APRESENTAÇÃO DO LIVRO
O DIA EM QUE DEUS
COMEÇOU A DESMONTAR O MUNDO
Doutor António Bárbolo Alves
Centro de Estudos em Letras
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
“Há rios que deslizam por vertentes opostas da
mesma montanha, como lágrimas que escorrem apenas por um dos lados da face. Só
é permitido a cada um o entendimento da sua encosta. Não se conhecem, nem sabem
do sofrer da outra parte. As correntes seguem trajetos quase paralelos. Os
caudais aproximam-se, uma vez por outra. Tocam-se, mas não juntam as águas.” (O
Dia em que Deus começou a desmontar o Mundo, Prólogo).
Em face da nossa imagem ou da nossa sombra,
estamos continuamente à procura dos nossos limites. Quem não gostaria, nem que
fosse por um momento, de alcançar o lado de lá do espelho, parar o tempo para
tocar o rosto da outra criatura sem turvar a água? Mas, como sabemos, a
aventura misteriosa que Narciso iniciou é impossível, porque a imagem e a
sombra são iguais. Confrontado com as suas limitações, com o mundo que nos
limita e nos divide, o ser humano procura superar-se, vencendo ou contornando
aquilo que as divindades e as potências infernais jamais lhe concederam. Um dos
primeiros rostos deste desafio encontramo-lo, na nossa civilização, na
enigmática e ambígua figura que os Egípcios esculpiram na rocha do deserto e os
gregos colocaram à entrada de Tebas: a Esfinge. Com corpo de leão e cabeça
humana, a Esfinge é a encarnação perfeita da nossa própria ambiguidade e a
realização plástica mais concreta de um dos actos mais antigos da criação
humana: a arte e, neste caso, a literatura.
Coincidência
ou não, também Dumba, personagem do nosso livro, informe e diabólica criatura
(ainda que sem as metamorfoses satânicas e teratológicas vulgarmente atribuídas
ao diabo), se une pelo seu sobrenome a esse ser misterioso e enigmático que os
antigos colocaram como guardião das pirâmides e deixaram errar perigosamente
pelos caminhos de Tebas. Dumba é o “leão-do-homem”, ladrão de sonhos e uma
espécie de “demónio pessoal e doméstico”. Nascido da vontade e sobretudo da
ambição do curandeiro Hende, este ser débil e frágil − “tão leve que qualquer
pequeno sopro o levaria de volta ao mundo dos mortos” − depressa cresceu e foi ganhando
força:
“Foi-lhe
dada voz. Aprendeu logo a mentira e o fingimento. Matreiro por natureza, era,
acima de tudo, curioso. Às vezes chegava a sentir-se quase gente.” Aprendendo a
enganar, a fingir e a mentir, passou naturalmente a assemelhar-se aos humanos.
Mas aprendeu também a ler os pensamentos e os sonhos, perscrutando as almas e
falando com elas porque lhe foi dada “voz”. E ao ganhá-la, deixou de se
assemelhar à antiga esfinge egípcia − colossal, enigmática, mas sempre
silenciosa – transformando-se na esfinge grega, que falava e propunha um enigma
a todos os seres humanos, terminando com a terrífica ameaça: decifra-me ou
devoro-te!
É
com altivez e desprezo que os deuses olham e interrogam os humanos. E foi
também com alguma sobranceria, talvez libidinosa, que Dumba seduziu
primeiramente Chissola, uma das mulheres de Hende, seu amo, e acabou por
engravidar também as outras três, cumprindo assim aquilo que o curandeiro, por
ser estéril, não conseguira fazer, nem ele, sozinho, nem com a ajuda de nenhuma
mezinha dos seus amigos feiticeiros. Na longínqua Tebas o monstro foi vencido
por um adolescente que por ali passava. O jovem Édipo que só sabia uma coisa:
todos os enigmas são enigmas do homem. Logo, a resposta à pergunta da Esfinge
só podia ser “homem”. Acertou. A Esfinge, derrotada, envergonhada e furiosa,
lançou-se dos rochedos e precipitou-se no mar, despedaçando-se. Porém, como se
sabe, o Destino não foi particularmente propício com o jovem herói: a
engrenagem mais bem montada do Fado fez com que ele se casasse com a mãe,
assassinasse o pai, e depois, confrontado com a cruel realidade, por desgosto,
fugisse e arrancasse os próprios olhos.
Na
nossa história, Dumba, confrontado pelas mulheres com a inflexibilidade de
levarem a gravidez até ao fim, também é obrigado a fazer sumir Hende que é,
simbolicamente, seu pai. Assumiu o seu papel, “vestiu a forma do amo” e adoptou
a sua posição. Mas aquele mundo fechado, aquele papel de pai adoptivo e
“feiticeiro substituto”, depressa o levaram ao tédio. “Afinal, o mundo era
imenso. Atrás de uma serra, escondiam- se outras. Havia terras sem fim a
palmilhar. Ouvira falar de um rio muito grande e também do mar. Dizia-se que
havia pessoas de costumes e linguagem diferentes e que até existiam quimbos
habitados por gente de pele clara.”
“Preso
àquele chão, o diabo tinha falta de ar. Tomou uma decisão. Enquanto pudesse,
havia de caminhar e de experimentar coisas novas. Resolveu deixar para trás
tudo o que conhecera até então. Voltou as costas às quatro esposas. Anunciou,
alto e bom som, que se dirigia para leste, à procura de ervas para tratar
doenças de criança.”
Foi
na busca de novos rios, de novas paisagens e de novos costumes, que Dumba
partiu. No seu percurso atravessa lugares reais – como a fenda da Tundaval; a
(serra da) Chela; o Munhino; o Lubango, o Cunene onde se deixa ferozmente levar
pelas cataratas do Ruacaná – mas este périplo constitui sobretudo uma viagem
pelo mundo onírico, e uma profunda peregrinação pelos dédalos e pelos labirintos
da alma e do ser humano. Por isso, diz o narrador, “recolheu sonhos de cão, de
porco, de hiena, de aves diversas, e até de um ovo. Juntou-os cuidadosamente
aos dos meninos e adultos”, embora preferisse “os das aves e os dos velhos.”
Foi
à procura de respostas que Dumba se fez “peregrino”. Não sou eu que o digo, é o
narrador que assim descreve o momento da sua partida:
“Quando
Dumba iniciou a sua peregrinação, ainda estava escuro.” Ora, uma breve incursão
pela filologia permite-nos concluir que esta palavra, de origem latina, onde
adquiriu significados próximos dos que hoje lhe atribuímos, é primeiramente
composta pelo prefixo “per” e o nome “ager”, querendo por isso dizer, ir pelos
campos, e ajustando-se assim a motivação etimológica, uma vez que a viagem de
Dumba não tem qualquer objectivo religioso. “Calcorreava os caminhos de
Angola”, aparentemente sem destino, sem outra motivação que não fosse a de
procurar, quem sabe, uma solução, uma resposta, as respostas. É isto religioso?
Talvez. Fica para cada um de vós, ouvintes que, estou certo, se converterão
brevemente em leitores, a interrogação e a resposta. Quanto a Dumba, como bom
peregrino, “entregou-se à caminhada como se a marcha em si mesma pudesse
constituir um objetivo. Procurava alívio para alguma dor que era incapaz de
precisar.” Não esqueçamos que um dos
seus atributos é ser “ladrão de sonhos”.
O
enigma continua presente e a Esfinge, começando pela do antigo Egipto, cujo
sorriso enigmático os antigos egípcios interpretaram como sendo uma
interrogação, é afinal uma resposta. Ora, os mistérios não pedem respostas, não
precisam de ser decifrados, é preciso aprender a olhá-los sem a tentação de os
interrogar pois o silêncio constitui a sua densidade. Quanto a Dumba, apesar de
todas os seus poderes − era invisível, “lia facilmente os pensamentos e dava
conta dos defeitos e qualidades que cada um escondia atrás do semblante” e
julgava até “entender os mecanismos dos sonhos” – não conseguia parar a
torrente de questões, nomeadamente sobre a natureza dos sonhos: “Seriam livres
os sonhos? O leão-do-homem achava que não. Eram bois atados por cordas
compridas. Corriam, mas acabavam por ser conduzidos de novo ao curral. E esses
fios de ideias soltas do corpo, queriam todos voltar? Nenhuns se evadiam?
Perguntas... Perguntas...” Talvez seja por isso, pela ausência de respostas,
que Dumba retoma sempre a sua “peregrinação”, viajando de noite, porque a
“escuridão sempre lhe dava alguma tranquilidade”, e sempre à procura de
explicações para melhor entender os brancos e os pretos, ou os “pretos-brancos
ou brancos-pretos”, “viera do nada e caminhava para sítio nenhum.” A Esfinge
interrogava os tebanos. Dumba interroga quem encontra, mas interroga-se
sobretudo a ele próprio, retoricamente, parvamente, tontamente e quase sempre
sem respostas: “Perguntava e respondia. – Que sabedoria habita nas chamas? –
Provavelmente nenhuma. No entanto são fortes. Só a chuva as detém. – E eu,
leão-do-homem, que ando a fazer? – Observo. Registo. Pergunto. Guardo as respostas.
– O que aprendi, de que me serve? – De nada… – Quem acederá ao meu saber? –
Ninguém. – Isso é mau? – Nem mau, nem bom. Encolheu os ombros e retomou a
caminhada.
Ao entardecer, deu-lhe para olhar para dentro
de si. Gostou pouco do que viu. Sabia que não era único, mas nunca lhe
acontecera dar com outro leão-do-homem. Se o encontrasse, que faria? Iria
falar-lhe? Para quê? Que ganharia com isso? Continuou a fazer perguntas parvas.
Procurou que as mahambas nada ouvissem. De qualquer forma, já não tentava
responder. – Um pequeno diabo tem alguma utilidade? – De que serve viver?
Gozar, dá mesmo gozo?”
Paralelamente
à história de Dumba, na outra vertente da montanha, corre outra, a de um
missionário espiritano, Bernardo Moresville, que vamos conhecendo através de um
suposto “Diário” encontrado num baú da Missão da Mupa, no sul de Angola.
Segundo o narrador, “estava escrito em alemão e foi difícil encontrar quem se
dispusesse a traduzi-lo.” A sua visão é a de um europeu, que tenta compreender
os enigmas de África através do seu olhar cristão, católico e racional,
reconhecendo as suas limitações e procurando ir ao encontro das almas
africanas: “Ainda não estou preparado para recolher ovelhas para o rebanho do
Senhor. Ocupo-me em aprender a ouvir e falar. Um missionário tem de se entender
muito bem com os indígenas. Se não fosse dotado de algum talento para as
línguas, estaria a sentir-me infeliz.” E mais adiante: “Os cuanhamas da
vizinhança da Missão vão aceitando conversar comigo. Tenho falado até com
alguns quimbandas. Não procuro convencê-los. Neste momento, manter o diálogo é
tudo a que posso aspirar. Vou aprendendo tudo o que posso sobre as suas
crenças.” Simbolicamente, as duas narrativas, ou melhor, as duas vidas ou as
duas visões, encontrar-se-ão uma única vez quando Dumba, de passagem pela
região do Munhino e tendo ouvido falar
dos missionários que eram “quimbandas europeus que tentavam convencer os povos
da Huíla de que Kalunga fora, em tempos, preso por uns brancos maus e sujeito a
morte cruel”, “resolveu entrar no espírito do missionário” e conhecer-lhe os
sonhos:
“Quase
se perdeu. Achou-lhe a mente complicada. Abarrotava de ideias. Pareciam muito
bem arrumadinhas, mas não fluíam livremente. Estavam atadas a regras fortes de
disciplina. O Kalunga dos europeus estava em todo o lado. Dominava aquele
homem. Associava-se a uma necessidade incompreensível de persuadir todas as
pessoas do mundo a pensar da mesma maneira. Convencê-las era o objetivo
primordial de toda a sua vida.” Mas Dumba descobriu também que “debaixo das
ideias organizadas sobrevivia um espírito angustiado e carregado de dúvidas.”
Que o missionário não acreditava, pelo menos com suficiente firmeza, em tudo o
que pregava, nem estava certo de seguir exactamente os caminhos do bem.
Contudo, seguindo os princípios africanos, ele não estava ali para mudar e
muito menos para julgar ninguém. Por isso “saiu daquela alma antes que a manhã
viesse”, deixando o missionário entregue aos seus sonhos, às suas inquietações
e às suas dúvidas.
Ainda
assim essa experiência, no mar das suas interrogações, ajudou-o a ver com toda
a clareza “que .. os homens eram parecidos uns com os outros como folhas da
mesma árvore. Muito enganados viviam os que se consideravam especiais ou
superiores. A condição humana irmanava-os mais do que podiam imaginar.” Tal
como o mistério, agora sepulto, das portas de Tebas, será possível encontrar um
futuro para a humanidade – para África – edificado no “homem” e no próprio
homem? A verdade é que desde o início da obra (desde o “Prólogo” de que lemos o
primeiro excerto), o autor nos adverte que o livro foi “construído sobre duas
formas diversas de encarar o mundo”, e que África é a “designação da cordilheira
que separa” (não une) o “Rio dos Brancos do “Rio dos Negros”.
Estas
barreiras, Bernardo Moresville, o missionário, vai-as descobrindo e contornando
como sabe e como pode, adaptando a sua pregação e a sua doutrina: “– Senhor
Padre... O Senhor Deus, de que cor é? Hesitei, pensando na melhor forma de
responder. Às vezes a palavra é chave: abre a questão, como se desfizesse um
nó. Outras vezes aperta-o e ninguém mais o desata. – Eu sei! Vi lá na igreja –
Disse a pequena Catima. Deus é branco. Branquinho como as palmas das minhas
mãos! – Deus não é preto nem é branco… – Então é mulato.... – Interrompeu o
Carlos. – Também não! Eu explico. Comecei a falar. Não segui o caminho mais
direito, mas não me sentia capaz de contar a verdade toda. Ali ninguém
aceitaria um Deus sem corpo. – Deus tem muitas cores, e nem sempre escolhe a
mesma. Gosta da cor da terra quando para de chover e, quando calha, usa-a.
Agrada-lhe o verde do capim fresco da manhã e confunde-se com ele. Outras vezes
é do tom do riacho que se desequilibra e tomba na cascata. Há dias em que se
pinta do amarelo do sol que, lá do alto, manda em todos, ou do vermelho em que
ele se embrulha quando está cansado e quer dormir. Chega a vestir a cor da
noite e de alguns dos nossos sonhos. – Mas o preto não é a cor do diabo? – Não!
Vocês são negros e são filhos do Senhor.”
No
século XVI, ao tentar compreender o choque que representava a descoberta do
Novo Mundo, Michel de Montaigne escreveu nos seus célebres Ensaios que o “nosso
mundo acabava de descobrir outro”. Esta frase do célebre humanista, tantas
vezes repetida, esquece muitas vezes o raciocínio e a crítica que se lhe
seguem. A “criança” acabada de nascer, diz Montaigne, não se transformou, como
seria natural e desejável, num simples irmão mais novo. Depressa foi dominado
pelo mais velho, o Mundo Antigo, mesmo sabendo que o “novo” não lhe era, em
nada, “inferior”. Para além disso, o mais velho aproveitou a inexperiência do
mais novo para o dominar, para mais facilmente lhe incutir as ideias de
traição, de luxúria, de ganância e todo tipo de desumanidade, seguindo o
exemplo e o modelo dos nossos costumes.
Já
voltaremos a esta questão dos dois mundos. Para já, vamos ao encontro do Dumba
na sua caminhada para o sul, junto ao grande rio de que tanto ouvira falar.
Lembrámos, no início destas palavras, como o mito de Narciso nos coloca perante
os nossos limites: a impossibilidade de parar o tempo para que o nosso rosto se
detenha sobre a outra criatura que nos sonhamos. Mas os deuses, naquilo que têm
de criação humana, permitem-no, ainda que muitas vezes pagando preços demasiado
elevados ou inatingíveis. Foi isso que aconteceu com a mulher de Loth, incapaz
de se libertar do passado e, olhando para trás, transformada em estátua de sal;
Orfeu, a quem foi concedido o momento único, claro e irrepetível de ver
Eurídice, ao olhar passa trás, viu-se também condenado a perder,
irreversivelmente, a sua amada, e ele próprio a ser condenado à tristeza, à
solidão e à morte. Também Dumba, na magia das palavras ou na magia pura, se
encontra com ele próprio, num momento ímpar e pleno de simbolismo: “Havia
lugares, junto à margem, onde a água acastanhada mal se movia. Dumba aproveitou
para se mirar. Via tão bem de noite como de dia, mas aquela superfície
enganava. A imagem que lhe foi devolvida confundiu-o: era velho e novo, morto e
vivo. O passado e o futuro sobrepunham-se. Eram iguais os caminhos para a
frente e para trás. Às tantas, pareceu-lhe que estava do outro lado do espelho.
Estranhou-se. Dizia “eu” e quase jurava que a voz vinha do fundo. Era como se
tivesse vestido a pele às avessas. Indiferente, o Cunene seguia o seu caminho.”
Mas esta indiferença que os elementos naturais
dispensam aos homens, nem sempre é partilhada pelos deuses. A partir do Céu ou
do Olimpo, Hermes não cessa de interpelar os humanos ainda que eles nem sempre
estejam à altura de decifrar as suas mensagens. Por isso, nem Dumba nem
Bernardo Moresville são capazes de entender os sinais vindos do alto. O
missionário interroga-se: “Se Deus, na sua imensa sabedoria, se revelou aqui
como Kalunga, vim para o local errado e ando a espalhar a confusão nas almas
desta gente. Terá sido por isso, também, que Deus se zangou.” Seja como for, o
certo é que, olhando o firmamento, Bernardo de Moresville estava certo de que
faltavam algumas estrelas no céu, e isso só podia ser um mau agoiro: “Faltam
estrelas no céu, disso não tenho dúvidas. Talvez o brilho delas não seja
eterno. Pode ser que o fogo de algumas se apague mais cedo do que doutras.”
Do
outro lado da “montanha”, os olhos de Dumba vêem “nuvens de fumo negro” que
são, imagina ele, apenas “a respiração da terra doente”. Mas este olhar primevo
que o deixa também imaginar, no céu, “pássaros de ferro”, depressa se esvanece
na realidade crua da guerra, pois as ditas “aves” despejavam fogo e morte,
ceifavam homens, mulheres e crianças, “a besta não escolhia cores nem tribos:
varria a eito. Angola soluçava.”
O
resto da história já nós a conhecemos. Ou julgamos conhecê-la! O dia em que Deus
começou a desmontar o mundo é assim uma viagem pela realidade africana, mas é
sobretudo uma interrogação sobre o Homem, as culturas, as formas e as
possibilidades de integração e de miscigenação cultural. O lado do Portugal
colonizador, missionário e conquistador aparece-nos aqui de uma forma que
podemos chamar “à portuguesa”, isto é, baseada no “desenrascanço”, disfarçando
as nossas dificuldades e as nossas limitações, mas também os nossos desejos de
sedução, as relações com o outro, da forma mais suave e mais discreta possível.
A propalada aptidão dos portugueses para sermos “outros” encontra eco na
expressão pessoana de “ser e sentir tudo de todas as maneiras”. Mas esta não é
mais do que a manifestação dramática da multiplicidade e, porventura, da
vontade de imitar o próprio Deus. Na realidade, como reconhece o nosso
narrador, pelos olhos de Dumba, “o mundo dos brancos penetrara fundo nas almas
negras. O contrário também acontecera, mas numa escala muito menor.” E “quando
os europeus abalaram, nada voltou a ser como dantes.” Nas palavras de Fernando
Pesssoa, "um português que é só português não é português". E a
verdade é que a capacidade de adaptação de que os portugueses deram provas ao
longo da sua história de emigrantes e de marinheiros parece dar razão ao
paradoxo pessoano, ainda mais claro e adequado se pensarmos no Grande-Cais –
evocado na Ode Marítima – “donde partimos em NaviosNações”. É a bordo deste
barco que, segundo a máxima de Pascal, “todos nascemos embarcados, e um dia
desembarcamos”. Mas a dimensão do navio português foi sempre muito maior do que
este exíguo rectângulo à beira-mar plantado. Do Minho a Timor ou de Macau à
Amazónia, este super-país imaginário parece também encontrar eco nos devaneios
de Dumba, em cujos sonhos e memórias se confundem e se entrelaçam “o passado e
o presente”. Afinal, não podemos esquecê-lo, Portugal nasceu sob o olhar de
Deus. Pelo menos assim o imaginaram os cronistas e poetas, desde o simbólico
milagre de Ourique até à “consagração” do Infante D. Henrique, fazendo de
Portugal uma espécie de nação à margem da História, na esperança permanente e
hierofânica da consumação de um Quinto Império. Por isso, se os deuses
presidiram à construção de Portugal e do seu Império imaginário, bem podemos
cometer a heresia de lhe conceder o direito de o desconstruírem! Ainda que o
nosso missionário tenha muita dificuldade em compreendê-lo e muito mais em
aceitá-lo! “Seria terrível pensar - diz ele - que Deus se arrependeu da sua
obra e começou mesmo a desmontar o Universo.”
Deixámos
há pouco em aberto a questão dos “dois mundos” que, nesta obra, tal como a
peregrinação de Dumba e a vida do missionário, correm paralelamente. Estão
próximos, mas nunca ou raramente se encontram. As águas onde Narciso se vê, seduzem-no
e encantam-no, mas condenam-no também a nunca mais se encontrar. Ao contrário
do mito bíblico de Babel no qual, segundo algumas leituras, Deus castigou os
homens a não se entenderem, na nossa narrativa foi o pecado da
incomunicabilidade, o desrespeito e pela não-aceitação do pacto de compreensão
que devia existir entre os humanos, que desencadeou a ira divina. O dia em que
deus começou a desmontar o mundo é assim a narrativa do pacto possível entre
dois mundos – europeu e africano, português e angolano, Deus e Kalunga –,
superficialmente pacíficos, mas que, no fundo e no final, não foram capazes de
comunicar, isto é, de se entender. Nesta viagem ao mundo das sombras, isto é da
alegoria, ou seja, do sentido que não se encontra na “ágora”, na praça pública,
mas sim fora dela, o que encontramos são interrogações, são enigmas, são
metáforas. Ora, não há enigma maior do que o que representamos para nós
próprios. E esse enigma nunca será resolvido. Neste sentido, também esta obra,
tal como a Esfinge, não dá respostas, interroga-nos. Compreendê-la é olhá-la, é
lê-la, sem a tentação de lhe perguntar nada.
Uma
última nota para o prémio que esta obra conquistou. Para além da homenagem ao
Professor Adriano Moreira, celebra-se a lusofonia, a sua diversidade cultural,
a suas vozes e as suas línguas. É bem curiosa, aliás, a descoberta de Carlos
Estermann, também ele missionário e companheiro de Bernardo de Moresville,
sobre uma velha questão linguística que tem a ver com a forma como as línguas
condicionam, ou não, a nossa maneira de ver o mundo: “Estermann acabou por
fazer uma constatação curiosa. A mulher pensava em cuancala e em banto. Ao
pensar na língua nativa não tinha barreiras nem tabus – as ideias expandiam-se
como se percorressem a floresta contornando as árvores e os obstáculos
naturais. Só as detinham a fome e a sede. Quando pensava em cuanhama, os
conceitos deixavam-se circundar pelos cercados de espinheiras.” Não entraremos
aqui nessa velha discussão que opõe os defensores de uma “gramática universal”,
àqueles para quem as línguas são sobretudo variabilidade e diferença. Todos
nós, sobretudo aqueles que falamos línguas diferentes, temos experiências
semelhantes à desta mulher. Podemos, por isso, tirar as nossas conclusões…
Quanto à obra que aqui nos traz e nos reúne, sendo ela própria polifónica,
convida-nos a escutar a pluralidade das línguas e culturas que pululam no
espaço angolano, africano e lusófono. Para além do português, língua da
narração, podemos ouvir um conjunto de palavras de outros idiomas que o
narrador vai utilizando, sem esquecer as referências a outras línguas como o
umbundo, o quimbundo, o cuanhama, o ndonga, o banto, entre outras, que somos
desafiados a descobrir. “Talvez sejam as línguas que vão escolhendo os
escritores de que precisam”, diz Ricardo Reis, diante da estátua de Eça de
Queirós, uma vez regressado do Brasil. “Serve-se deles para que exprimam uma
parte do que é”, mas, adverte, “quando a língua tiver dito tudo, e calado,
sempre quero ver como iremos nós viver.” Nós, simples leitores, agradecemos às
línguas que, servindo-se ou não dos escritores, nos permitem viajar nos sonhos,
embarcar nos mitos e nas utopias. “Os homens, lembra o nosso narrador, são os
grandes sonhadores da natureza, embora estejam longe de ser os únicos.” Por
isso, esta obra é também uma viagem, fala do passado, mas desafia-nos sobretudo
a interrogar o futuro. Lembrando que, sem a espessura desse passado, sem
conhecer a nossa história, individual e colectiva, teremos o presente, mas o
futuro será apenas uma candeia apagada, sem luz, sem esperança e sem sonhos.
Bragança, 19/Junho/2021
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