ADEUS, ÁLVARO!
O tenente-coronel Álvaro
Henrique Fernandes morreu na noite de 6 de maio. A cerimónia fúnebre decorreu
hoje.
Foi mais um amigo que
perdi.
Conhecemo-nos em Coimbra,
em 1960. Éramos da mesma idade e vínhamos ambos de Angola, ele de Luanda e eu
do Lubango. Quem trocava o convívio dos seus pelo sonho duma formação
universitária e de um futuro melhor sujeitava-se a uma carência prolongada de
afetos. Eu fui poupado a essa experiência penosa, por ter vindo acompanhado da
minha mãe e de uma das minhas irmãs.
Os jovens defendiam-se da
solidão aproximando-se de colegas oriundos de regiões próximas. Os angolanos
chegavam-se uns aos outros, do mesmo modo que o faziam os moçambicanos.
Nessa altura, sopravam
fortes os ventos da História e tornava-se clara a necessidade de libertar as
colónias e democratizar e modernizar o país. Formou-se um núcleo muito
politizado de estudantes angolanos e são-tomenses que, com diversas saídas e entradas,
acabou por levar à formação do Kimbo dos Sobas o qual, vários anos mais tarde,
se transformaria em república.
− Eu percebo mais de
matemática que o Segadães! – Proclamava o Álvaro, há cinquenta e tal anos.
Talvez percebesse, mas o
António Segadães Tavares demonstrou muito cedo, para além da inteligência comum
a ambos, a disciplina de trabalho que lhe iria granjear, anos mais tarde,
reputação internacional.
O Álvaro mudou-se de
Coimbra para Lisboa e, a dada altura, interrompeu o curso e foi para a tropa. Serviu
dois anos como alferes miliciano de transmissões de Infantaria em Moçambique.
Entretanto, casou e descasou.
Voltei a encontrá-lo em
Mafra, no outono de 1969. Eu tinha sido mobilizado para o curso de Oficiais
Milicianos enquanto ele frequentava o curso de capitães.
Soube depois que tinha
sido enviado para Angola, para comandar uma Companhia. Perdi-o de vista,
durante algum tempo.
Reapareceu no 25 de Abril,
de forma notável. Ajudou a ocupar o comando do Depósito Geral de Adidos e
desempenhou um papel fundamental na ligação entre o posto de comando do MFA e
as unidades que iam tomando conta de Lisboa.
Sempre ligado a Otelo
Saraiva de Carvalho e ao COPCON, encorajou o “movimento popular” que alastrava
no país. No “verão quente” de 1975, ajudou a distribuir por militantes de
esquerda várias centenas de espingardas G3 retiradas do depósito de Beirolas.
Ficou então conhecido como o “Capitão Fernandes”, o homem que entregou armamento
aos comunistas. Assumiu sozinho o desvio das G3 e teve de se refugiar em Paris,
onde se fez jornalista.
Contou-me, anos mais
tarde, como as coisas aconteceram, sem se alargar em pormenores.
− Trabulo! A distribuição
das armas foi decidida numa reunião do COPCON em que estavam presentes 17
oficiais. Alguém tinha que arcar com aquela responsabilidade. Eu disponibilizei-me
para isso.
Era o Álvaro no seu
melhor. Galhardo, generoso, cavalheiro, tendendo a tomar posições quixotescas.
Ainda hoje é odiado por uma certa Direita política.
Calhou avistá-lo numa
visita clandestina a Portugal, no aeroporto de Lisboa. Sorri e quase me ri. Ele
no meio, o Zé Marvão e a Rosário aos lados, formavam um grupo de aspeto tão
comprometido que qualquer bufo que andasse por perto ficaria desconfiado. Felizmente,
a geração dos bufos acabara com o 25 de Abril.
Álvaro Fernandes regressou
a Portugal em 1978 e passou algum tempo detido. Após certas vicissitudes, em
1983 acabou por ser reintegrado no Exército Português.
O Álvaro não foi apenas um
militar político, ou um político-militar. Era um escritor de talento. Escreveu
quatro livros: Portugal, nem tudo está perdido (1976), Berços de renda,
enxergas de trapo (1981), Kianda, o rio da Sede (1996) e Testemunho de um país
novo (2003). Ofereceu-me três. Li-os com agrado. Desconheço o “Berços de
renda”. Sei que, perto do fim da vida, já não tinha exemplares das obras que
escrevera. Era um homem que dava tudo.
Almoçávamos (raramente) em
casa um do outro, e trocávamos impressões, geralmente por correio eletrónico.
Nem sempre estávamos de acordo, mas havia respeito nas discordâncias.
O Álvaro colaborou na
preparação do meu ensaio “A Guerra da Guiné”, prestando informações valiosas
sobre questões militares. É dele a frase que dá começo ao livro: “ A história
de uma guerra não estará completa enquanto for baseada unicamente na visão de
um dos contendores”.
Ao adoecer, procurou
exorcizar os seus fantasmas expondo publicamente o seu sofrimento no Facebook.
Espero que essa espécie de fuga para a frente lhe tenha proporcionado algum
alívio.
Lembrar o Álvaro é também
recordar a juventude e os começos do Kimbo dos Sobas. De um grupo pouco
organizado de estudantes, quase todos com origem ou vivência africana, saíram
um primeiro-ministro de São Tomé e Príncipe, um herói nacional angolano, dois
generais das FAPLA, um capitão de Abril, um dos engenheiros portugueses mais
reconhecidos além-fronteiras, pelo menos sete escritores, um cineasta e dois
mártires.
Parece extraordinário, para um núcleo
que nunca foi numeroso.
Termino exprimindo os meus
sentimentos de pesar à família. De algum modo, estamos todos de luto.