DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

LEONARDO DA VINCI - O ESCRITOR

PRIMEIRA PARTE - FÁBULAS



O génio de  Leonardo da Vinci aflorou quase todas as formas de expressão humana. Não se sabe que tenha cantado ou dançado mas pintou, esculpiu, aprendeu e ensinou anatomia, construiu máquinas de guerra e começou uma série de inventos que iriam ter repercussão prática séculos depois, com  a descoberta dos motores. Escreveu também histórias e aforismos, geralmente com preocupações morais. A sua produção literária foi ensombrada pela sua espantosa obra plástica, mas seria quase pecado ignorá-la. Exponho aqui quatro das suas fábulas.




Ao descobrir um ninho com passaritos, o macaco aproximou-se deles com grande alegria, mas, como eles já sabiam voar, só conseguiu apanhar o mais pequeno. Cheio de alegria, foi com ele na mão para o esconderijo; e, tendo ficado a olhar para o passarito, começou a beijá-lo: e, num incontrolável acesso de afecto, deu-lhe tantos beijos, voltando-o ao contrário e apertando-o, o que lhe tirou a vida. Isto é dito com vista àqueles  que, por amarem excessivamente os filhos, são para eles causa de infortúnio.


A figueira que vivia ao lado do ulmeiro, apercebendo-se de que, embora não produzisse frutos, os galhos do ulmeiro tinham o descaramento de impedir o sol de incidir nos seus próprios figos ainda verdes, repreendeu-o, dizendo: "Ó ulmeiro, não tens vergonha de estar diante de mim? Espera que os meus filhos cheguem à idade madura , e verás o que te acontece!". Mas, quando a prole dela amadureceu, chegou ao local um regimento de soldados, que cortou os ramos da figueira para lhe levar os figos, deixando-a esbulhada e partida.
Vendo-a assim estropiada em todos os seus membros, o ulmeiro comentou: "O figueira, quão melhor é não ter filhos do que ser colocado, por causa deles, em transe tão infeliz!"



A traça que rodopiava ociosamente, não contente com a sua capacidade de voar para onde lhe agradasse, sentiu-se fascinada pela sedutora chama da vela e resolveu voar na sua direcção. Mas tal movimento jubiloso deu lugar à imediata desolação. Pois na referida chama se consumiram suas delicadas asas, e a infeliz traça, depois de muito choro e contrição, limpou as lágrimas que lhe escorriam dos olhos e, erguendo o rosto, exclamou: "Falsa luz, quantas como eu já terão sido miseravelmente enganadas por ti em tempos passados! Ai de mim! Se o meu desejo era contemplar a luz, não deveria ter distinguido o sol do falso brilho do sebo imundo?"


Uma noz, que deu por si transportada por um corvo para o alto de um campanário, tendo aí caído para o interior de uma fenda, escapando assim ao mortal bico da ave, implorou ao muro que, pela graça que Deus lhe tinha conferido fazendo-o tão gracioso e exaltado, e tão rico, com sinos de tanta beleza e som tão aveludado, se dignasse socorrê-la; que, já que não tinha sido capaz de cair entre os ramos verdes de seu pai, para repousar na terra fulva coberta pelas suas folhas caídas, o muro a não abandonasse, pois, ao ver-se dentro do cruel bico do terrível corvo, prometera que, se dali escapasse, acabaria os seus dias num pequeno orifício. Ao ouvir estas palavras, movido pela compaixão, o muro mostrou-se disposto a dar-lhe abrigo no ponto onde ela tinha caído. E, dentro de pouco tempo, a noz começou a abrir e a lançar raízes por entre as fendas das pedras, e a separá-las cada vez mais umas das outras, e a lançar rebentos no seu interior, e estes não tardaram a chegar ao alto do edifício, e à medida que se tornavam mais espessas, as raízes retorcidas começavam a separar os muros e a afastar as antigas pedras das suas posições originais, Nessa altura, deplorou o muro, tarde demais e em vão, a causa da sua destruição, e em pouco tempo foi separado e uma grande parte ruiu.

Que dizer? Tudo o que Leonardo fazia era perfeito.

Referências:
Texto: Os Apontamentos de Leonardo da Vinci. Editado por H. Anna Suh, Parragon Books, impresso na Indonésia.
Imagens: mesma fonte e Leonardo da Vinci - Pintura Completa, Frank Zollner, TASCHEN.


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