vergonha de estar diante de mim? Espera que os meus filhos cheguem à idade madura , e verás o que te acontece!". Mas, quando a prole dela amadureceu, chegou ao local um regimento de soldados, que cortou os ramos da figueira para lhe levar os figos, deixando-a esbulhada e partida.
Vendo-a assim estropiada em todos os seus membros, o ulmeiro comentou: "O figueira, quão melhor é não ter filhos do que ser colocado, por causa deles, em transe tão infeliz!"



A traça que rodopiava ociosamente, não contente com a sua capacidade de voar para onde lhe agradasse, sentiu-se fascinada pela sedutora chama da vela e resolveu voar na sua direcção. Mas tal movimento jubiloso deu lugar à imediata desolação. Pois na referida chama se consumiram suas delicadas asas, e a infeliz traça, depois de muito choro e contrição, limpou as lágrimas que lhe escorriam dos olhos e, erguendo o rosto, exclamou: "Falsa luz, quantas como eu já terão sido miseravelmente enganadas por ti em tempos passados! Ai de mim! Se o meu desejo era contemplar a luz, não deveria ter distinguido o sol do falso brilho do sebo imundo?"


Uma noz, que deu por si transportada por um corvo para o alto de um campanário, tendo aí caído para o interior de uma fenda, escapando assim ao mortal bico da ave, implorou ao muro que, pela graça que Deus lhe tinha conferido fazendo-o tão gracioso e exaltado, e tão rico, com sinos de tanta beleza e som tão aveludado, se dignasse socorrê-la; que, já que não tinha sido capaz de cair entre os ramos verdes de seu pai, para repousar na terra fulva coberta pelas suas folhas caídas, o muro a não abandonasse, pois, ao ver-se dentro do cruel bico do terrível corvo, prometera que, se dali escapasse, acabaria os seus dias num pequeno orifício. Ao ouvir estas palavras, movido pela compaixão, o muro mostrou-se disposto a dar-lhe abrigo no ponto onde ela tinha caído. E, dentro de pouco tempo, a noz começou a abrir e a lançar raízes por entre as fendas das pedras, e a separá-las cada vez mais umas das outras, e a lançar rebentos no seu interior, e estes não tardaram a chegar ao alto do edifício, e à medida que se tornavam mais espessas, as raízes retorcidas começavam a separar os muros e a afastar as antigas pedras das suas posições originais, Nessa altura, deplorou o muro, tarde demais e em vão, a causa da sua destruição, e em pouco tempo foi separado e uma grande parte ruiu.

Que dizer? Tudo o que Leonardo fazia era perfeito.

Referências:
Texto: Os Apontamentos de Leonardo da Vinci. Editado por H. Anna Suh, Parragon Books, impresso na Indonésia.
Imagens: mesma fonte e Leonardo da Vinci - Pintura Completa, Frank Zollner, TASCHEN.