DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 26 de julho de 2021

 

A JU DEIXOU-NOS



 

         A Ju faleceu no dia 16, após uma doença prolongada.

O nosso relacionamento com ela começou muito cedo. Foi colega da minha irmã Fernanda em Sá da Bandeira (Lubango) em 1959. Já lá vão 62 anos.

Em Coimbra, eu, o Calucha, com quem casou, e o irmão dele Zé vivemos na mesma república, o Quimbo dos Sobas.

A Ju e o Calucha aproximaram-se mais de nós quando a nossa filha Marisa nasceu. Ela estava grávida do Luís.

Estabeleceu-se uma amizade forte que nunca iria abanar. As nossas famílias estavam longe, em Angola. Fomos família uns dos outros e passámos muitos natais juntos.

A Júlia foi uma excelente profissional. Raramente faltava a uma aula e preparava sempre as lições com muito cuidado. Tinha carinho pelos alunos.

Mulher de cultura, aproximou-me de grandes escritores alemães, como Goethe e Rainier Maria Rilke.

Boa filha, boa esposa e boa mãe, foi também uma excelente amiga. Era madrinha da nossa neta, que não compareceu ao funeral por se encontrar na Croácia. Tinha muito carinho pelo Duarte, pelo Francisco e pelo António. Como o Vasco, o nosso neto mais pequenino, travou grandes batalhas no jogo do galo.

Como a casa dela ficava perto do Ciclo e do Liceu, as minhas filhas e, mais tarde, os meus netos Francisco e António, almoçaram regularmente em casa dela uma vez por semana e foram recebendo umas ensaboadelas de inglês.

Pessoa sensata, equilibrada e equilibradora, viu a vida marcada por duas tragédias, a morte do pai em criança e a do marido, muito cedo. Reagiu ao infortúnio, educou bem os filhos e espalhou tranquilidade e alegria em seu redor.

Perdemos a Ju. Ficámos todos mais pobres. 

 





 

sábado, 3 de julho de 2021

 

                            OS MEUS LIVROS


                   OS COLONOS




        O meu quinto livro, Os Colonos, foi publicado em 2007 pela Esfera do Caos.

        Deu início a uma trilogia centrada no Lubango que seria concluída em 2010. 

Trata-se de um romance alicerçado na realidade histórica. O povoamento do sul de Angola e os acontecimentos militares que o acompanharam são relatados com a exatidão possível. Ao contrário, os personagens que vão conhecer nasceram da imaginação do autor. O único que teve existência real foi D. José da Câmara Leme, diretor da Colónia. Ainda assim, a sua vida é largamente ficcionada.

Estranhamente, após a independência do Brasil, Lisboa não cuidou de ocupar e explorar o interior das suas colónias africanas. Foi a pressão vinda do estrangeiro que obrigou o governo português a mudar de atitude.

A partir de 1870, alguns países europeus deitaram olhares cobiçosos ao continente negro. Queriam garantir o fornecimento de matérias-primas e conseguir mercados para a produção industrial. Estas ambições iam contra os direitos que Portugal julgava seus por prioridade nas descobertas. Nas chancelarias europeias foi-se tornando popular o princípio de que a ocupação efetiva dos territórios era a fonte da soberania.

Os sinos em Lisboa tocaram a rebate. A emigração para África ganhou prioridade. A Colónia Sá da Bandeira foi projetada, com régua e esquadro, por volta de 1881, nas secretarias do Ministério da Marinha e Ultramar.

Portugal exportou a pobreza para África. Um punhado de colonos madeirenses foi transplantado da sua ilha para começar uma existência nova nas terras altas do sul de Angola.

Narro uma história de amor e também de sonho, trabalho, sofrimento, alegria, desilusões, combates e morte. Homens e mulheres enraizaram-se na terra e chamaram-lhe sua. Mudaram África e foram mudados por ela.


      Esfera do Caos, 2007, Leya on line, 2013.


quarta-feira, 23 de junho de 2021

 


                   APRESENTAÇÃO DO LIVRO


                         O DIA EM QUE DEUS 

            COMEÇOU A DESMONTAR O MUNDO




                   Doutor António Bárbolo Alves

                Centro de Estudos em Letras

         Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro


 “Há rios que deslizam por vertentes opostas da mesma montanha, como lágrimas que escorrem apenas por um dos lados da face. Só é permitido a cada um o entendimento da sua encosta. Não se conhecem, nem sabem do sofrer da outra parte. As correntes seguem trajetos quase paralelos. Os caudais aproximam-se, uma vez por outra. Tocam-se, mas não juntam as águas.” (O Dia em que Deus começou a desmontar o Mundo, Prólogo).

 Em face da nossa imagem ou da nossa sombra, estamos continuamente à procura dos nossos limites. Quem não gostaria, nem que fosse por um momento, de alcançar o lado de lá do espelho, parar o tempo para tocar o rosto da outra criatura sem turvar a água? Mas, como sabemos, a aventura misteriosa que Narciso iniciou é impossível, porque a imagem e a sombra são iguais. Confrontado com as suas limitações, com o mundo que nos limita e nos divide, o ser humano procura superar-se, vencendo ou contornando aquilo que as divindades e as potências infernais jamais lhe concederam. Um dos primeiros rostos deste desafio encontramo-lo, na nossa civilização, na enigmática e ambígua figura que os Egípcios esculpiram na rocha do deserto e os gregos colocaram à entrada de Tebas: a Esfinge. Com corpo de leão e cabeça humana, a Esfinge é a encarnação perfeita da nossa própria ambiguidade e a realização plástica mais concreta de um dos actos mais antigos da criação humana: a arte e, neste caso, a literatura.

Coincidência ou não, também Dumba, personagem do nosso livro, informe e diabólica criatura (ainda que sem as metamorfoses satânicas e teratológicas vulgarmente atribuídas ao diabo), se une pelo seu sobrenome a esse ser misterioso e enigmático que os antigos colocaram como guardião das pirâmides e deixaram errar perigosamente pelos caminhos de Tebas. Dumba é o “leão-do-homem”, ladrão de sonhos e uma espécie de “demónio pessoal e doméstico”. Nascido da vontade e sobretudo da ambição do curandeiro Hende, este ser débil e frágil − “tão leve que qualquer pequeno sopro o levaria de volta ao mundo dos mortos” − depressa cresceu e foi ganhando força:

“Foi-lhe dada voz. Aprendeu logo a mentira e o fingimento. Matreiro por natureza, era, acima de tudo, curioso. Às vezes chegava a sentir-se quase gente.” Aprendendo a enganar, a fingir e a mentir, passou naturalmente a assemelhar-se aos humanos. Mas aprendeu também a ler os pensamentos e os sonhos, perscrutando as almas e falando com elas porque lhe foi dada “voz”. E ao ganhá-la, deixou de se assemelhar à antiga esfinge egípcia − colossal, enigmática, mas sempre silenciosa – transformando-se na esfinge grega, que falava e propunha um enigma a todos os seres humanos, terminando com a terrífica ameaça: decifra-me ou devoro-te!

É com altivez e desprezo que os deuses olham e interrogam os humanos. E foi também com alguma sobranceria, talvez libidinosa, que Dumba seduziu primeiramente Chissola, uma das mulheres de Hende, seu amo, e acabou por engravidar também as outras três, cumprindo assim aquilo que o curandeiro, por ser estéril, não conseguira fazer, nem ele, sozinho, nem com a ajuda de nenhuma mezinha dos seus amigos feiticeiros. Na longínqua Tebas o monstro foi vencido por um adolescente que por ali passava. O jovem Édipo que só sabia uma coisa: todos os enigmas são enigmas do homem. Logo, a resposta à pergunta da Esfinge só podia ser “homem”. Acertou. A Esfinge, derrotada, envergonhada e furiosa, lançou-se dos rochedos e precipitou-se no mar, despedaçando-se. Porém, como se sabe, o Destino não foi particularmente propício com o jovem herói: a engrenagem mais bem montada do Fado fez com que ele se casasse com a mãe, assassinasse o pai, e depois, confrontado com a cruel realidade, por desgosto, fugisse e arrancasse os próprios olhos.

Na nossa história, Dumba, confrontado pelas mulheres com a inflexibilidade de levarem a gravidez até ao fim, também é obrigado a fazer sumir Hende que é, simbolicamente, seu pai. Assumiu o seu papel, “vestiu a forma do amo” e adoptou a sua posição. Mas aquele mundo fechado, aquele papel de pai adoptivo e “feiticeiro substituto”, depressa o levaram ao tédio. “Afinal, o mundo era imenso. Atrás de uma serra, escondiam- se outras. Havia terras sem fim a palmilhar. Ouvira falar de um rio muito grande e também do mar. Dizia-se que havia pessoas de costumes e linguagem diferentes e que até existiam quimbos habitados por gente de pele clara.”

“Preso àquele chão, o diabo tinha falta de ar. Tomou uma decisão. Enquanto pudesse, havia de caminhar e de experimentar coisas novas. Resolveu deixar para trás tudo o que conhecera até então. Voltou as costas às quatro esposas. Anunciou, alto e bom som, que se dirigia para leste, à procura de ervas para tratar doenças de criança.”

Foi na busca de novos rios, de novas paisagens e de novos costumes, que Dumba partiu. No seu percurso atravessa lugares reais – como a fenda da Tundaval; a (serra da) Chela; o Munhino; o Lubango, o Cunene onde se deixa ferozmente levar pelas cataratas do Ruacaná – mas este périplo constitui sobretudo uma viagem pelo mundo onírico, e uma profunda peregrinação pelos dédalos e pelos labirintos da alma e do ser humano. Por isso, diz o narrador, “recolheu sonhos de cão, de porco, de hiena, de aves diversas, e até de um ovo. Juntou-os cuidadosamente aos dos meninos e adultos”, embora preferisse “os das aves e os dos velhos.”

Foi à procura de respostas que Dumba se fez “peregrino”. Não sou eu que o digo, é o narrador que assim descreve o momento da sua partida:

“Quando Dumba iniciou a sua peregrinação, ainda estava escuro.” Ora, uma breve incursão pela filologia permite-nos concluir que esta palavra, de origem latina, onde adquiriu significados próximos dos que hoje lhe atribuímos, é primeiramente composta pelo prefixo “per” e o nome “ager”, querendo por isso dizer, ir pelos campos, e ajustando-se assim a motivação etimológica, uma vez que a viagem de Dumba não tem qualquer objectivo religioso. “Calcorreava os caminhos de Angola”, aparentemente sem destino, sem outra motivação que não fosse a de procurar, quem sabe, uma solução, uma resposta, as respostas. É isto religioso? Talvez. Fica para cada um de vós, ouvintes que, estou certo, se converterão brevemente em leitores, a interrogação e a resposta. Quanto a Dumba, como bom peregrino, “entregou-se à caminhada como se a marcha em si mesma pudesse constituir um objetivo. Procurava alívio para alguma dor que era incapaz de precisar.”  Não esqueçamos que um dos seus atributos é ser “ladrão de sonhos”.

O enigma continua presente e a Esfinge, começando pela do antigo Egipto, cujo sorriso enigmático os antigos egípcios interpretaram como sendo uma interrogação, é afinal uma resposta. Ora, os mistérios não pedem respostas, não precisam de ser decifrados, é preciso aprender a olhá-los sem a tentação de os interrogar pois o silêncio constitui a sua densidade. Quanto a Dumba, apesar de todas os seus poderes − era invisível, “lia facilmente os pensamentos e dava conta dos defeitos e qualidades que cada um escondia atrás do semblante” e julgava até “entender os mecanismos dos sonhos” – não conseguia parar a torrente de questões, nomeadamente sobre a natureza dos sonhos: “Seriam livres os sonhos? O leão-do-homem achava que não. Eram bois atados por cordas compridas. Corriam, mas acabavam por ser conduzidos de novo ao curral. E esses fios de ideias soltas do corpo, queriam todos voltar? Nenhuns se evadiam? Perguntas... Perguntas...” Talvez seja por isso, pela ausência de respostas, que Dumba retoma sempre a sua “peregrinação”, viajando de noite, porque a “escuridão sempre lhe dava alguma tranquilidade”, e sempre à procura de explicações para melhor entender os brancos e os pretos, ou os “pretos-brancos ou brancos-pretos”, “viera do nada e caminhava para sítio nenhum.” A Esfinge interrogava os tebanos. Dumba interroga quem encontra, mas interroga-se sobretudo a ele próprio, retoricamente, parvamente, tontamente e quase sempre sem respostas: “Perguntava e respondia. – Que sabedoria habita nas chamas? – Provavelmente nenhuma. No entanto são fortes. Só a chuva as detém. – E eu, leão-do-homem, que ando a fazer? – Observo. Registo. Pergunto. Guardo as respostas. – O que aprendi, de que me serve? – De nada… – Quem acederá ao meu saber? – Ninguém. – Isso é mau? – Nem mau, nem bom. Encolheu os ombros e retomou a caminhada.

 Ao entardecer, deu-lhe para olhar para dentro de si. Gostou pouco do que viu. Sabia que não era único, mas nunca lhe acontecera dar com outro leão-do-homem. Se o encontrasse, que faria? Iria falar-lhe? Para quê? Que ganharia com isso? Continuou a fazer perguntas parvas. Procurou que as mahambas nada ouvissem. De qualquer forma, já não tentava responder. – Um pequeno diabo tem alguma utilidade? – De que serve viver? Gozar, dá mesmo gozo?”

Paralelamente à história de Dumba, na outra vertente da montanha, corre outra, a de um missionário espiritano, Bernardo Moresville, que vamos conhecendo através de um suposto “Diário” encontrado num baú da Missão da Mupa, no sul de Angola. Segundo o narrador, “estava escrito em alemão e foi difícil encontrar quem se dispusesse a traduzi-lo.” A sua visão é a de um europeu, que tenta compreender os enigmas de África através do seu olhar cristão, católico e racional, reconhecendo as suas limitações e procurando ir ao encontro das almas africanas: “Ainda não estou preparado para recolher ovelhas para o rebanho do Senhor. Ocupo-me em aprender a ouvir e falar. Um missionário tem de se entender muito bem com os indígenas. Se não fosse dotado de algum talento para as línguas, estaria a sentir-me infeliz.” E mais adiante: “Os cuanhamas da vizinhança da Missão vão aceitando conversar comigo. Tenho falado até com alguns quimbandas. Não procuro convencê-los. Neste momento, manter o diálogo é tudo a que posso aspirar. Vou aprendendo tudo o que posso sobre as suas crenças.” Simbolicamente, as duas narrativas, ou melhor, as duas vidas ou as duas visões, encontrar-se-ão uma única vez quando Dumba, de passagem pela região do  Munhino e tendo ouvido falar dos missionários que eram “quimbandas europeus que tentavam convencer os povos da Huíla de que Kalunga fora, em tempos, preso por uns brancos maus e sujeito a morte cruel”, “resolveu entrar no espírito do missionário” e conhecer-lhe os sonhos:

“Quase se perdeu. Achou-lhe a mente complicada. Abarrotava de ideias. Pareciam muito bem arrumadinhas, mas não fluíam livremente. Estavam atadas a regras fortes de disciplina. O Kalunga dos europeus estava em todo o lado. Dominava aquele homem. Associava-se a uma necessidade incompreensível de persuadir todas as pessoas do mundo a pensar da mesma maneira. Convencê-las era o objetivo primordial de toda a sua vida.” Mas Dumba descobriu também que “debaixo das ideias organizadas sobrevivia um espírito angustiado e carregado de dúvidas.” Que o missionário não acreditava, pelo menos com suficiente firmeza, em tudo o que pregava, nem estava certo de seguir exactamente os caminhos do bem. Contudo, seguindo os princípios africanos, ele não estava ali para mudar e muito menos para julgar ninguém. Por isso “saiu daquela alma antes que a manhã viesse”, deixando o missionário entregue aos seus sonhos, às suas inquietações e às suas dúvidas.

Ainda assim essa experiência, no mar das suas interrogações, ajudou-o a ver com toda a clareza “que .. os homens eram parecidos uns com os outros como folhas da mesma árvore. Muito enganados viviam os que se consideravam especiais ou superiores. A condição humana irmanava-os mais do que podiam imaginar.” Tal como o mistério, agora sepulto, das portas de Tebas, será possível encontrar um futuro para a humanidade – para África – edificado no “homem” e no próprio homem? A verdade é que desde o início da obra (desde o “Prólogo” de que lemos o primeiro excerto), o autor nos adverte que o livro foi “construído sobre duas formas diversas de encarar o mundo”, e que África é a “designação da cordilheira que separa” (não une) o “Rio dos Brancos do “Rio dos Negros”.  

Estas barreiras, Bernardo Moresville, o missionário, vai-as descobrindo e contornando como sabe e como pode, adaptando a sua pregação e a sua doutrina: “– Senhor Padre... O Senhor Deus, de que cor é? Hesitei, pensando na melhor forma de responder. Às vezes a palavra é chave: abre a questão, como se desfizesse um nó. Outras vezes aperta-o e ninguém mais o desata. – Eu sei! Vi lá na igreja – Disse a pequena Catima. Deus é branco. Branquinho como as palmas das minhas mãos! – Deus não é preto nem é branco… – Então é mulato.... – Interrompeu o Carlos. – Também não! Eu explico. Comecei a falar. Não segui o caminho mais direito, mas não me sentia capaz de contar a verdade toda. Ali ninguém aceitaria um Deus sem corpo. – Deus tem muitas cores, e nem sempre escolhe a mesma. Gosta da cor da terra quando para de chover e, quando calha, usa-a. Agrada-lhe o verde do capim fresco da manhã e confunde-se com ele. Outras vezes é do tom do riacho que se desequilibra e tomba na cascata. Há dias em que se pinta do amarelo do sol que, lá do alto, manda em todos, ou do vermelho em que ele se embrulha quando está cansado e quer dormir. Chega a vestir a cor da noite e de alguns dos nossos sonhos. – Mas o preto não é a cor do diabo? – Não! Vocês são negros e são filhos do Senhor.”

No século XVI, ao tentar compreender o choque que representava a descoberta do Novo Mundo, Michel de Montaigne escreveu nos seus célebres Ensaios que o “nosso mundo acabava de descobrir outro”. Esta frase do célebre humanista, tantas vezes repetida, esquece muitas vezes o raciocínio e a crítica que se lhe seguem. A “criança” acabada de nascer, diz Montaigne, não se transformou, como seria natural e desejável, num simples irmão mais novo. Depressa foi dominado pelo mais velho, o Mundo Antigo, mesmo sabendo que o “novo” não lhe era, em nada, “inferior”. Para além disso, o mais velho aproveitou a inexperiência do mais novo para o dominar, para mais facilmente lhe incutir as ideias de traição, de luxúria, de ganância e todo tipo de desumanidade, seguindo o exemplo e o modelo dos nossos costumes.

Já voltaremos a esta questão dos dois mundos. Para já, vamos ao encontro do Dumba na sua caminhada para o sul, junto ao grande rio de que tanto ouvira falar. Lembrámos, no início destas palavras, como o mito de Narciso nos coloca perante os nossos limites: a impossibilidade de parar o tempo para que o nosso rosto se detenha sobre a outra criatura que nos sonhamos. Mas os deuses, naquilo que têm de criação humana, permitem-no, ainda que muitas vezes pagando preços demasiado elevados ou inatingíveis. Foi isso que aconteceu com a mulher de Loth, incapaz de se libertar do passado e, olhando para trás, transformada em estátua de sal; Orfeu, a quem foi concedido o momento único, claro e irrepetível de ver Eurídice, ao olhar passa trás, viu-se também condenado a perder, irreversivelmente, a sua amada, e ele próprio a ser condenado à tristeza, à solidão e à morte. Também Dumba, na magia das palavras ou na magia pura, se encontra com ele próprio, num momento ímpar e pleno de simbolismo: “Havia lugares, junto à margem, onde a água acastanhada mal se movia. Dumba aproveitou para se mirar. Via tão bem de noite como de dia, mas aquela superfície enganava. A imagem que lhe foi devolvida confundiu-o: era velho e novo, morto e vivo. O passado e o futuro sobrepunham-se. Eram iguais os caminhos para a frente e para trás. Às tantas, pareceu-lhe que estava do outro lado do espelho. Estranhou-se. Dizia “eu” e quase jurava que a voz vinha do fundo. Era como se tivesse vestido a pele às avessas. Indiferente, o Cunene seguia o seu caminho.”

 Mas esta indiferença que os elementos naturais dispensam aos homens, nem sempre é partilhada pelos deuses. A partir do Céu ou do Olimpo, Hermes não cessa de interpelar os humanos ainda que eles nem sempre estejam à altura de decifrar as suas mensagens. Por isso, nem Dumba nem Bernardo Moresville são capazes de entender os sinais vindos do alto. O missionário interroga-se: “Se Deus, na sua imensa sabedoria, se revelou aqui como Kalunga, vim para o local errado e ando a espalhar a confusão nas almas desta gente. Terá sido por isso, também, que Deus se zangou.” Seja como for, o certo é que, olhando o firmamento, Bernardo de Moresville estava certo de que faltavam algumas estrelas no céu, e isso só podia ser um mau agoiro: “Faltam estrelas no céu, disso não tenho dúvidas. Talvez o brilho delas não seja eterno. Pode ser que o fogo de algumas se apague mais cedo do que doutras.”

Do outro lado da “montanha”, os olhos de Dumba vêem “nuvens de fumo negro” que são, imagina ele, apenas “a respiração da terra doente”. Mas este olhar primevo que o deixa também imaginar, no céu, “pássaros de ferro”, depressa se esvanece na realidade crua da guerra, pois as ditas “aves” despejavam fogo e morte, ceifavam homens, mulheres e crianças, “a besta não escolhia cores nem tribos: varria a eito. Angola soluçava.”

O resto da história já nós a conhecemos. Ou julgamos conhecê-la! O dia em que Deus começou a desmontar o mundo é assim uma viagem pela realidade africana, mas é sobretudo uma interrogação sobre o Homem, as culturas, as formas e as possibilidades de integração e de miscigenação cultural. O lado do Portugal colonizador, missionário e conquistador aparece-nos aqui de uma forma que podemos chamar “à portuguesa”, isto é, baseada no “desenrascanço”, disfarçando as nossas dificuldades e as nossas limitações, mas também os nossos desejos de sedução, as relações com o outro, da forma mais suave e mais discreta possível. A propalada aptidão dos portugueses para sermos “outros” encontra eco na expressão pessoana de “ser e sentir tudo de todas as maneiras”. Mas esta não é mais do que a manifestação dramática da multiplicidade e, porventura, da vontade de imitar o próprio Deus. Na realidade, como reconhece o nosso narrador, pelos olhos de Dumba, “o mundo dos brancos penetrara fundo nas almas negras. O contrário também acontecera, mas numa escala muito menor.” E “quando os europeus abalaram, nada voltou a ser como dantes.” Nas palavras de Fernando Pesssoa, "um português que é só português não é português". E a verdade é que a capacidade de adaptação de que os portugueses deram provas ao longo da sua história de emigrantes e de marinheiros parece dar razão ao paradoxo pessoano, ainda mais claro e adequado se pensarmos no Grande-Cais – evocado na Ode Marítima – “donde partimos em NaviosNações”. É a bordo deste barco que, segundo a máxima de Pascal, “todos nascemos embarcados, e um dia desembarcamos”. Mas a dimensão do navio português foi sempre muito maior do que este exíguo rectângulo à beira-mar plantado. Do Minho a Timor ou de Macau à Amazónia, este super-país imaginário parece também encontrar eco nos devaneios de Dumba, em cujos sonhos e memórias se confundem e se entrelaçam “o passado e o presente”. Afinal, não podemos esquecê-lo, Portugal nasceu sob o olhar de Deus. Pelo menos assim o imaginaram os cronistas e poetas, desde o simbólico milagre de Ourique até à “consagração” do Infante D. Henrique, fazendo de Portugal uma espécie de nação à margem da História, na esperança permanente e hierofânica da consumação de um Quinto Império. Por isso, se os deuses presidiram à construção de Portugal e do seu Império imaginário, bem podemos cometer a heresia de lhe conceder o direito de o desconstruírem! Ainda que o nosso missionário tenha muita dificuldade em compreendê-lo e muito mais em aceitá-lo! “Seria terrível pensar - diz ele - que Deus se arrependeu da sua obra e começou mesmo a desmontar o Universo.”

Deixámos há pouco em aberto a questão dos “dois mundos” que, nesta obra, tal como a peregrinação de Dumba e a vida do missionário, correm paralelamente. Estão próximos, mas nunca ou raramente se encontram. As águas onde Narciso se vê, seduzem-no e encantam-no, mas condenam-no também a nunca mais se encontrar. Ao contrário do mito bíblico de Babel no qual, segundo algumas leituras, Deus castigou os homens a não se entenderem, na nossa narrativa foi o pecado da incomunicabilidade, o desrespeito e pela não-aceitação do pacto de compreensão que devia existir entre os humanos, que desencadeou a ira divina. O dia em que deus começou a desmontar o mundo é assim a narrativa do pacto possível entre dois mundos – europeu e africano, português e angolano, Deus e Kalunga –, superficialmente pacíficos, mas que, no fundo e no final, não foram capazes de comunicar, isto é, de se entender. Nesta viagem ao mundo das sombras, isto é da alegoria, ou seja, do sentido que não se encontra na “ágora”, na praça pública, mas sim fora dela, o que encontramos são interrogações, são enigmas, são metáforas. Ora, não há enigma maior do que o que representamos para nós próprios. E esse enigma nunca será resolvido. Neste sentido, também esta obra, tal como a Esfinge, não dá respostas, interroga-nos. Compreendê-la é olhá-la, é lê-la, sem a tentação de lhe perguntar nada.

Uma última nota para o prémio que esta obra conquistou. Para além da homenagem ao Professor Adriano Moreira, celebra-se a lusofonia, a sua diversidade cultural, a suas vozes e as suas línguas. É bem curiosa, aliás, a descoberta de Carlos Estermann, também ele missionário e companheiro de Bernardo de Moresville, sobre uma velha questão linguística que tem a ver com a forma como as línguas condicionam, ou não, a nossa maneira de ver o mundo: “Estermann acabou por fazer uma constatação curiosa. A mulher pensava em cuancala e em banto. Ao pensar na língua nativa não tinha barreiras nem tabus – as ideias expandiam-se como se percorressem a floresta contornando as árvores e os obstáculos naturais. Só as detinham a fome e a sede. Quando pensava em cuanhama, os conceitos deixavam-se circundar pelos cercados de espinheiras.” Não entraremos aqui nessa velha discussão que opõe os defensores de uma “gramática universal”, àqueles para quem as línguas são sobretudo variabilidade e diferença. Todos nós, sobretudo aqueles que falamos línguas diferentes, temos experiências semelhantes à desta mulher. Podemos, por isso, tirar as nossas conclusões… Quanto à obra que aqui nos traz e nos reúne, sendo ela própria polifónica, convida-nos a escutar a pluralidade das línguas e culturas que pululam no espaço angolano, africano e lusófono. Para além do português, língua da narração, podemos ouvir um conjunto de palavras de outros idiomas que o narrador vai utilizando, sem esquecer as referências a outras línguas como o umbundo, o quimbundo, o cuanhama, o ndonga, o banto, entre outras, que somos desafiados a descobrir. “Talvez sejam as línguas que vão escolhendo os escritores de que precisam”, diz Ricardo Reis, diante da estátua de Eça de Queirós, uma vez regressado do Brasil. “Serve-se deles para que exprimam uma parte do que é”, mas, adverte, “quando a língua tiver dito tudo, e calado, sempre quero ver como iremos nós viver.” Nós, simples leitores, agradecemos às línguas que, servindo-se ou não dos escritores, nos permitem viajar nos sonhos, embarcar nos mitos e nas utopias. “Os homens, lembra o nosso narrador, são os grandes sonhadores da natureza, embora estejam longe de ser os únicos.” Por isso, esta obra é também uma viagem, fala do passado, mas desafia-nos sobretudo a interrogar o futuro. Lembrando que, sem a espessura desse passado, sem conhecer a nossa história, individual e colectiva, teremos o presente, mas o futuro será apenas uma candeia apagada, sem luz, sem esperança e sem sonhos.

Bragança, 19/Junho/2021


quinta-feira, 10 de junho de 2021

 


OS MEUS LIVROS


EU, CAMILLO

 


Tal como o anterior, o quarto livro que publiquei foi uma biografia em forma de diário. De entre os escritos que Camilo Castelo Branco nos deixou na primeira pessoa, selecionei os que se adaptavam ao meu projeto. Depois, inventei os que estavam em falta, procurando respeitar a verdade histórica e tentando não me afastar da personalidade do escritor, tal como a entendi.

Enquanto a escrita de António de Oliveira Salazar era relativamente simples e fácil de reproduzir, imitar o estilo de Camilo obrigou-me a um esforço de proporções quase camaleónicas.

Uma vez publicado o livro, sofri uma desilusão. Apesar de ter sido elogiada por conhecedores, a obra conheceu um sucesso comercial muito limitado. Pensei, na altura, que Camilo Castelo Branco morrera uma segunda vez quando retiraram os seus livros dos currículos escolares obrigatórios do ensino secundário.



Parceria A.M. Pereira, 2006.

 


sábado, 29 de maio de 2021

 

                    OS MEUS LIVROS

 

       DIÁRIO DE SALAZAR

 

O terceiro livro que publiquei foi uma biografia escrita em forma de diário.  Conheceu um sucesso editorial retumbante. Tornou-se um best-seller, tendo esgotado 10 edições de mil exemplares. Ajudou a pôr na moda os escritos sobre a vida do velho ditador.

À exceção de dois prémios literários que recebi com componente pecuniária, foi o único dos meus livros que deu lucro. Pagou, a mim e à minha mulher, duas semanas de férias, primeiro na Índia e depois na Birmânia.

 


     Salazar não redigiu um diário, mas deixou muitos escritos. Escolhi uns tantos e fui-os dispondo ao longo destas páginas. Trunquei-os, sempre me pareceu conveniente, e procedi às alterações pontuais necessárias para dar ao trabalho uma certa uniformidade. Tentei não falsear o essencial do conteúdo e procurei o homem escondido atrás das palavras.

  Construí este livro como quem monta um puzzle. Faltando peças, inventei-as. Assinalei em itálico os textos de Oliveira Salazar e as referências colhidas diretamente das fontes bibliográficas indicadas no final.

 

Referências:

O DIÁRIO DE SALAZAR

Parceria A. M. Pereira, 2004.

 


domingo, 16 de maio de 2021

                                                       
                                                 
                             OS MEUS LIVROS
                


           O segundo livro que publiquei não é da minha autoria. 

           Limitei-me a selecionar e a adaptar contos tradicionais 

           angolanos. Intitulei-o "No tempo do Caparandanda".  

           Usava-se o termo,  em  Sá da Bandeira,  para  referir

           acontecimentos  passados  há  muito  tempo. Tanto

           esta  obra  como  a  a precedente obtiveram o patrocínio 

           do Instituto Português do Livro. A edição é de 2004.




Graças ao esforço de um punhado de etnólogos, entre os quais será justo destacar Héli Chatelain, Carlos Estermann, e Alfredo Hauenstein, dispomos de uma recolha apreciável de histórias, provérbios, lendas e canções, que constituem o tesouro literário dos povos de Angola.

Esta literatura, muito rica, é pouco conhecida entre nós. A maior parte dos textos está apenas ao alcance de especialistas. Iniciativas com as de Pires de Lima, que orientou a edição portuguesa da obra de Héli Chatelain, ou de Viale Moutinho, que apadrinhou a publicação de parte destes contos “traduzidos” para português moderno, não tiveram continuidade suficiente. 

Mitos e fábulas podem ser agrupados de forma diversa. São numerosas as histórias protagonizadas por animais. Muitas narrativas falam de monstros ou papões comedores de gente, enquanto que outras descrevem episódios da vida diária. Os contos que contêm elementos mitológicos são menos frequentes. É comum, em todos os géneros, a presença de ensinamentos morais.

Os investigadores registaram as palavras dos narradores. Nota-se, nesses escritos, a preocupação da objectividade e do rigor, estranhos afinal ao processo de contar histórias. As recolhas foram levadas a cabo antes da divulgação das máquinas de filmar. Não foi possível fixar os gestos nem a mímica. Menos se poderiam guardar as inflexões e as mudanças do enredo proporcionadas pela reacção da assistência ou moduladas pela disposição do contador. O acto de contar é criativo…

As vozes guardadas arrefecem. Os contos, para reviverem, devem ser recontados.

Foi o que procurei fazer. O objectivo do presente trabalho é divulgar uma escolha de contos angolanos tradicionais, narrando-os de forma adaptada ao jeito europeu. Tentei não modificar o essencial das histórias e respeitei as linhas gerais do texto. Fiz uso, aqui e ali, da liberdade permitida aos contadores.

A divulgação do património cultural específico de cada povo ou região poderá contribuir para desenvolver um sentimento de pertença mútua entre as populações dos países de língua oficial portuguesa.

Quem olhou por dentro dois mundos goza de um estranho privilégio: por mais desfocada que a visão tenha sido, apreciada do fundo da memória aparecerá sempre como a soma de dois faróis.




         

         

        Anos mais tarde (2018), o livro foi também 

publicado on line com o título “Contos Tradicionais 

angolanos”.

        A capa baseia-se na lindíssima pintura 

 "Mucancala” da Maria Antónia Neuparth.





Referências:


Europress 2004


Kindle (Amazon) 2018


 


segunda-feira, 10 de maio de 2021

 

                                      OS MEUS LIVROS


     Publiquei o meu primeiro livro no ano de 2003. 

Tratava-se de um conjunto de contos a que chamei 

          MULEMBA - CONTOS DE ÁFRICA.

     Deixo-vos aqui o preâmbulo.



 Os contos que vos trago foram vividos há anos. Não sei ao certo quantos: oito ou nove dezenas talvez. A história entre os pobres é curta. Como nada se escreve, ficam poucas certezas. Para que se não varresse tudo da lembrança colectiva, criaram-se as lendas. 

Nem sempre o que relato se passou. Falo também de coisas inventadas. Dar-vos-ei a conhecer N`Gongo, do povo da ilha e Munkhete, que foi banido dos cuancalas. Ireis ouvir falar de novos e de velhos, de pastores e de ferreiros, de mulheres e de crianças, mas encontrareis pouca gente feliz. É que Pamba, ao criar o homem, deu-lhe por sina procurar a felicidade como se estivesse próxima e só dar por ela depois de a ter perdido.             

Antes do avô do meu avô, existiu N`Zungui. Era um grande caçador.

Morava longe daqui, nos planaltos de Angola. Não, nunca lá estive. Falo apenas do que ouvi.

 A terra já se fartou de dar voltas ao sol  desde esse tempo. Tantas, que até a vossa pele esqueceu a cor antiga. Estranham o que digo?  Não  admira. Pouca gente se interessa por essas coisas. Quase ninguém se abeira de um passado que pode ser um bocadinho incómodo. Pensem no rio Sado, que corre ali em frente. Para ele ser o que é,  juntaram-se vários ribeiros. Atrás deles houve regatos que foram misturando as águas. Umas eram claras e outras mais escuras. No nosso sangue também se entroncaram diversos caminhos. Um deles conduz a África. Deixou marcas bem vivas nas feições da tia Quitina.

Antigamente era ela quem se encarregava das narrativas.  Parece-me que a estou a ver, gorda, meiga e prazenteira. O riso abria-lhe os beiços grossos e punha-lhe os dentes a brilhar.

Com gestos vivos ia representando as cenas que descrevia. Canjala, a menina má,  Chipandeca, o mestre-ferreiro e Nsanda, o conquistador, desfilavam em palcos novos. A tia chamava-os e enchia-nos as noites de fantasia. Ao falar,  entusiasmava-se tanto que até a alma lhe reluzia. Os personagens a que voltava a dar vida ficavam mais ágeis e mais espertos de cada vez que eram lembrados. Alguns, porque os maus pareciam tornar-se ainda mais ruins...

 Apercebi-me, a determinada  altura, de que as histórias iam mudando.  Quitina respeitava o essencial das narrativas mas acrescentava-lhes factos inéditos. Se era verdade o que contava?  Passava logo a ser... A tradição não lhe bastava. Pode-se pular por cima de quase todas as barreiras...

A imaginação permitia-lhe preencher prontamente qualquer lapso de memória. Nunca se atrapalhava nem perdia o fio à meada. Não devem existir hiatos nas descrições, para além dos silêncios preciosos que chegam a valer mais do que as palavras. Um bom contador não gagueja nem hesita. O que há de mágico, o que se avizinha do sagrado numa lenda, pode escapar-se de vez.

No dia em que a nossa tia morreu, fugi para o campo e chorei sozinho.

Ela mimava-me de forma especial. Parecia esperar qualquer coisa de mim. Demorei muito tempo até saber do que tratava.

É que eu era o seu herdeiro.  Não de bens materiais  que  poucos tinha.  Deixou-me o testemunho. Ainda o transporto.

Nem é pesado. Sou agora o narrador da família. Trata-se de conservar uma luzita acesa. A candeia gasta pouco azeite...

Devo alimentar algumas raízes pequenas para que o tronco, que somos nós, saiba de onde vem. Não é apenas para vos entreter que falo tanto. É que os antigos só morrem de vez pelo esquecimento. Sem antepassados ficamos perdidos no mundo. Nunca mais há uma árvore a que possamos verdadeiramente chamar nossa.

O orador interrompeu-se. As crianças dormiam. Reparou que ainda nem dera início à história preparada. Bem, ficava para o dia seguinte...

Desenhou-se-lhe no rosto um sorriso temperado por uma ponta de amargura. Estava a ficar velho. Perdia-se nos preâmbulos e tardava em chegar às cenas de acção. Começava a apreciar mais os prefácios do que os enredos.

Tinha de estar atento. Assim não era possível entusiasmar os miúdos e atá--los ao passado.

Não tinha sono. Agasalhou-se e saiu para a beira- rio.

Umas dezenas de metros a Norte o casario caiava-se de luar. A dois passos começava a placidez do Sado. A maré vazara e as palafitas entrelaçavam membros e costelas numa solidariedade triste que parecia emergir do fundo da água e do tempo. Lá em baixo, as embarcações de madeira sossegavam na lama.

Um insecto zuniu-lhe junto ao rosto. Afastou-o com um gesto brusco. Por causa dos mosquitos e das sezões, um grupo de trabalhadores negros fora instalado em Alcácer do Sal algumas gerações atrás. Resistiam melhor do que os indígenas ao paludismo e davam mais rendimento nos trabalhos do arroz.

Com o tempo, tinham-se diluindo na população local. Restavam tons bronzeados de pele, alguns traços fisionómicos dispersos e poucas histórias. Cabia-lhe fazer perdurar algumas delas, para que os caminhos que conduziam ao passado se não apagassem de vez.

A lembrança da tia Quitina chegou-lhe com muito vigor. Na sua voz caminhava N´Zungui, com a vida presa por um fio de palavras. O antepassado tivera um destino invulgar. De outro modo ninguém o lembraria.

Tentava às vezes situar-se no mundo do Caçador. Haveria alguma parecença entre os campos que ele  palmilhara e os arrozais de Alcácer? Os rios de lá pulsariam também com as marés? Como seria uma terra sem lareiras nem enchidos? E os aromas? Ouvira dizer que os portos de África se podem reconhecer de olhos vendados, apenas pela vivacidade dos odores. Amargurou-se. Os cheiros não se podem imaginar...  Saber tão pouco tornava-o inseguro. Receava que os relatos lhe soassem a falso.

Olhou em volta. A Sul estava tudo escuro. As luzitas de Angola tinham-se apagado há muito. Não conhecia ninguém que o pudesse ajudar.

Encolheu os ombros. Pouco se afastara de casa. A noite estava húmida. Encetou o caminho de regresso.

Deu  uma  espreitadela às crianças, despiu-se e meteu-se na cama. Adormeceu rapidamente. Julgou não ter sonhado, mas N`Zungui caçava por perto.


Referência: Europress 

 

 


sábado, 27 de março de 2021

 

        CONTOS DE HERTOGENBOSCH


         O DIÁRIO DE ADÃO




   Data impercetível 
 

  Os dias no Paraíso são longos. Vivo sozinho e tenho poucos afazeres. As horas do dia custam a passar e as da noite ainda são piores.

Para me entreter, resolvi escrever um diário.

A princípio, Deus não se mostrou de acordo comigo.

− Queres o que não pode ser. A escrita só vai ser inventada daqui a muito tempo.

− Mas o Senhor Deus sabe tudo!

Confesso que hesitei. Estive tentado a introduzir uma interrogação na frase.

Deus coçou a cabeça, antes de responder.

− Sim... No entanto, há coisas que não devem ser reveladas antes de as criaturas estarem preparadas para as conhecerem.

− E os anjos? Estão preparados?

− O Gabriel está. Nunca teve grande jeito para a guerra nem para a música. Aprendeu outras coisas.

− Sabe ler e escrever?

− Sabe, embora não tenha grande prática…

− Empresta-mo?

− Como? Os anjos não são coisas! Não se emprestam!

− Não me expressei bem. Permite que ele me ajude?

Deus coçou outra vez a cabeça. Não via razões para se opor à minha pretensão. No entanto, lá no fundo do seu infinito conhecimento, alguma coisa lhe sugeria que a ideia não era boa.


  Data impercetível


Quando o Senhor me amassou em barro e me transmitiu o sopro da vida, dei por mim no Paraíso. Olhei em redor e não vi pessoas. Ainda esperei ter companheiros com quem pudesse conversar. Não os havia ou, pelo menos, não se viam.

Procurei-os em vales e montanhas, nos recônditos das cavernas e nas grandes planícies. Calcorreei o Jardim todo, ou quase todo. Gastei muito tempo nisso.

Confesso que estremeci, quando alcancei o extremo oriental do Éden. É uma fronteira natural. Confesso que estremeci, quando alcancei o extremo oriental do Éden. É uma fronteira natural. Consta de dois desfiladeiros, separados por uma montanha, que nem é muito elevada. É por eles que se esgueiram os grandes rios Tigre e Eufrates.

Mais além, ficava o desconhecido. Viviam lá animais selvagens e seres terríveis a quem ninguém dera ainda nomes. Dizia-se que o Senhor passava pouco tempo por aquelas bandas.

Apercebi-me do meu destino, ou de uma parte dele, algum tempo depois de começar o diário, quando o Caim aprendeu a andar e entendi que era parecido comigo. Por essa altura, a Eva estava outra vez grávida há vários meses. Deus quer a terra povoada. É preciso obedecer-lhe.

Quem escolheu o nome para o meu menino foi ela. Nunca percebi onde o foi buscar. Acho que Deus não pôs as mulheres no mundo para que as compreendamos.


Data impercetível


O Gabriel lá me veio ajudar a ser escritor. Imaginem a cena… Eu, nu, de mãos atrás das costas, um pouco nervoso, a caminhar em trajetos curtos, de um lado para o outro, enquanto ditava. Ele, sentado no chão, a escrever com uma pena de pato numa folha de papiro…

O anjo olhava-me e parecia achar que eu tinha pressa demais. Não me admirei. Suponho que os seres eternos desconhecem a urgência de algumas situações humanas.

Os anjos não gostam muito de se sentar no chão. Acham que sujam as penas. Perguntei-lhe:

− Como é que sei se estás a registar exatamente o que eu digo?

Gabriel voltou para mim os seus olhos cândidos e declarou, com a inocência que lhe competia:

− Não podes saber. Para tal, terias de aprender a ler, ou de adivinhar os meus pensamentos.

− Ensinas-me a ler?

Gabriel movimentou, ao de leve, uma asa e aplicou ao rosto uma expressão suave de censura.

A mímica dos anjos é pobre. Não conheço nenhum que seja capaz de fazer teatro. Não sabem o que é teatro? Perguntem à Eva, quando ela se desentende comigo. Se quiserem ir mais longe, para conhecerem um encenador, visitem a serpente...

− Não – acabou por responder o anjo. − Deus avisou-me de que irias fazer esse pedido e proibiu expressamente que te ensinasse.

− Há algum mal em aprender?

O anjo hesitou, antes de falar. Via-se que a minha pergunta o incomodava.

− Estamos rodeados pelas trevas. É melhor não conhecermos alguns caminhos que podem levar à escuridão.

− Poderemos sempre escolher não os trilhar…

− Acho que confias demasiado no teu livre-arbítrio.

 Calei-me. Até essa altura, poucas ocasiões tivera para fazer escolhas determinantes.

 Concentrei-me no diário. Pode ser que alguém venha a lê-lo. Não gostaria que me tomassem por tolo ou por insensato.

 

Data impercetível

Tenho a certeza de que o Gabriel filtra as minhas palavras. Não o faz por mal. Está na sua natureza limar arestas e procurar consensos. Acontece, deste modo, alguma forma de censura. O anjo não põe lá tudo o que eu digo. Pelo menos, não o transcreve precisamente da mesma maneira. Os palavrões, por exemplo… Inventei alguns e divirto-me a repeti-los quando Deus não está por perto. Por outro lado, há coisas que eu não seria capaz de confiar ao Gabriel. Por exemplo: a serpente ensinou-me maneiras novas de fazer sexo. Agora, eu e a Eva divertimo-nos mais. Nunca contaria isso ao anjo. Ele iria logo a correr comunicar tudo ao Senhor.

Por outro lado, receio que lhe dê para colocar no texto acrescentos de natureza ética. Seria falta de consideração pelo que digo e penso. Apesar de ele ser um pouco ingénuo, tem a obrigação de saber que existem diferenças consideráveis entre os homens e os anjos. É preciso respeitá-las. 

Estranhamente, Deus nunca deu sinais de estar interessado naquilo que vou ditando ao Gabriel. Achará irrelevante o que digo e penso. Terá outras preocupações.


Data impercetível

Julgo que a serpente é, depois de mim, a criatura mais interessante que Deus pôs na terra. É curiosa, astuta e tem sentido de humor, ao contrário dos anjos, que são uns chatos. Aprendi muitas coisas com ela. É mesmo a minha única amiga.

Confesso que me faz alguma confusão falar dela no feminino pois esse ser, bastante preocupado com a própria elegância e com a imagem que transmite, comporta-se, de modo geral, como macho. Talvez cultive certa ambiguidade. Dei nome a vários animais, mas não me calhou escolher o dela. E que é que lhe havia de chamar?

Dou-me bem com a Eva, mas falta-me alguém com quem conversar. Conversas de homem, entendem? Quando os meus filhos crescerem, julgo que a vida será menos aborrecida. No Paraíso, os dias são iguaizinhos uns aos outros e, com as noites, passa-se o mesmo, apesar dos esforços da Eva. Se não falasse, de vez em quando, com a serpente, acho que andaria a precisar de tomar Prozac.

A serpente é uma criatura sensata que procura olhar as coisas como elas são. Não partilha com o Senhor Deus a dicotomia obsessiva entre o claro e o escuro, o bem e o mal. Percebe o que está mesmo em frente aos olhos de todos: a maior parte dos tons do mundo são em cinzento. Concordo com essa graduação e com a relativização dos critérios. Ajudam-me a entender melhor o que me rodeia. Deus sabe tudo, mas espreita lá de muito alto. Acho que vê as suas criaturas como um grande rebanho destinado a seguir cada dia os mesmos caminhos e alimentar-se nos mesmos pastos. A serpente, a bem dizer, é mais humana. Tem as suas próprias fraquezas e compreende as minhas. É tolerante para com os meus pequenos erros e tem sempre uma palavra amiga para me confortar nas horas más. Parece ter nascido para ouvir e perdoar. Claro que não vou ditar nada disto ao pamonha do anjo. Iria logo enfiar isso tudo nas orelhas de Deus.


Data impercetível

Vou contar-vos como é o Jardim do Éden. Trabalho lá seis dias por semana e só descanso ao sábado, pois Deus encarregou-me de o cultivar e guardar. Não sei por quê, as palavras que vou dizer a seguir não parecem bem minhas. É como se falasse com uma voz diferente. Talvez as tenha ouvido a algum anjo.

Do solo fez o Senhor Deus brotar toda a sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e também a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal.

E saía um rio do Éden para regar o jardim, e dali se dividia, repartindo-se em quatro braços.

Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim para o cultivar e o guardar.

E lhe deu esta ordem: de toda a árvore do meu jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás: porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.

O Senhor não falou de carne, mas também nos alimentávamos dela. Eu armava laços a ratos e coelhos, que abundavam por ali. Depois de os esfolar com uma pedra de arestas aguçadas, comia-os crus. Ainda não aprendera a fazer lume.

Para me dar uma companheira, o Senhor Deus praticou a primeira intervenção cirúrgica com anestesia geral da História da Medicina. Induziu-me um sono profundo, retirou uma das minhas costelas e fechou o lugar com carne.

Haviam de ver a maravilha que produziu a partir de uma simples costela…

Naquele tempo, andávamos nus. Quando chovia, abrigávamo-nos numa caverna. Sem contar com Deus, que vestia uma túnica branca que quase se confundia com a sua barba comprida, o primeiro ser que vi vestido foi a serpente. Antes de o Senhor Deus a castigar, obrigando-a a rastejar sobre o ventre, ela tinha braços e pernas. Usava uma roupa estranha e colorida em que tinha grande vaidade e que lhe deixava de fora apenas a cabeça, as mãos e os pés. Lembro que estes eram fendidos, como os das cabras.

Às vezes eu, a Eva e as crianças deslocávamo-nos para longe da caverna e ficávamos expostos às intempéries. Tive sempre jeito para inventar coisas. Com três paus e com as peles de dois animais grandes que tinha encontrado mortos, construí uma espécie de tenda que nos ia protegendo da chuva e do sol. A Eva ficou contente, principalmente por causa dos meninos. 

Agora, observo os meus netos a brincar e, por vezes, entristeço. As crianças têm uma facilidade extraordinária de experimentar a alegria. Nem eu nem a Eva tivemos meninice. Fomos postos no mundo, já adultos. Tal não voltará a acontecer com humanos, a não ser que o Senhor decida de forma diferente.


Data impercetível

Quando fomos expulsos do Jardim do Éden, julguei que o meu diário terminara. Tendo-se Deus agastado comigo, não parecia provável que um servo Dele aceitasse continuar a registar por escrito as minhas impressões. No meu modo de ver, os anjos são demasiado dóceis e obedientes. Não foram dotados de imaginação. Apenas eu fui feito à Sua imagem e semelhança. Percebi, nessa altura, que havia um preço a pagar por isso.

Pedi ao Gabriel as folhas de papiro em que ele inscrevera a minha voz. Cedeu-mas prontamente, lembrando que não me iriam servir de nada, uma vez que eu não sabia ler. Guardei-as mesmo assim. Um homem não é feito apenas de razão. Conservei-as o melhor que pude. Entendia que constituíam material frágil e que o tempo acabaria por as reduzir a pó.

Ao abalar, e antes de as arrumar na trouxa, sugeri ao Gabriel que, quando lhe desse jeito, me visitasse para continuar o trabalho iniciado. Fiquei surpreendido por ele ter acedido.

Verifiquei, depois, um facto curioso. Fora do Éden, os anjos são invisíveis. Ninguém avistou nenhum, embora muita gente tenha imaginado que tal aconteceu.

 O Gabriel continua a registar o meu diário. Não deixa de ser interessante ver a pena deslizar como se ninguém a comandasse, enquanto eu falo e as folhas de papiro se vão enchendo de um sem número de carateres indecifráveis. 

A Eva, por vezes, gasta um pouco do seu tempo a observar aquela cena. Cansa-se logo. Tem um feitio prático. Acha que me perco com inutilidades e que o anjo é tolo por me dar ouvidos.


            Data impercetível

Como sabem, fui o primeiro homem. Agora, passados anos, já existem uns tantos. São todos meus filhos, ou meus netos. Embora alguns tenham estabelecido família, habitam perto de nós.

Vou conversando com os crescidos pois, para os pequenos, a Eva tem mais paciência que eu. De modo geral, dou-me bem com eles. Dão mostras de um respeito que me agrada. Tento não envaidecer e não deixo de ter os pés bem assentes no chão.

Dito isto, será justo reconhecer que a serpente foi o meu primeiro amigo verdadeiro.

Espero que, aos que me leiam, chegue a sorte de terem um amigo. Trata-se de uma pessoa (ou de um ser), ao pé de quem nos sentimos bem. Em caso de dificuldades, irá ajudar-nos o melhor que puder. Se nos virmos mergulhados em dúvidas, há de apontar o caminho que lhe parecer mais certo. Se a vida nos correr bem, celebrará connosco. Se nos virmos derrotados e tivermos vontade de chorar, estará perto de nós para nos dar um abraço. Era assim a serpente. Acabou por ser punida por me influenciar.

A Eva foi posta no Jardim pouco tempo depois de mim. Tivemos muitos filhos e filhas, quase a seguir uns aos outros.

No início da humanidade, os irmãos tinham de procriar com as irmãs, por não haver mais gente no mundo.

Eu vivi muitos anos e cheguei até aos dias em que foram estabelecidas regras novas de moral. Interditam a ligação carnal entre irmãos, criando um pecado novo a que se chamou incesto. Não tenho nada contra essas normas. Habituei-me a aceitar a passagem do tempo e as mudanças que ele traz. Possuo, contudo, memória e sei que todos os homens e todas as mulheres provêm de ligações incestuosas entre os meus primeiros descendentes.

Não era bem isto que tencionava ditar hoje ao anjo. A verdade é que os anos cobram o seu tributo. A minha cabeça já não é como dantes. Perdi-me em rodeios. No entanto, o que acabo de dizer serve de pretexto para explicar as razões autênticas do crime do meu filho mais velho.

Sei que circula uma história fantástica sobre a inimizade entre os irmãos. Consta que Caim levou ao Senhor os frutos da terra, enquanto Abel lhe ofereceu as primícias do seu rebanho. O Senhor Deus ter-se-á agradado de Abel e da sua oferta, desdenhando da de Caim.

Nada disso se passou. Deus sabe, melhor do que ninguém, que a cultura dos campos e a criação de gado contribuem, de forma semelhante, para a alimentação e o progresso do Seu povo.

O que aconteceu foi muito diferente. Nasceu uma amargura nova chamada ciúme.

Abel era ainda adolescente e não tinha esposa. Cortejou a sua irmã Enoque, casada com Caim.

A seu ver, nem estava a pecar. Tratava-se somente de aproveitar os frutos do Jardim do Éden. Enoque era linda e a vida era bela.

Caim viu Abel deitar-se com a sua mulher e deixou que o coração se lhe enchesse de ódio.

Como o irmão mais novo era mais alto e mais forte do que ele, o primogénito esperou que Abel adormecesse, depois de ter o desejo satisfeito, e esmagou-lhe a cabeça com um pedregulho.

Deus amaldiçoou-o e pôs-lhe um sinal no rosto, mas não lhe retirou Enoque. Fê-lo habitar a terra de Node, ao oriente do Éden, onde criou muitos filhos e filhas. Não se sabe se algum deles foi gerado por Abel.


Data impercetível


Fui expulso do Jardim. Deus zangou-se também com a Eva. Garantiu-lhe:

Multiplicarei os sofrimentos da tua gravidez; em meio de dores darás à luz filhos; o teu marido te governará.

O Senhor Deus colocou a oriente querubins armados de espadas. Guardam os caminhos para a Árvore da Vida. 

Sem a minha família, o Jardim foi deixado ao abandono. É uma pena. O mato há de estar a tomar conta de tudo, enquanto os animais se devoram uns aos outros.

 Nesta região nova, para onde fui exilado, o solo não é tão fértil nem tão irrigado como o do Éden. Sou obrigado a suar, para sustentar a família com os produtos da terra.

Como se isso não bastasse, tenho saudades e vontade de voltar. Se me perguntarem:

− De onde és? Onde pertences?

Responderei: sou do Éden; foi o primeiro solo que pisei e foi lá que me conheci. Os meus filhos chorarão sempre o paraíso perdido.

Sinto também falta da serpente. Não a voltei a ver desde que Deus nos castigou. Ou foi enviada para uma terra distante, ou anda por aí, com vergonha de se mostrar na sua nova forma. Coitada! Foi sempre vaidosa.

Tardei a pensar nisso, mas lembro agora que nunca lhe conheci companheiro. O senhor Deus deu a cada macho a sua fêmea e a cada fêmea o seu macho. A serpente apresentou-se sempre com aspeto mais ou menos masculino mas, hoje, ocorrem-me dúvidas. Seria macho ou fêmea? Teria filhos? Por onde andaria o seu parceiro, se é que tinha algum?

Devia ter. Deus pretende que as suas criaturas se multipliquem e ocupem a terra.

De certo modo, a serpente era um personagem singular. Com aquele modo de ser, melífluo e manipulador, teria poucos amigos. No entanto, acho que ela sentia uma necessidade enorme de os ter. Julgo que gostava verdadeiramente de mim. Dava-se bem com a Eva, mas colocava-a num patamar inferior. É que ela não passava de uma mulher.

Chego a pensar que fui o único amigo da serpente. 

Por vezes, imagino-a a rastejar e encho-me de pena.


Data impercetível

A expulsão do Jardim do Éden marcou pesadamente a nossa família. Não admira que, decorridos tantos anos, ainda se fale nisso. Muito do que se diz agora não corresponde ao que realmente se passou.  

O Senhor Deus dá as suas ordens de forma pouco clara. Julgo que pretende que nos enganemos algumas vezes. Ouvi-o sempre atentamente, mas cheguei a fazer confusão entre a árvore do conhecimento e a árvore da vida. A Botânica é complicada.                        

 A verdade é que não comi do fruto da árvore do conhecimento, que fica no meio do Jardim. A Eva deu-lhe uma dentada e cuspiu-o logo. Disse que tinha um gosto desagradável. Nunca pretendi comparar-me a Deus no entendimento do bem e do mal. A Eva também não. Aliás, eu e o Senhor temos feitios tão diferentes que havíamos de divergir consideravelmente na análise de cada caso particular.

Existia no Jardim outro fruto proibido. Era o da árvore da vida, que proporcionava a vida eterna. Também o não provei. Viver para sempre nunca foi coisa que eu cobiçasse.

A serpente habituara-se a ir sozinha para aqueles lados. Como era curiosa e cheia de engenho, aprendeu a preparar uma bebida especial. Arrancava algumas folhas da árvore do conhecimento, pisava-as com uma pedra, juntava-lhes um pouco de água e deixava ficar tudo a repousar durante alguns dias. Resultava uma infusão adocicada que induzia sonhos agradáveis. Durante eles, julgava assistir a acontecimentos que iriam suceder no futuro.

Sendo minha amiga, quis partilhar comigo o dom da profecia. Deu-me a beber da poção que descobrira.

Bebi uns golos. A princípio, senti-me estranho. Quase a seguir, achei-me engrandecido. A bebida dava sono. Sentava-me numa pedra, à sombra da árvore, e ficava a assistir ao deslizar dos sonhos. A sensação era deliciosa, embora não tenha meios de saber se os prodígios que presenciei de olhos fechados acontecerão algum dia.

Viciei-me na poção. Havia dias em que acordava cedo e ia logo ter com a serpente para partilhar a sua bebida.

Vi cidades de prédios mais altos que todas as árvores da terra. Os seus habitantes vestiam roupas estranhas e deslocavam-se no solo, sobre as águas e pelos ares, em aparelhos enormes em que cabia muita gente.

Às vezes, a serpente sentava-se a meu lado e bebíamos a infusão da mesma cabacinha. Nunca fomos parecidos um com o outro e possuíamos organismos diferentes. Não admirava que reagíssemos de forma diversa à bebida. Enquanto eu me sentia eufórico e muito leve, como se caminhasse sobre as nuvens, ela deixava-se tomar pela ansiedade. Chegava a chorar durante aquelas experiências.

Certa vez, perguntou-me:

− Estás a ver o mesmo que eu?

− Não posso saber, mas conto-te o que observo. O fogo de Deus está a ser despejado sobre uma cidade.

− É Sodoma, uma terra de pecadores…

− Não são todas?

Veio um dia em que assisti a uma chuva incessante que começou por engrossar as torrentes dos rios e foi cobrindo, uma a uma, as montanhas do mundo, até perecerem afogadas todas as criaturas de Deus. Todas não, que um neto meu chamado Noé construiu uma grande arca flutuante onde se abrigou com a sua família e com um casal de cada espécie animal existente, doméstica ou selvagem. 

A ira de Deus não se estendeu aos peixes que nada se incomodaram com o dilúvio e nadaram alegremente. Que mal lhe terão feito as avezinhas, para Ele as obrigar a voar sem terem poiso até as forças lhes faltarem e se afundarem nas águas infinitas?


Data impercetível

A serpente confidenciou-me, certo dia, depois de sorver um golo da infusão:

− Não sou como os anjos…

Eu já sabia. Não valia a pena abrir a boca para dizer uma coisa tão óbvia. Deixei-a continuar.

− Eu e eles pensamos de forma distinta. Diferimos até no modo como pesamos as palavras. Não te aconselho a acreditar em tudo o que digo.

Eu nunca fui parvo. Aprendi a mentir, antes de a conhecer, e sabia que ela me enganava algumas vezes.

Serviu-se outra vez do líquido da cabacinha e prosseguiu.

− Sabes? Às vezes, invento histórias e conto-as aos outros. Sei-as dizer tão bem… Havias de ver… Aceitam-nas como se fossem verdadeiras.

Senti um pouco de ciúme. Quem seriam os outros? Agradava-me imaginar que era o seu único interlocutor. No entanto, ela poderia narrar os seus contos aos meus filhos e aos filhos deles.

Dias depois, pensei melhor. Se calhar, a serpente não falava com mais ninguém. Estaria a gabar-se, a insuflar o ego. Era coisa que eu era capaz de compreender. Talvez Deus a tivesse criado também a partir do barro.

Uma única vez, ouvi a serpente deixar escapar uma acusação ao Senhor:

− Deus é mau…

Lembro-me de ter retorquido, sem grande convicção nas palavras:

− Não é mau. É apenas justo.


Data impercetível

Aconteceu que o Senhor Deus reparou que iam faltando folhas nos ramos mais baixos da sua árvore favorita. Não teve qualquer dificuldade em identificar os culpados.

Julgo que ainda assistiu a alguns dos meus sonhos, para comprovar a falta. Por causa dela, castigou todos os meus descendentes. Devo fazer notar que apenas uma ínfima porção deles havia já nascido.

Expulsou-nos e, durante muito tempo, conversou pouco com os homens.

Se calhar, chegou a arrepender-se de nos ter criado. Ele é terrível, quando se zanga. Presenciei, em sonhos, o afogamento da maior parte dos seres vivos. O Senhor Deus fez verter a água do céu para os submergir.

Acho que é propenso a reações exageradas. Será por ter de tomar sozinho todas as decisões. Não tem ninguém que o aconselhe. Não me parece que os anjos sejam capazes de o fazer. Bem poderia escutar a serpente…

Quando me vim embora, escondi na trouxa algumas estacas pequenas da árvore do conhecimento e plantei-as na terra que passou a pertencer-me. Estou para ver se vão secar ou se darão rebentos novos.

Não sei se o Senhor deu pelo furto. Talvez não… Tem andado preocupado com a agitação que grassa entre os Seus anjos.