DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 8 de maio de 2018



ADEUS, ÁLVARO!



O tenente-coronel Álvaro Henrique Fernandes morreu na noite de 6 de maio. A cerimónia fúnebre decorreu hoje.
Foi mais um amigo que perdi.
Conhecemo-nos em Coimbra, em 1960. Éramos da mesma idade e vínhamos ambos de Angola, ele de Luanda e eu do Lubango. Quem trocava o convívio dos seus pelo sonho duma formação universitária e de um futuro melhor sujeitava-se a uma carência prolongada de afetos. Eu fui poupado a essa experiência penosa, por ter vindo acompanhado da minha mãe e de uma das minhas irmãs.
Os jovens defendiam-se da solidão aproximando-se de colegas oriundos de regiões próximas. Os angolanos chegavam-se uns aos outros, do mesmo modo que o faziam os moçambicanos.
Nessa altura, sopravam fortes os ventos da História e tornava-se clara a necessidade de libertar as colónias e democratizar e modernizar o país. Formou-se um núcleo muito politizado de estudantes angolanos e são-tomenses que, com diversas saídas e entradas, acabou por levar à formação do Kimbo dos Sobas o qual, vários anos mais tarde, se transformaria em república.
− Eu percebo mais de matemática que o Segadães! – Proclamava o Álvaro, há cinquenta e tal anos.
Talvez percebesse, mas o António Segadães Tavares demonstrou muito cedo, para além da inteligência comum a ambos, a disciplina de trabalho que lhe iria granjear, anos mais tarde, reputação internacional.  
O Álvaro mudou-se de Coimbra para Lisboa e, a dada altura, interrompeu o curso e foi para a tropa. Serviu dois anos como alferes miliciano de transmissões de Infantaria em Moçambique. Entretanto, casou e descasou.
Voltei a encontrá-lo em Mafra, no outono de 1969. Eu tinha sido mobilizado para o curso de Oficiais Milicianos enquanto ele frequentava o curso de capitães.
Soube depois que tinha sido enviado para Angola, para comandar uma Companhia. Perdi-o de vista, durante algum tempo.
Reapareceu no 25 de Abril, de forma notável. Ajudou a ocupar o comando do Depósito Geral de Adidos e desempenhou um papel fundamental na ligação entre o posto de comando do MFA e as unidades que iam tomando conta de Lisboa. 
Sempre ligado a Otelo Saraiva de Carvalho e ao COPCON, encorajou o “movimento popular” que alastrava no país. No “verão quente” de 1975, ajudou a distribuir por militantes de esquerda várias centenas de espingardas G3 retiradas do depósito de Beirolas. Ficou então conhecido como o “Capitão Fernandes”, o homem que entregou armamento aos comunistas. Assumiu sozinho o desvio das G3 e teve de se refugiar em Paris, onde se fez jornalista.
Contou-me, anos mais tarde, como as coisas aconteceram, sem se alargar em pormenores.
− Trabulo! A distribuição das armas foi decidida numa reunião do COPCON em que estavam presentes 17 oficiais. Alguém tinha que arcar com aquela responsabilidade. Eu disponibilizei-me para isso.
Era o Álvaro no seu melhor. Galhardo, generoso, cavalheiro, tendendo a tomar posições quixotescas. Ainda hoje é odiado por uma certa Direita política.
Calhou avistá-lo numa visita clandestina a Portugal, no aeroporto de Lisboa. Sorri e quase me ri. Ele no meio, o Zé Marvão e a Rosário aos lados, formavam um grupo de aspeto tão comprometido que qualquer bufo que andasse por perto ficaria desconfiado. Felizmente, a geração dos bufos acabara com o 25 de Abril.
Álvaro Fernandes regressou a Portugal em 1978 e passou algum tempo detido. Após certas vicissitudes, em 1983 acabou por ser reintegrado no Exército Português.
O Álvaro não foi apenas um militar político, ou um político-militar. Era um escritor de talento. Escreveu quatro livros: Portugal, nem tudo está perdido (1976), Berços de renda, enxergas de trapo (1981), Kianda, o rio da Sede (1996) e Testemunho de um país novo (2003). Ofereceu-me três. Li-os com agrado. Desconheço o “Berços de renda”. Sei que, perto do fim da vida, já não tinha exemplares das obras que escrevera. Era um homem que dava tudo. 
Almoçávamos (raramente) em casa um do outro, e trocávamos impressões, geralmente por correio eletrónico. Nem sempre estávamos de acordo, mas havia respeito nas discordâncias.
O Álvaro colaborou na preparação do meu ensaio “A Guerra da Guiné”, prestando informações valiosas sobre questões militares. É dele a frase que dá começo ao livro: “ A história de uma guerra não estará completa enquanto for baseada unicamente na visão de um dos contendores”.
Ao adoecer, procurou exorcizar os seus fantasmas expondo publicamente o seu sofrimento no Facebook. Espero que essa espécie de fuga para a frente lhe tenha proporcionado algum alívio.


Lembrar o Álvaro é também recordar a juventude e os começos do Kimbo dos Sobas. De um grupo pouco organizado de estudantes, quase todos com origem ou vivência africana, saíram um primeiro-ministro de São Tomé e Príncipe, um herói nacional angolano, dois generais das FAPLA, um capitão de Abril, um dos engenheiros portugueses mais reconhecidos além-fronteiras, pelo menos sete escritores, um cineasta e dois mártires.
Parece extraordinário, para um núcleo que nunca foi numeroso.
Termino exprimindo os meus sentimentos de pesar à família. De algum modo, estamos todos de luto.

1 comentário:

  1. Conheci o "Capitao Fernandes" na CHESMATI nos anos 1988/89, gostava de passar pela área de Informatica para falar com o Ten. Coronel Nave.
    Sempre achei uma figura fascinante, de frases curtas e enigmáticas. Hoje - 8 de Maio de 2021 - decidi investigar sobre a sua vida. Apesar da tristeza de saber que tinha falecido, fica o alento de tudo o que li e saber na realidade quem foi. Obrigado e paz a sua alma!!!

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