DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

            
                              AMÍLCAR CABRAL

                                 XLVII

          A COLABORAÇÃO INTERNACIONAL E O ARMAMENTO
                               
                              
                               
Os exércitos regulares normalizam o seu armamento de forma a utilizarem sempre os mesmos tipos de munição e a facilitarem a trocas de peças. O PAIGC tinha de aceitar o que lhe ofereciam. Os seus guerrilheiros utilizaram, por exemplo oito tipos diferentes de pistolas-metralhadoras. Entre elas, a PPSH-41, de calibre 7,62 e com tambor para 71 munições, fornecida pela União Soviética, ficou conhecida como "costureirinha", devido ao som que produzia ao disparar.
Marrocos e a Checoslováquia foram os primeiros países a fornecer material de guerra ao PAIGC. Com o decorrer do tempo, as ajudas diversificaram-se. Acabou por ser a União Soviética quem disponibilizou o apoio mais valioso.
O PAIGC instalou um depósito de material de guerra na República da Guiné, mas nunca dispôs de grandes reservas de armamento. As armas e as munições chegavam quando calhava. O reabastecimento era irregular. Ocasionalmente, os combatentes puderam contar apenas com as munições contidas nos carregadores das armas individuais.
Era preciso fardamento. O Egito ofereceu uniformes às primeiras unidades de guerrilha.
Cuba contribuiu com instrutores de artilharia que deram formação num campo de treino militar instalado pelo PAIGC em Sili, na zona de Biambe.
Em 1973, já perto do fim do conflito, um relatório do Comité de Libertação da OUA, enumerava as necessidades de material de guerra do PAIGC para o ano seguinte. A lista incluía artilharia de longo alcance, material de transmissões, mísseis terra-ar portáteis, viaturas blindadas, vedetas rápidas, barcos de borracha para os rios, minas aquáticas e navios de longo curso para ligações com as ilhas de Cabo Verde. Não terá chegado tudo, mas o preço teria de ser elevado. Não poderia seria suportado pela soma dos orçamentos anuais (nos dias de hoje) do conjunto dos estados da Guiné e de Cabo Verde. Havia quem investisse nas independências.
Entre o armamento ao dispor do PAIGC existiam diversas armas antiaéreas, foguetões, metralhadoras pesadas, espingardas Kalashnikov de calibre 7,62 mm, lança-rockets, canhões sem recuo, morteiros, viaturas anfíbias, carros de combate e uma grande variedade de minas (antipessoais, anticarro e aquáticas).
O foguetão GRAD calibre 122 era uma variante portátil do Katyusha, passível de ser lançado por um único tubo. O lançador de foguetes múltiplos Katyusha foi utilizada pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. Era disparado a partir de multilançadores transportados por camiões ou tratores. Foi apelidado na época de "Órgão de Estaline" pelas tropas alemãs. A sua precisão nunca foi grande. Eram necessários muitos foguetes para destruir um objetivo. No entanto, os disparos sucessivos assustavam o inimigo. O GRAD foi o míssil mais utilizado nos ataques por foguetões na Guiné. O seu alcance variava entre os 10.000 e os 20.000 metros.
 Os mísseis terra-ar SAM-7 Strella tinham chegado nesse ano. Abateram vários aviões e helicópteros portugueses, precipitando o final dos combates, a demissão de Spínola e a revolução de Lisboa.
O PAIGC não chegou a dispor de aviação eficaz. Estiveram na União Soviética, a frequentar cursos de pilotagem, cerca de trinta militares seus.






quinta-feira, 30 de maio de 2013

                                       
                                       AMÍLCAR CABRAL

                              XLVI

            MOVIMENTAÇÃO DAS GENTES




O censo português de 1970 contou 487.448 habitantes na Guiné-Bissau. Eram menos 32 mil almas que dez anos atrás.
Durante a década não ocorreram grandes epidemias no território. Não consta que a guerra tenha provocado razias de tamanha proporção entre os civis. Assim, a redução populacional traduz, por um lado, a impossibilidade de os censores trabalharem nas zonas controladas pelos guerrilheiros e, por outro, a fuga de muita gente para os países limítrofes. 
    A região senegalesa de Casamanse acolheu a maioria dos refugiados de guerra. O seu número cresceu de cerca de 45 mil em 1965 para perto de 82 mil em 1971. Ao mesmo tempo, os centros urbanos viram o número dos seus habitantes subir significativamente. As pessoas fugiam das zonas de conflito.
O movimento de abandono das áreas rurais prejudicava a guerrilha, que via reduzir o escudo humano e o apoio alimentar. Cabral deu instruções aos seus homens para tentarem impedir a fuga das populações das regiões controladas, fustigadas pelos bombardeamentos. Proibiu a saída de gado e impôs outras medidas coercivas.
A propaganda desempenha um papel importante nas guerras modernas. Em abril de 1965, Amílcar Cabral anunciava publicamente em Londres que o seu partido controlava cerca de 350 mil guineenses. Representariam mais de setenta por cento do total da população. No entanto, mesmo sabendo-se que nem todos os cidadãos são eleitores, o número oficial de inscritos no interior do território para votarem, em 1972, para a primeira Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau, foi de 83 mil. Estes dados são do PAIGC.
A divergência é clara. Resultará, em boa parte, da guerra dos números devida às necessidades da propaganda, com a tendência para o exagero que se verifica, por exemplo, na estimativa das baixas do inimigo. 
      Poderão ser apontadas mais causas para a discrepância numérica. Uma delas será a definição de “áreas controladas”. Em termos militares, o controlo é muitas vezes relativo. Lembremos o mapa colorido traçado no tempo de Spínola para representar o território guineense. Existiam as áreas azuis, sob domínio português, onde crescia o número de “aldeias estratégicas” que contribuía para a concentração das populações. As áreas controladas pelo “inimigo” estavam representadas a vermelho e eram de bombardeamento livre. Entre umas e outras, havia extensas regiões pintadas de amarelo, que nenhuma das forças em luta controlava.
   Com altos e baixos, a situação foi-se modificando progressivamente a favor da revolução. Nas áreas “libertadas”, os embriões de governação autónoma começaram a desenvolver-se entre 1965 e 1966.



terça-feira, 28 de maio de 2013


                      O EURO NÃO NOS BASTA





Defendi algumas vezes neste espaço a oportunidade de regressar parcialmente à nossa moeda nacional sem abandonar o euro. Quanto mais penso no assunto, mais me convenço de ter razão.
Espreita no horizonte a probabilidade de termos de sair da zona euro num futuro mais ou menos próximo. Essa decisão, que nos poderá vir a ser imposta, implicará danos consideráveis à nossa frágil economia, com uma inflação que rondaria os trinta por cento no espaço de um ano. Os números não são meus. Foram adiantados há semanas, na televisão, por Pedro Passos Coelho.
Volto a propor a emissão anual uma moeda paralela, datada e válida por períodos de três anos, num montante idêntico ao défice público calculado para o ano em causa. Isso implicaria substituir os empréstimos externos, que cada ano nos fazem mais dependentes de terceiros e levam a um serviço de dívida provavelmente impossível de honrar, pelo recurso coercivo ao crédito interno. Parte dos pagamentos do Estado Português – por exemplo, os subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos e pensionistas e uma fração dos subsídios de desemprego seria paga na moeda nova, que até poderia ter até o nome do velho escudo.
Obrigando-se o Estado a convertê-lo em euros a um juro equivalente à inflação ao fim de três anos, as finanças públicas teriam conseguido dinheiro emprestado a juro zero. O mercado encarregar-se-ia de restabelecer o equilíbrio financeiro. Quem não quisesse ou não pudesse manter em seu poder os títulos de dívida pública até à “maturação” poderia transacioná-los. Com a garantia do Estado Português, dificilmente a desvalorização da nova moeda chegaria aos 5 ou 6 por cento, o equivalente aos juros apetecíveis de uma obrigação a três anos com retorno assegurado.
Poderei não ter razão, mas gostaria que alguém me desse ouvidos. Há quem diga que estamos a caminhar para o abismo. Parece haver solução. É parar, de imediato, de pedir dinheiro emprestado lá fora. Já pensaram que, poucos meses depois de pormos em prática esta medida, poderíamos acenar à troika com lenços brancos?
Seria possível fazer às indispensáveis reformas do Estado a um ritmo menos violento. A nossa pesada carga fiscal poderia começar a ser aligeirada a partir do orçamento seguinte. Deixaria de ser fantasia esperar a retoma da economia e a consequente redução do desemprego.
É mais que tempo de recuperamos a nossa soberania plena. 



                   AMÍLCAR CABRAL

                           XLV

 MOVIMENTOS NACIONALISTAS DA GUINÉ E DE CABO VERDE

               A CONQUISTA DA LIDERANÇA




É comprida a lista dos movimentos, uniões e partidos criados para promover as independências da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. A multiplicidade ilustra a euforia de uma época em que a epidemia das nacionalidades atingiu os melhores intelectuais africanos. Havia muita gente com ambição de vir a ocupar lugares de relevo nas terras de origem, na região equatorial da África. 
O tempo pôs à prova todas estas organizações. Umas tantas desapareceram. Outras adaptaram-se, associaram-se e sobreviveram. A História fez a seleção. A ajudar a tecer a História esteve cedo a mão de Amílcar Cabral. Conversou, persuadiu, conspirou, deu passos adiante e atrás, sem nunca perder de vista os objetivos que perseguia.
Tentaremos pôr alguma ordem nesse enredo complexo. Já referimos algumas organizações independentistas de tendência pan-africana, como o CEA, o MDCP, o Movimento Unitário Anticolonial (MAC) e a Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas (FRAIN). Passamos a enumerar os movimentos, frentes e partidos que pretendiam a independência de Cabo Verde e da Guiné. Poderão faltar alguns na nossa lista.


     BNGB – Bloco dos Nativos da Guiné-Bissau, 1965.
     BDG – Bloco Democrático da Guiné, 1965.
     FUL – Frente Unida de Libertação, 1962.
   FLING – Frente de Libertação para a Independência da Guiné. Chefiada por Henry Labery, foi fundada em Dakar em 1963 e resultou da aliança da UPG com o MLG (Dakar), UNPG, MLG (Bissau), RDGA e UPLG.
     FNLG – Frente Nacional de Libertação da Guiné, liderada por Ibraima Djaló.
     MLICV – Movimento de Libertação das Ilhas de Cabo Verde.
     MLG (Bissau) – Movimento de Libertação da Guiné.
     MLG (Dakar), chefiado por François Mendy.      
     MLGCV – Movimento de Libertação da Guiné e Ilhas de Cabo Verde.
    PAI – Partido Africano para a Independência.
    PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Em Conakry, o PAI acrescentou duas letras à sua sigla para se diferenciar doutro partido senegalês com o mesmo nome e passou a chamar-se PAIGC.  
     PDG – Partido Democrático da Guiné Portuguesa, dos mandingas de Farim.  
     O PELUNDENSE, dos manjacos de Pelundo.
  RDAG - Reunião Democrática Africana da Guiné (provavelmente uma secção da RDQ).
     UDC – União Democrática Cabo Verdiana, fundada em 1959.
     UNGP – União dos Naturais da Guiné Portuguesa, fundada em 1963.
     UPG – União das Populações da Guiné, fundado em 1958.
     ULPG – União Popular de Libertação da Guiné, fundada em 1963.
     UPICV – União das Populações das Ilhas de Cabo Verde.
     URGP - Union des Ressortissants de Guinée Portugaise.

Eram muitas as organizações e demasiados os protagonistas. Houve abraços, separações, intrigas, calúnias, convergências e desentendimentos.
     Por volta de 1961, não parecia claro para muitos o rumo a dar a uma Guiné-Bissau liberta do domínio português. O território do país estava encostado ao Senegal e à Guiné-Conakry. Havia, naturalmente, os partidários da união ao Senegal, como o MLG (Dakar), maioritariamente constituída por manjacos, e os que se pretendiam juntar a Conakry, como o MLGCV. A UNGP, liderada por Benjamim Pinto Bull, defendia a autonomia em ligação com Portugal. Em 1963, os seus representantes seriam expulsos da conferência constitutiva da Organização da Unidade Africana, acusados de traírem a África.       
       Algumas dessas frentes e movimentos foram fundados pelo próprio Cabral. Aconteceu assim com o MLGCV (Movimento de Libertação da Guiné e Ilhas de Cabo Verde), criado em 1959, em Dakar, a partir do MLG. Destinava-se a marcar lugar face a outras organizações existentes e a disputar os apoios internacionais.
Oficialmente, o PAIGC foi fundado em Bissau, em 1956. A data, os intervenientes e as circunstâncias são discutíveis. Pouco importa. As nações precisam de mitos e os mitos não se compadecem com imprecisões de datas.
Seria o MLG de Dakar o primeiro a desencadear a luta armada, no norte da Guiné, a 17 de julho de 1961.
Após uma reunião em Dakar com Rafael Barbosa, Amílcar Cabral redigiu o Programa e os Estatutos do PAIGC. Simultaneamente, Cabral assumiu a direção do MLGCV, com estruturas tanto em Dakar como em Bissau. O MLGCV, que para alguns continuava a ser apenas MLG, era necessário, uma vez que o PAIGC não estava ainda implantado no território guineense.
Voltaram a acentuar-se as divergências entre cabo-verdianos e guineenses no seio do MLG–MLGCV. Ocorreu uma cisão e foram feitas denúncias à PIDE. Vários militantes foram presos e o MLG ficou debilitado. O mal de uns é o bem de outros. A implantação do PAIGC ficou facilitada. O partido desenvolveu-se, primeiro em Bissau e depois no interior, em boa parte devido ao trabalho clandestino de Rafael Barbosa. Entre novembro de 1960 e março de 1962, Barbosa fez distribuir no interior do território milhares de panfletos e aliciou cerca de meio milhar de jovens para a escola de quadros que o PAIGC abrira em Conakry.
Amílcar Cabral tinha uma noção clara da importância da unidade para a luta de independência e multiplicou os esforços destinados a consegui-la. Preocupava-o sobremaneira a existência de organizações étnicas. Ouçamo-lo:
       A maior asneira que se podia fazer na nossa terra seria criar na Guiné partidos ou movimentos na base de etnias, o que era um meio bastante bom, não só para o inimigo nos dividir ainda mais, durante a luta, mas também para garantir a sua vitória; a destruição da nossa independência, depois da luta, como os camaradas têm visto em alguns países africanos.
Muitas iniciativas tomadas no sentido da unidade falharam. Os movimentos sediados em Dakar ainda estavam mais divididos que os que se tinham instalado em Conakry.
Em marco de 1961, Cabral propôs a realização em Dakar de uma conferência das organizações nacionalistas da Guiné e de Cabo Verde. Dois meses depois, foi possível reunir uma comissão preparatória da conferência. Estiveram representados, além do PAIGC, o MLGC (Dakar), o MLGCV ( Conakry) e o MLGCV (Zinguinchor). A conferência teve lugar entre 12 e 14 de julho. Foi nela criada a Frente Unida de Libertação (FUL), que pouco tempo iria durar. Sobre ela, escreveria mais tarde Amílcar Cabral:
        Quando o nosso Partido entrou em contacto com o exterior do país, a partir de 1960, sentiu que havia gente da nossa terra, quer da Guiné, quer de Cabo Verde, que tinha criado os chamados movimentos fora da terra. 0 nosso Partido teve que fazer uma concessão, teve que dar um passo atrás na sua ideia de só um Partido e nada de frente, para ver se juntava aquela gente, para lutar pela independência da Guiné e Cabo Verde. Por isso mesmo é que, por um lado, fizemos uma chamada Frente com o Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde que estava em Conakry mas que os nossos próprios camaradas criaram já ligados ao PAIGC, e com o Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde que estava em Ziguinchor. Resolvemos lançar um apelo para a unidade de todos os Movimentos de Libertação da Guiné e Cabo Verde. O PAIGC chamou todos aqueles que diziam que eram movimentos para nos unirmos. Fizemos uma conferência em Dakar com o então Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde, que estava em Dakar e que englobava tanto guineenses como cabo-verdianos, no qual estavam fulanos que vocês conhecem; não vale a pena torná-los importantes citando os seus nomes aqui. Para essa conferência também foi esse movimento de Ziguinchor e o Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde que estava em Conakry, assim como o PAIGC representado por alguns dos seus membros. Tudo isso foi fundamentalmente uma concessão da nossa parte, uma tática, para vermos o que é que aquela gente queria de fato, qual era a sua intenção, até que ponto estavam engajados na luta a sério e se de fato queriam lutar ou se queriam apenas arranjar lugares. Praticamente, nós é que fizemos a conferência toda. Levamos documentos bem preparados, e eles, encarregados de preparar a conferência, nem sequer tinham ainda feito o programa. A conferência foi feita de fato, com a assistência das autoridades senegalesas, com a assistência do camarada Marcelino dos Santos, representando a CONCP, e de outras entidades. O ponto de vista do nosso Partido foi defendido com força pelos seus representantes, apoiados pelos movimentos de libertação da Guiné e Cabo Verde de Conakry e Ziguinchor. Claro que o objetivo dos de Dakar não era fazer a unidade, era o de acabar com o PAIGC; essa é que era a sua ideia e, quando viram que não era possível, aceitaram todas as resoluções apresentadas na Conferência. Mas logo a seguir começaram a sabotar.
Os países vizinhos e a OUA exerceram as suas influências procurando a unidade. Os instrumentos mais poderosos de pressão eram de índole financeira. Foi-se criando consenso em redor da ideia de fazer depender a ajuda internacional dos resultados obtidos no terreno. Nesse sentido, foi criada uma missão de “Bons Ofícios”, integrada por representantes da República da Guiné, Senegal, Argélia, Congo-Leopoldville e Nigéria. Deveria analisar a situação de todos os movimentos de libertação das colónias portuguesas e aconselhar os que deveriam ser apoiados.
A missão de “Bons Ofícios” virou-se primeiro para Angola e considerou a FNLA o único movimento que merecia ajuda. O MPLA ficaria de fora até 1968.
Em Julho de 1963, ao saber da aproximação daquela missão, Amílcar Cabral mandou abrir nova frente de luta no norte do território. Serviria para combater, fora da Guiné, a influência da rival FLING. Esta frente também não perdeu tempo. Valia tudo, na luta pelo dinheiro vindo de fora. Apressou-se a divulgar comunicados em que reivindicava uma série de ataques às forças coloniais. Felizmente para os militares portugueses, a maioria dessas ações armadas ocorreu apenas no papel.
O PAIGC estava em boas condições para ser reconhecido. Era ele quem fazia quase todo o esforço de guerra contra Portugal. No entanto, o conflito da Guiné interessava aos países limítrofes. Enquanto o Senegal apoiava a FLING, a Guiné-Conacry protegia o PAIGC. O conselho de ministros da OUA acabou por não reconhecer qualquer das organizações.
Amílcar Cabral desistiu de vez da criação de frentes e fez o PAIGC seguir o próprio percurso. A opção revelou-se adequada. A unidade possível (e suficiente) realizou-se através da luta armada. Todas as outras organizações ficaram pelo caminho. Apenas em 1965, quando a OUA enviou uma missão militar em visita às zonas controladas pelos guerrilheiros no interior do território guineense, o PAIGC receberia o apoio formal das nações de África. 

segunda-feira, 27 de maio de 2013

  
                      AMÍLCAR CABRAL

                               XLIV

          OS CAMINHOS DO MUNDO                       

Em 1959, Agostinho Neto estava a terminar, em Lisboa, o curso de Medicina. Mário de Andrade, Lúcio Lara, Viriato da Cruz, Azancourt de Menezes e outros, tinham abandonado já o território português para se dedicarem a tempo inteiro às causas das independências dos seus países, Amílcar Cabral decidiu finalmente deixar a capital portuguesa. Ainda assim, foi adiando a saída definitiva.
Durante o ano de 59, Cabral viajou muito. Em abril, encontrou-se em Frankfurt com Lúcio Lara e Viriato da Cruz. De passagem por Paris, conferenciou com Marcelino dos Santos e Guilherme do Espírito Santo, sobre a necessidade de avançar com medidas concretas contra o colonialismo português.
O Movimento Unitário Anticolonial (MAC), fundado em 1958, procurava alargar o seu raio de ação. Cedo, porém, nasceram divergências no seu interior. Era tempo de se criarem, em cada colónia, movimentos de cariz nacional. Ao MAC caberia, quanto muito, um papel de coordenação.
Em agosto, Amílcar Cabral deslocou-se a Luanda com o objetivo de comunicar às organizações clandestinas angolanas a oferta argelina para preparar militarmente um pequeno grupo de militantes. A PIDE desencadeara uma vaga de prisões e Cabral ficou sem interlocutores.
No caminho de regresso, visitou os dois Congos, o Ghana, o Senegal e a República da Guiné-Conakry. O massacre de Pindjiguiti ocorreu no começo de agosto. Em setembro, Cabral regressou a Bissau e contactou a o Movimento de Libertação da Guiné (MLG), única organização nacionalista a funcionar então na colónia. A integração progressiva de cabo-verdianos nesse movimento possibilitou a sua evolução para um projeto federalista, com a consequente mudança de nome. Passou a chamar-se MLGC.
O PAI (depois PAIGC) nasceria de facto em Bissau, num fim de semana de setembro de 1959. Muitos dos seus elementos militavam, até então, no MLGC.
O PAI começou por ser um partido de fundadores. Cabral acreditava na necessidade de criar uma organização clandestina pequena e coesa, imune tanto quanto possível à admissão de gente mal preparada e de possíveis traidores. O MGL não se extinguiu logo. Foram militantes seus que facilitaram a instalação de Amílcar Cabral em Conakry, em maio de 1960. Seguiu-se a criação da Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde (FLGC), destinada a unificar os movimentos nacionalistas da Guiné. A Frente constituiu um recurso temporário. Acabaria por ser dissolvida. O objetivo de Cabral era a união dos revolucionários da Guiné e de Cabo Verde numa única instituição com um programa claro, capaz de prosseguir melhor os objetivos comuns.
Em janeiro de 1960, Amílcar Cabral deixou Lisboa de vez. Encontrou-se em Paris com Mário de Andrade, Viriato da Cruz e Marcelino dos Santos.
Ainda nesse mês, participou na II Conferência dos Povos Africanos, em Tunes. Foi como delegado do MAC, mas aproveitou a reunião com os outros delegados das colónias portuguesas, entre os quais se contavam Holden Roberto (que nunca teve a simpatia de Cabral), Lúcio Lara, Hugo Menezes  e Viriato da Cruz, para fundar a Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas (FRAIN), que substituía o MAC e dava voz, no estrangeiro, à luta dos povos sob o domínio de Lisboa. Apareceram então, pela primeira vez, documentos com as siglas PAI e MPLA. O protagonismo dos movimentos de independência nacional ia começar.
A Conferência permitiu aos líderes nacionalistas de Angola e da Guiné conhecer outros dirigentes africanos e contactar organizações internacionais associadas à União Soviética, à China e aos EUA. Tornava-se claro que a libertação das colónias ia depender essencialmente da diplomacia.
Em Março do mesmo ano, na qualidade de presidente da FRAIN, Cabral fez a primeira conferência pública de um dirigente revolucionário das colónias portuguesas.
Conheceu então o escritor e jornalista inglês Basil Davidson que, juntamente João Carcíolo Cabral, da Goan League, lhe facilitou a publicação da brochura Facts about Colonialism. Cabral assumia-se como dirigente de um movimento nacionalista, mas ainda assinava com um pseudónimo.
Em abril, Maria Helena e a filha chegam a Paris. A família iria residir durante vários meses em casa de Mário Pinto de Andrade. No entanto, a fase europeia da vida de Amílcar Cabral estava a chegar ao fim. Para fazer uma revolução africana, era preciso estar em África. Em maio, a direção do PAI instalou-se em Conakry. 


domingo, 26 de maio de 2013


                                 AMÍLCAR CABRAL

                                          XLIII
                                            
                EVOLUÇÃO POLÍTICA INTERNACIONAL
                                 (DÉCADA DE 40)


Em 1941, Franklin Roosevelt e Winston Churchill encontraram-se  num navio de guerra, na costa da Terra Nova, e estabeleceram alguns acordos. Deles fazia parte o compromisso das duas nações respeitarem os direitos dos povos colonizados a escolherem formas próprias de governo. Churchill saberia que estava a aceitar o fim do Império Britânico.
O milenar Império Turco caíra no escaldo da I Grande Guerra. Era a vez de a Inglaterra abandonar as várias possessões ultramarinas que detinha há séculos. Havia uma diferença abismal entre os dois processos: a Turquia tinha perdido a sua guerra, enquanto o Reino Unido alinharia ao lado dos vencedores. No final do conflito, a Alemanha foi batida, mas a Inglaterra ficou reduzida, de forma provavelmente definitiva, a um estatuto de potência mediana.
A queda do Império Britânico levou a uma reação em cadeia. Franceses, holandeses, e belgas foram sendo forçados a libertar as colónias. Era a embriaguez das independências. Portugal resistiu mais tempo, mas teve de aceitar o mesmo destino.
O espaço deixado vago foi rapidamente preenchido. A Rússia construiu o seu próprio império, que se iria desmoronar em poucas décadas. Os Estados Unidos da América prescindiram da questão das soberanias. Dominam atualmente o mundo, controlando as economias. Veem porém despertar no oriente o gigante chinês, bem mais tradicional do que a América no que concerne ao exercício de formas de poder.
A partir do fim da guerra, multiplicaram-se os congressos e as declarações oficiais em favor da libertação dos povos colonizados. Os movimentos pan-africanistas empenharam-se em campanhas internacionais visando a emancipação dos povos de África. Logo em abril de 1945, a Federação Pan-Africana organizou um grande congresso em Londres. Dele saiu um “manifesto” dirigido à Conferência da Sociedade das Nações, então reunida em S. Francisco. Portugal e a Espanha eram condenados pelos seus regimes autoritários e pela inflexibilidade das suas políticas africanas.
O momento revelou-se oportuno. Da Conferência nasceu a Carta das Nações Unidas, a organização que vinha substituir a ineficaz Sociedade das Nações. A ONU começou, de imediato, a pressionar os países colonizadores para que facilitassem a independência das colónias. Uma mudança pontual na Carta acabada de publicar aconselhava que se desenvolvessem “relações amigáveis baseadas no princípio da igualdade de direitos dos povos e do direito de disporem de si próprios”.
No outono de 1945 reuniu em Manchester a V Conferência Pan-Africana. A independência das colónias europeias em África foi sonoramente reclamada por representantes de variados estados africanos. No ano seguinte, a Assembleia-geral das Nações Unidas apelou às potências colonizadoras no sentido de promoverem a criação de instituições políticas livres nos territórios que administravam, de forma a possibilitarem a evolução progressiva para governos autónomos.
Os convites às independências eram claros. Igualmente clara resulta a ideia de que partiram essencialmente de fora para dentro. A nova ordem mundial punha de lado os velhos senhores da África e da Ásia. Os nacionalismos desenvolveram-se ou, pelo menos, estruturaram-se. As comunicações tinham-se tornado fáceis e a informação circulava como nunca, na história da humanidade. Enquanto os militares africanos e asiáticos que se tinham batido na Europa regressavam às suas terras, crescia o número de estudantes africanos nas universidades europeias.
Os países mais desenvolvidos dispunham também de elites coloniais mais esclarecidas. Nasceu um grande número de organizações políticas nacionalistas nas colónias inglesas e francesas. Ainda em 1945, foi fundado o Secretariado Nacional da África Ocidental (SNAO), liderado por Kwame Nkrumah. Tinha por missão coordenar os diversos movimentos nacionalistas da região. No ano seguinte, nasceu em Bamako (Mali) outra organização pan-africana, apoiada pelo Partido Comunista Francês. Intitulava-se Rassemblement Démocratique Africaine (RDA), e pretendia enquadrar várias organizações independentistas francófonas.
A Organização das Nações Unidas esteve sempre na linha dianteira de combate ao colonialismo. Em 1948, aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que reconhecia aos povos colonizados o direito à autodeterminação.



sábado, 25 de maio de 2013


                      AMÍLCAR CABRAL

                              XLII

                      REGRESSO A LISBOA


Entre 1955 e 1959, Cabral voltou a ser mais engenheiro do que político. Os contactos que mantinha com professores do ISA e com antigos colegas asseguravam-lhe ocupações temporárias em Lisboa. Teve ainda oportunidade de se ocupar de missões agrárias ao serviço de grandes companhias angolanas. Durante este período, trabalhou para a Sociedade Agrícola do Cassequel, para a Companhia Angolana de Agricultura e para as fazendas Tentativa, São Francisco e Nhia. Deslocou-se também pela Europa, para visitar centros de produção de açúcar de beterraba. Foi aproveitando as viagens para estreitar os antigos contactos com os líderes nacionalistas das colónias portuguesas que tinham deixado o país.
Amílcar e Maria Helena viviam agora num bom apartamento da Avenida Infante Santo. As dificuldades económicas dos tempos de estudo tinham ficado para trás.
    Muitas organizações políticas fazem gala de apresentar uma data precisa de fundação, mesmo quando os seus trajetos se desenrolaram de forma progressiva e até os nomes adotados se foram modificando ao longo do tempo. Na versão oficial, o PAIGC terá sido fundado em 1956, em Bissau, por Amílcar Cabral, Aristides Pereira, Júlio de Almeida, Elisée Turpin, Fernando Fortes e Luís Cabral. Não terá sido assim. Julião Soares, autor de Amílcar Cabral - vida e Morte de um Revolucionário Africano, afirma que Cabral não  esteve nesse ano em Bissau. Certo é que o PAI só ganharia o GC e a bandeira em Dakar, em outubro de 1960.
Enquanto residiu na capital portuguesa, Cabral foi sempre prudente na sua atividade revolucionária. Ao contrário de alguns dos seus companheiros de estrada, como Neto, o líder do PAIGC nunca foi incomodado a sério pela PIDE. Era um homem culto, inteligente, firme e cuidadoso. Estaria mais talhado, como Léopold Senghor, para chegar ao poder pelo voto e não pelas armas. Se assim foi, o destino trocou-lhe as voltas. A História impôs-lhe outro caminho.
No final de 1959, Amílcar Cabral almoçou num restaurante de Setúbal com Ário de Azevedo, seu professor e amigo, que lhe propôs um novo emprego. Desta vez, a resposta foi negativa. Amílcar não voltaria a trabalhar em África. Resolvera, finalmente, dar um rumo diferente à sua vida. A independência da Guiné-Conakri, declarada no ano anterior, marcara-o profundamente. Passara a haver condições para iniciar o processo que iria pôr fim ao colonialismo português. Era tempo de acordar a Guiné-Bissau. O PAIGC esperava por ele.
Cabral nascera na Guiné e era filho de cabo-verdianos. Não havia ninguém tão bem preparado como ele para assumir o comando dos povos da Guiné e Cabo Verde na luta revolucionária. Escreveu Agostinho Neto: Já não sou o que espera. Sou aquele por quem se espera. O verso poderia aplicar-se a Amílcar Cabral.
Por essa altura, o nacionalismo negro era essencialmente pan-africano. Ocorreram em África várias tentativas de uniões de jovens estados. Dessas experiências, ficou apenas a Tanzânia.
 Não existindo condições para a luta de guerrilha nas ilhas do arquipélago cabo-verdiano, Amílcar Cabral desencadeou a guerra de libertação nas selvas da Guiné então portuguesa.
                  


quinta-feira, 23 de maio de 2013



               AMÍLCAR CABRAL

                       XLI

                 A ADJACÊNCIA


No final do século XIX, Cabo Verde dispunha de instrumentos culturais superiores aos das restantes possessões ultramarinas portuguesas. O Seminário-liceu de S. Nicolau tinha uma frequência apreciável. Funcionavam diversas associações recreativas e existia uma imprensa virada para os problemas regionais. Tinha sido criada uma elite intelectual que se sentia diferente do conjunto dos cidadãos das outras colónias portuguesas.
O projeto da adjacência, que advogava para Cabo Verde um estatuto semelhante aos dos Açores e da Madeira foi defendido, com intermitências, por diversos pensadores do arquipélago. Se, de vez em quando, sobretudo por altura das secas, se levantavam vozes a defender a independência, pouco eco despertavam numa opinião pública inclinada a lutar pela autonomia administrativa e económica dentro do império português. Houve quem defendesse a ideia de que, em Cabo Verde, a mestiçagem atenuava a intensidade dos conflitos entre colonos e colonizadores
Não existia, em Cabo Verde, uma tradição de pura crítica anticolonial. A literatura do começo do século XX ligava frequentemente as noções de “nativismo” e de “adjacência”. Nativismo era um processo de busca de individualidade da terra-mãe. Muitos cabo-verdianos achavam que tinham duas pátrias. Uma vinha do nascimento, enquanto a outra era fabricada na escola pela aprendizagem da língua e da cultura portuguesas.
Em 1937, o governo português fez sair duas leis que iriam ter consequências desastrosas para as teses da portugalidade repartida por vários continentes. Uma impedia o acesso à oficialidade das Forças Armadas Portuguesas aos naturais das colónias. Outra proibia o casamento de oficiais portugueses com raparigas nascidas no Ultramar. Nove anos mais tarde, foi publicado um decreto-lei que reforçava os privilégios dos funcionários públicos de raça branca. Os negros e mestiços não podiam ganhar tanto como os seus colegas de pele clara e deixavam de ter acesso aos lugares de chefia. A lei aplicava-se a todos os territórios sob administração portuguesa mas era particularmente lesiva dos interesses doa quadros cabo-verdianos. Seria revogada cinco anos depois. A revisão constitucional de 1951 mudou o nome às colónias, que passaram a chamar-se “províncias ultramarinas”. A cosmética valeu de pouco. Os ventos da independência tinham já começado a soprar.
É provável que até perto do final da década de 50, Amílcar Cabral, como outros intelectuais africanos, tenha tido de lutar consigo mesmo para se livrar do sentimento de pertença a Portugal que lhe foi inculcado durante a aprendizagem escolar.
       Curiosamente, quase trinta anos após a independência, a questão da adjacência continua a suscitar discussões inflamadas na República de Cabo Verde. 


                   AMÍLCAR CABRAL

                             XL

         ENGENHEIRO NA GUINÉ



                              Amílcar e Maria Helena em Pessubé

Amílcar Cabral terminou o curso em 1950. Para obter a licenciatura, estagiou em Cuba, no Alentejo, em 1951 e princípio de 1952. O relatório final daquele estágio tratava da erosão dos solos e obteve uma classificação elevada. Depois, Amílcar escolheu a Guiné para trabalhar.
Não são conhecidas as razões que o chamaram para lá. Certo é que foi contratado pelo Ministério do Ultramar como diretor-adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais e diretor da Granja Experimental de Pessubé. O facto de um recém-licenciado se estrear logo como diretor faz presumir que não abundavam os engenheiros agrónomos na Guiné portuguesa.
Pessubé situava-se nos arredores de Bissau. A capital da Guiné era uma pequena cidade dividida em duas zonas. No centro, estava Bissau Velho, a cidade colonial, a terra dos brancos, onde ficava o Forte da Amura, o porto de Pindjiguiti e a Avenida da República, que agora tem o nome de Avenida Amílcar Cabral. Localizava-se ali a maioria das casas comerciais portuguesas, como a Casa Gouveia, sucursal da CUF, o estabelecimento Álvaro Camacho e a Sociedade Comercial Ultramarina. Abundavam os pequenos comércios pertencentes a libaneses. Este centro urbano era envolvido pela cidade indígena, habitada maioritariamente por negros da etnia papel.
       Amílcar Cabral chegou a Bissau em setembro de 1952. A esposa juntou-se-lhe dois meses depois. O casal ocupou a moradia existente dentro do espaço da Granja Experimental e destinado ao diretor de serviço.
A granja de Pessubé fornecia vegetais às autoridades administrativas e era utilizada como zona de piqueniques. Cabral procurou transformá-la numa unidade de investigação agrária suscetível de ajudar os agricultores guineenses a melhorar os seus métodos de produção.
Enquanto estudava em Lisboa, Amílcar auxiliara pontualmente a família, à medida das suas escassas possibilidades. Ajudou, a dada altura, a irmã Arminda a vir para a metrópole estudar enfermagem e corte e costura. Com a situação profissional estabilizada, foi chamando os familiares para a Guiné. Veio primeiro Luís Cabral, a quem arranjou emprego na Casa Gouveia. Chegou depois António, o irmão mais novo, e a seguir a mãe, acompanhada pelas filhas gémeas.
O primeiro recenseamento agrícola da Guiné proporcionou ao jovem engenheiro agrónomo a oportunidade de conhecer de perto o interior da sua terra natal e o mosaico étnico que a habitava. O recenseamento resultava de um acordo estabelecido em 1947 entre o governo português e a Food and Agriculture Organization (FAO). Tinha ficado no papel por falta de um técnico capaz de o encabeçar.
 Ao longo de cinco meses (de agosto a dezembro) Cabral e a sua equipa percorreram a quase totalidade do território guineense, visitando mais de 2.200 agricultores. No final do trabalho de campo, Amílcar Cabral fez o tratamento da informação recolhida e elaborou o relatório a ser apresentado à FAO.
Diz António Tomás que foi graças a este trabalho que Amílcar Cabral encontrou a linguagem certa para se entender com os camponeses. Resumida, a mensagem era clara: a pobreza dos agricultores era culpa dos colonos.
A Guiné nunca foi uma colónia de povoamento intensivo. Enquanto em Angola e Moçambique os portugueses tomaram conta de parte das melhores terras, os indígenas guineenses continuaram a ser senhores dos seus terrenos de cultivo, sujeitando-se apenas aos preços tabelados.  
A Guiné produzia essencialmente arroz, amendoim (mancarra) e milho. Todas as etnias semeavam arroz, mas os balantas pouco mais cultivavam. Os fulas preferiam a mancarra, destinada à exportação. A Casa Gouveia era a única entidade compradora e estabelecia os preços que lhe convinham. Segundo alguns agrónomos, o percurso das culturas de mancarra era fácil de seguir pela devastação que produziam no solo. Tornava-se necessário modificar profundamente a estrutura agrária do país, o que pedia mais política do que agronomia.
Amílcar Cabral aprendeu outras coisas úteis para a futura guerra de independência. Qualquer empreendimento na Guiné estaria subordinado à sucessão das estações climáticas. No chão balanta, a sul, os caminhos tornavam-se rapidamente intransitáveis depois do começo da chuva enquanto nas zonas menos húmidas do norte ainda se circulava relativamente bem.  Por outro lado, a navegação por rios e braços de mar era obrigada a seguir o ritmo das marés. 
 Bissau era um meio pequeno e os raros intelectuais da cidade conheciam-se uns aos outros. Sofia Pombo era farmacêutica e militante do PCP. Em sua casa, falava-se abertamente de política e escutavam-se as emissões da Rádio Moscovo. Cabral passou a frequentar a residência da farmacêutica.
Amílcar Cabral foi travando conhecimento com vários cabo-verdianos que trabalhavam como funcionários públicos na administração colonial. Foi nessa altura que se reaproximou de Aristides Pereira, seu antigo colega do Liceu de Cabo Verde. Fez uso da sua experiência de subversão e foi divulgando a ideia da necessidade da interligação das independências de todas as colónias portuguesas. À maneira de Lisboa, foi reunindo um pequeno grupo em que se discutiam temas africanos. À medida que conhecia melhor os intervenientes e se tornava possível confiar em alguns, passava à abordagem das questões políticas. Muitos desses encontros tinham lugar na sua residência na Granja.
As dificuldades subiram de nível quando entraram para o grupo os primeiros guineenses. Os cabo-verdianos e os naturais da Guiné pertenciam a grupos socioeconómicos diferentes. O direito português enquadrava-os mesmo em duas categorias distintas. Enquanto os de Cabo Verde eram “civilizados”, os da Guiné eram quase todos “indígenas”. Muitos cabo-verdianos habitavam na zona “branca” de Bissau. Amílcar Cabral entendeu cedo que não poderia seguir a mesma tática na abordagem de uns e de outros.  Nasceu-lhe então a ideia de criar um clube desportivo e cultural. Ofereceu-se como treinador de futebol. Era uma maneira de se aproximar da juventude de Bissau e de desenvolver o seu trabalho político sob uma cobertura legal.
Decorreram várias reuniões para a preparação dos estatutos do clube. Ao serem apresentados às autoridades competentes, foram recusados.
Foi provavelmente na Guiné que Amílcar Cabral amadureceu intelectualmente e optou definitivamente pelo nacionalismo africano. Durante essa estadia de dois anos e meio começou a esboçar-se o que haveria de ser mais tarde o PAIGC. Cabral aprendeu também que nem todos os que falavam de independência a pretendiam de facto. Foi conhecendo as primeiras traições. Anos depois, falaria com pouco entusiasmo do grupo antifascista de Bissau.
As circunstâncias que puseram fim à estadia de Amílcar Cabral na Guiné não são bem conhecidas. Sabe-se que tanto ele como Maria Helena adoeceram com paludismo. Luís Cabral garante que o seu irmão foi vítima duma denúncia. Um alfaiate de Bissau terá informado as autoridades militares das atividades anti-portuguesas do engenheiro agrónomo e o governador tê-lo-á “convidado” a abandonar a colónia.
       Certo é que foi um Cabral diferente o que desembarcou em Lisboa. Partira um engenheiro agrónomo. Regressava um político decidido a dedicar a vida à independência da Guiné e de Cabo Verde.
       Terá sido autorizado a voltar a Bissau para visitar a família. Aproveitou bem as deslocações. Na primeira, em 1956, formou o o PAI (Partido Africano para a Independência), que se transformaria mais tarde em PAIGC. Na segunda, em 1959, começou a preparar a luta armada.