DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014


Pouco tenho escrito nos blogues nos últimos tempos. Felizmente, não tenho estado doente, e não se trata de preguiça ou de desinteresse. Isto acontece quando atravesso períodos de maior produção literária.
Apresento-vos a minha obra mais recente. É um volume de 33 contos. 
Irei divulgar aqui alguns dos mais pequenos. Começo com «Os Henriques».



                                                OS HENRIQUES   
    
Não via o Henrique há muito tempo. Não sei bem há quanto, mas julgo que passaram três dezenas de anos. Ontem, encontrei-o duas vezes, com intervalo de horas. Estranhamente, passou por mim com idades diferentes.
Aconteceu primeiro de manhã. Eu tinha ido tomar café e comprar o jornal. Surpreendeu-me vê-lo tão estragado. O que me devia admirar era a estranheza. Lembro-me de ter escrito em algum lado que ninguém retoca as recordações com os estragos do tempo. Ele não estava mais novo nem mais velho do que deveria estar. Afinal de contas, somos da mesma idade.
Não me viu. Passou por mim no seu costumeiro passo rápido. Voltou-se, quando o chamei. Ficou surpreendido. Reconheceu-me e deu-me um abraço apertado.
─ António! Não te via desde o Lubango. Estás mais gordo… Disseram-me que eras médico.
 O Henrique sabia que eu gostava de falar de mim. Mesmo nas vidas menos aventurosas, acontecem muitas coisas em trinta anos. Contei algumas. Ele escutou-me durante alguns minutos, antes de me interromper.
─ Desculpa, mas tenho um encontro marcado e já levo algum atraso. Para a próxima vez, conversamos mais.
Tirando as rugas, a falta de cabelo e as lentes mais grossas, afinal tinha-se modificado pouco. Lembro-me dele sempre cheio de pressa. Foi-se embora sem me dar a oportunidade de lhe indicar o meu número de telemóvel. 
Depois do almoço, voltei a encontrá-lo, na mesma rua e quase no mesmo sítio, mas com muito menos anos. Viu-me antes de eu o ver e dirigiu-se logo a mim. Não pareceu reparar que eu tinha envelhecido. Iria jurar que nem deu por isso.
 Foi fácil reconhecê-lo. Recordo bem o adolescente esgrouviado que tinha a fama de espreitar as miúdas na casa de banho e gostava de subir às árvores dos quintais do Lubango.
Não tinha mudado. Devia ter os mesmos quinze anos e continuava cioso da sua motorizada nova.          
 ─ António! Como vão os estudos? Continuas a ser bom aluno?
Nem sei bem o que respondi. Deixei de estudar há muito tempo.
Era o Henrique, ou melhor, eram os Henriques. Voltei a encontrá-los algumas vezes, nessa mesma semana. Trocámos conversas rápidas. Demonstravam pouca simpatia um pelo outro. Nunca os vi conversar cara a cara. Vinham ter comigo e falavam como se eu fosse uma espécie de mensageiro. Por vezes, senti-me obrigado a branquear a dureza das mensagens que enviavam.
O Henrique novo considerava que o mais velho conseguira pouca coisa da vida. Nem sequer se tinha licenciado. O de mais idade achava o puto pretensioso e com ambição a mais.
O mais novo acusava-o de ter deixado a Sofia, por quem se tinha apaixonado.
─ Ele não tem olhos na cara! Não viu que poderia ter sido feliz com aquela mulher? Abandonou-a e, agora, andam para aí os dois aos tombos…
─ Esse pateta nunca soube que ela cheirava mal da boca!
─ Deixaste de falar com a mãe quando o pai morreu!
─ Eu gostava muito do pai. A mãe atraiçoou-o com um gajo do Banco de Portugal.
Os Henriques desapareceram. Não os voltei a ver. Não lamentei as partidas. Era amigo de ambos e sentia-me desconfortável no papel de pombo-correio.
O tempo prega-nos partidas e chega a ser difícil entrançar as idades que se vão sucedendo. Recordo um fragmento de um poema que escrevi há muitos anos:

   É frágil o fio que ata aos outros os dias de uma vida
   e o adolescente que fui é-me pouco familiar…
 Quem poderá dizer que são mesmo suas as recordações?