DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 28 de março de 2010

POETAS DE QUEM EU GOSTO


PESSOA E A GERAÇÃO DE ORPHEU

O primeiro número da Revista Orpheu foi publicado no começo de 1915. Resultou da iniciativa de um grupo de jovens que ambicionavam introduzir o modernismo em Portugal e no Brasil. A equipa não era homogénea. Cada um se esforçava por entender e aceitar a própria individualidade. Nas páginas da revista, coexistiram simbolismo e decadentismo.
De um modo geral, as culturas desenvolvem-se em zonas de encruzilhadas, em pontos em que as influências se misturam e facilitam o germinar de ideias novas. Num País plantado no extremo ocidental da Europa, a inovação cultural era geralmente importada. Mário de Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso passaram temporadas em Paris. Ronald de Carvalho era brasileiro e Luís de Montalvor vivera no Brasil. Quanto a Pessoa, tinha crescido na África do Sul e estudado em Durban, onde o padrasto fora cônsul de Portugal. A cereja no bolo era figurada por Ângelo de Lima, poeta internado no Hospital Psiquiátrico de Rilhafoles desde 1900. Era outra forma de ser estrangeiro.
Curiosamente, António Ferro que, anos mais tarde, criaria laboriosamente a imagem do Estado Novo, aparece como editor da revista. Diz-se que ganhou o cargo porque era menor e, se o projecto conhecesse a insolvência, ele seria financeiramente inimputável.
Os dois números da Orpheu garantiram-lhe um lugar na história da literatura portuguesa do século XX mas, na altura, o sucesso mediu-se sobretudo pelo escândalo que a ousadia dos textos provocou.
No primeiro número, a contribuição de Pessoa consistiu no “drama estático” O Marinheiro e no Opiário e na Ode Triunfal, assinados por Álvaro de Campos. No número 2 aparecem a Chuva Oblíqua de Fernando Pessoa e a Ode Marítima de Álvaro de Campos.
O terceiro número não chegou a sair. O pai de Mário de Sá-Carneiro, sem o pretender e talvez sem o saber, era o principal financiador da Orpheu. Ao recusar enviar mais dinheiro para o filho, deu um golpe violento na cultura portuguesa.
A geração de Orpheu foi dizimada cedo. Mário de Sá-Carneiro suicidou-se em 1916. Amadeo e Santa-Rita morreram em 1918. Antes de morrer, Santa-Rita Pintor pediu à família que destruísse as suas obras. Infelizmente, foi obedecido. Sobreviveram poucas quadros.



Deixo aqui fragmentos da contribuição de Pessoa para o segundo número da Orpheu.


CHUVA OBLÍQUA (excerto)
Fernando Pessoa



Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos da árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei com quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse
desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvores, estrada a arder em
aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...




ODE MARÍTIMA (excerto)
Álvaro de Campos



Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.

Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?




A meu ver, ressalta destes versos uma estranha unidade que Pessoa talvez não desejasse, ao dar-lhes assinaturas diversas. Pode-se repartir o eu em dois, em quatro, ou em setenta, mas o Homem lá está! Máscaras e espelhos poderão, quanto muito, ajudar o poeta a conhecer-se melhor.

Referências:

Simões, João Gaspar. Em Fernando Pessoa, Ensaio Interpretativo da sua vida e da sua obra, Obra Poética de Fernando Pessoa, Círculo de Leitores, 1986.

Dicionário da Literatura. Direcção de Jacinto do Prado Coelho. Figueirinhas, Porto, 1992.

Wikipedia.

Gravuras: Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza Cardoso - Internet.

Também publicado em MILHAFRE

domingo, 21 de março de 2010

CRÓNICAS DO MAR


A bordo do Gil Eannes, 8 de Maio de 1970


Estamos fundeados em Virgin Rocks. Quando a névoa dispersa, chega a ver-se o quebrar das ondas no Manoleijo, um rochedo submerso que é referência comum em conversas de pescadores.

Ontem, ao fim da tarde, perdeu-se um bote. O nevoeiro não permitia a visibilidade para além de cinquenta metros. Por vezes, quando a neblina é densa, reflecte ou desvia o som, e os avisos roucos das buzinas dos navios parecem vir de direcções enganadoras. Um homem que vá por elas pode esgotar-se a remar para o inferno.

Durante perto de duas horas, estivemos grudados à fonia, acompanhando a evolução das buscas, uma vez que nos encontrávamos longe demais para participar nelas. Estava um homem sozinho num dóri, perdido no nevoeiro, e a noite aproximava-se.

As condições de navegabilidade desses botes de fundo chato são precárias e as possibilidades de orientação limitadas. As previsões meteorológicas eram desfavoráveis.

Quatro navios de pesca à linha encarregaram-se da pesquisa. Três dóris, tripulados por pescadores "maduros", arriaram também, que a falta de um companheiro pesa mais do que o medo da noite no mar.

As vozes que nos chegavam das pontes de comando dos navios distantes não vestiam matizes de emoção: soavam calmas e quase frias. Era o auto-domínio que o hábito de conviver com o perigo dava. As indicações, as ordens, o terrivelmente simples "nada ainda", soavam como uma eficiência mecânica enquanto esses homens se esforçavam por recuperar uma vida ameaçada. Ouviam-se também palavras de ânimo: que o rapaz era forte e bom remador, que se aguentava! E chegavam os pormenores: era um "verde" do ano passado, de Caxinas; o irmão acompanhara-o quase até ao fim da faina e deixara-o pouco antes do desaparecimento, quando ainda se não adivinhavam problemas.

Se um dóri está bem carregado de bacalhau, da borda à água vai menos de um palmo e a ondulação, mesmo com mar calmo, facilmente o galga. Um pescador tem de remar, ao mesmo tempo que, com o bartedouro, vai esgotando a água que entra. É fácil morrer nos bancos da Terra Nova.

É mais frequente ocorrerem desgraças com bom tempo do que com mau. Os homens facilitam, e mais se a pesca é boa. Tendem a ignorar o perigo e carregam os botes para além dos limites da prudência.

O dóri foi achado quando a noite começava a tingir de escuro o cinzento das águas. Hoje o pescador arriou outra vez, que o mar é generoso mas não perdoa a quem o teme.

domingo, 14 de março de 2010

MADRUGADA


Frescura,


namorada,


rir de luz,




pátria de pássaros,


barca,




solta no ar os versos do pão novo,


o marullhar de abril no ano todo,


dá lume à voz da nossa terra amada!
Fotos: Nu com jarros, Diego Rivera
Também publicado em O BAR DO OSSIAN

sexta-feira, 12 de março de 2010

O ENCONTRO

Nas terras de Angola, há noites sem lua em que a luminosidade preenche as almas até ao deslumbramento. É como se presenciássemos o nascer de estrelas e nos tornássemos menores. Há mais. Ouvem-se, ao longe, tambores. Pretendem comunicar com os espíritos. Talvez o não consigam, mas acercam de nós a ideia de infinito.

Numa noite assim, acampámos a meio da viagem entre a Omupanda e o Munhino. Antes de adormecer, entretive-me a olhar o céu. Lembrei-me do campo cheio de pirilampos, em Maio, na minha Ilfurt distante.

A dada altura, senti um incómodo vago. Parecia-me que faltava qualquer coisa nos desenhos do alto. Devia estar enganado. A verdade é que olhava poucas vezes o firmamento desde que Ilse casara.

Duas horas mais tarde, acordei com uma claridade estranha no cérebro. Não era luz forte: lembrava uma fogueira distante. Depois, o lume encolheu, como se alguém me andasse a espreitar os recantos da alma levando uma candeia com pouco azeite. Parava aqui e ali e emprestava alguma luz até a recordações esquecidas. Era como se tivesse deixado entrar um estranho na alma.

Fosse o que fosse, partira. Deixara um rastro de transgressão que eu não era capaz de definir nem de explicar. O que me afligia era que a intrusão viera acompanhada de uma sensação diluída mas identificável de prazer. Pareceu-me que ficara sem vontade de me opor a outra experiência igual.

Quis rezar um padre-nosso, mas não me lembrei das palavras. Tentei fazer o sinal da cruz, mas senti os braços presos.

Depois, reagi. Ordenei rapidamente os pensamentos, mesmo sem abrir os olhos.

Era católico e missionário. Evitava o mal. Procurava ser justo e perdoar aos que me ofendiam. Respeitava o povo que servia, mas não fazia concessões quanto aos caminhos que conduziam ao Senhor. Se Deus me levasse agora, colhia uma alma limpa.

Fortaleci com a oração. Logo a seguir, achei-me leve. O que entrara tinha saído.

Reflecti sobre o que se passara e concluí que fora apenas um sonho, embora o visitante parecesse ter deixado marca no meu espírito.


Em: O Dia em que Deus começou a desmontar o Mundo (a sair em breve).

quarta-feira, 3 de março de 2010

DESCALÇA VAI PARA A FONTE...


Apetitosa, ia Chissola a caminho da água.

Bamboleava-se em direcção à lagoa. Caminhava, mas parecia dançar. Movia os lábios sem libertar a voz: habituara-se a guardar as melodias na boca. Sobrava-lhe música no corpo e na alma.

Chissola era a primeira esposa do curandeiro Hende. Ia pelos trinta anos e nunca engravidara. Conservava o ventre liso e o peito rijo, como se tivesse cumprido na véspera os rituais da puberdade.

A noite fora de festa e as estrelas tinham cintilado ao ritmo dos tambores. Pena fora que o marido tivesse optado pela esteira de Nhama.

Enfim... Começava um novo dia.

A manhã estava bonita. Mais tarde, faria calor demais mas, por enquanto, o sol era filtrado pelas copas das árvores e uma aragem fresca confortava as gentes, os pássaros e a folhagem.

A dada altura, sentiu que lhe apalpavam as nádegas. Voltou-se e não viu ninguém. Continuou a andar. Instantes depois, dedos suaves insinuaram-se debaixo dos panos e acariciaram-lhe as coxas.

Olhou em redor. Avistou apenas o carreiro de chão batido, as árvores dispersas, a cerca de espinheiros das cubatas e, lá ao longe, uma dúzia de bois vigiados por um pequeno pastor. Compreendeu então o que se estava a passar.

- Dumba, seu grande malandro! Se não te portas bem, vou fazer queixa ao Hende!

Quis mostrar-se zangada, mas não foi capaz. O brilho dos dentes alvos pôs-lhe a alma a descoberto.

O diabo era fino. Percebeu que a tinha na mão.

Dumba-ia-munto era o pequeno diabo doméstico do quimbanda Hende. Fora criado para lhe aumentar o poder.

Não se considerava um servo desleal, mas conhecia poucas regras. Não admirava. A sua nova existência contava-se por meses.

Semanas depois, Chissola, ao regressar da lavra, viu deslocar-se pausadamente, ao lado do carreiro por onde seguia, um pénis enorme que quase roçava o chão. De início sobressaltou-se, mas logo desatou a rir. Era Dumba, com certeza... Agora, até havia porras andantes... e de que tamanho...

Não resistiu a meter-se com ele. Indagou:

- A viagem é para longe, companheiro?

- Pode ser bem curta, se quiseres... É para o sítio que sabes...

- Vê lá se tropeças no capim...

- Só se me distrair a olhar para ti...

- Olha que o meu homem é bem capaz de to cortar bem rente...

- Era preciso que lhe contasses, porque eu não lho mostro... e uma rapariga bonita como tu não ia fazer uma maldade dessas...


Modificado de O Dia em que Deus começou a desmontar o Mundo ( a publicar em breve).