DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sexta-feira, 17 de maio de 2013


                               AMÍLCAR CABRAL

                                     XXXIV


 O PORTUGAL QUE AMÍLCAR ENCONTROU




No ano da chegada de Amílcar Cabral a Lisboa foi assinada a Carta das Nações Unidas que proclamava o direito dos povos à independência. 
  Em 1945, Portugal era uma Nação economicamente atrasada. Uma grande parte da população empregava-se na agricultura, utilizando métodos tradicionais de baixa rentabilidade. Sonhava-se com o desenvolvimento industrial, porém o país encontrava-se mal preparado para ele em matéria de qualificação dos recursos humanos. Segundo os dados publicados pela Fundação Mário Soares, a taxa de analfabetismo nos anos 40 andava pelos 55%. O novo Plano de Educação Popular seria lançado apenas em 1947, juntamente com a Campanha Nacional de Educação de Adultos.
As classes mais desfavorecidas, que constituíam a maioria da população, viviam mal. Havia fome. As calorias ingeridas diariamente por muitos portugueses andariam perto das que são hoje noticiadas nos países mais pobres do planeta.
Portugal não era autossuficiente em termos alimentares. Os produtos alimentares faltavam. Os preços subiam e os salários permaneciam baixos. O racionamento, imposto pelas dificuldades que a guerra introduziu no abastecimento dos géneros provenientes do exterior e transportados por mar, foi mal aceite. Ocorreu uma série de greves, a partir de 1942.
      Paradoxalmente, durante a guerra, o Banco de Portugal acumulou ouro e divisas em quantidades invulgares e os bancos privados cresceram com as poupanças originadas pelo contrabando de minérios e pelos negócios que o conflito armado proporcionava. O investimento interno era muito limitado. As finanças estavam bem e a economia mal. 
     Os primeiros anos de paz trouxeram o regresso ao tradicional défice da balança comercial portuguesa, com o escoamento lento da exportação dos produtos tradicionais e a necessidade continuada de importação de bens essenciais.
       A chamada “idade de ouro” da economia portuguesa, com a modernização, iria tardar ainda uma dúzia de anos. Só na década de 50 se generalizaria a eletrificação das vilas e aldeias do interior e se começaria a desenvolver o tecido industrial, enquanto o país se abria ao investimento estrangeiro e o turismo começava a crescer.
         Amílcar Cabral chegou a Lisboa em novembro de 1945 e matriculou-se no Instituto Superior de Agronomia. Dos grandes dirigentes nacionalistas das colónias portuguesas, foi o primeiro a chegar e o último a sair para a luta de independência.
A guerra terminara em maio. Os portugueses que se opunham ao regime de Salazar estavam otimistas. Contavam com a ajuda dos Aliados para depor o vetusto Estado Novo. Multiplicavam-se as greves, um pouco por todo o país. Velhos e novos conspiradores iam contando espingardas.
Salazar tomou o pulso à situação internacional e achou conveniente marcar eleições legislativas para o final de 1945. Os oposicionistas aproveitaram a ocasião para fundar o Movimento de Unidade Democrática (MUD), resultante da união de socialistas e republicanos.
O caloiro Amílcar não teve grandes dificuldades de adaptação. Inteligente, extrovertido, de sorriso e palavra fáceis, integrou-se rapidamente no ambiente social do seu estabelecimento de ensino. Entre os portugueses, o racismo esbateu-se sempre face a quem fala corretamente a língua e assume modos de vestir e padrões de comportamento semelhantes aos da gente de cá.
Nesse tempo, como noutros, a Universidade era escola de democracia. Muitos estudantes de Agronomia colaboravam com o MUD juvenil. Cabral juntou-se a eles. Participou em debates e chegou a dirigir alguns, mercê dos seus dotes oratórios.
Os antifascistas portugueses tentaram antecipar a queda do regime recorrendo a rebeliões militares. A chamada “Revolta da Mealhada” foi planeada no Porto. Muita coisa terá falhado na fase final da organização. A única unidade militar a sair à rua a 10 de outubro de 1946 foi o Regimento de Cavalaria 6, comandado pelo tenente Fernando Queiroga. A coluna foi facilmente intercetada na Mealhada. Os responsáveis foram presos e, no ano seguinte, sujeitos a julgamento.
Esteve programado para o dia 10 de abril de 1947 outro levantamento militar. Dessa vez, o número e o prestígio dos revoltosos era bem mais importante. O chefe era Mendes Cabeçadas, herói da revolução republicana de 1910 e antigo Presidente da República. O movimento contaria mesmo com o apoio do então Presidente da República Portuguesa, general Carmona. O mais tarde famoso Hermínio da Palma Inácio e Gabriel Gomes chegaram a sabotar aviões na Base Aérea de Sintra, mas a revolução não chegou a eclodir. Seguiu-se uma vaga de prisões de oposicionistas. Mário Soares conheceu então o cárcere. Seria libertado no final de agosto do mesmo ano. Por envolvimento na revolta, foram demitidos uns tantos oficiais e vários professores universitários.
No espaço de seis meses, falharam duas rebeliões contra o regime. 
   Em Lisboa, Amílcar Cabral continuou a ser um aluno muito bom. O ensino no Instituto Superior de Agronomia era demasiado exigente. Só assim se compreende que, no início do terceiro ano, apenas cinco dos 220 alunos que tinham iniciado o curso juntos não tivessem ficado para trás. Do grupo inicial faziam parte vinte raparigas. Uma delas era Maria Helena Rodrigues, com quem Amílcar acabaria por casar.
  O futuro líder do PAIGC estava habituado à dureza da vida. Para complementar a bolsa de estudos, dava explicações durante a época de aulas e procurava empregos sazonais nas férias.
      Entretanto, iam arribando a Portugal os futuros líderes nacionalistas das colónias. Marcelino dos Santos e Agostinho Neto vieram em 1947. Mário de Andrade chegou em 1948 e Eduardo Mondlane, que seguiria meses depois para os EUA, em 1949.
Era a época da afirmação de grandes líderes africanos, como Kwame N`Krumah, Julius Nyerere e Patrice Lumumba. Começavam as independências das nações africanas.
       Os estudantes das colónias agrupavam-se em redor de interesses comuns variados, entres os quais se contava a saudade das terras de origem e a defesa contra a estranheza, e muitas vezes a intolerância, da gente de cá. Amílcar Cabral fez amizade com Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Noémia de Sousa e Alda do Espírito Santo. Marcelino dos Santos foi seu companheiro de quarto.
      Muitos desses estudantes universitários reconheceram cedo a necessidade de lutar pela melhoria das condições de vida dos povos de Portugal e das suas colónias. Durante a segunda metade da década de 40, houve muitos que  combateram politicamente o regime de Salazar, lado a lado com a Esquerda portuguesa, considerando aliados o fascismo e o colonialismo. O derrube dum acarretaria a queda do outro. 
         Os universitários oriundos de África e da Ásia reuniam-se com frequência na Casa dos Estudantes do Império (CEI) que funcionava na Avenida Duque de Ávila. A CEI ajudava os estudantes recém-chegados a obter alojamento em pensões baratas ou em quartos alugados. Dispunha de um posto médico e fornecia refeições económicas. Desenvolvia também uma actividade cultural virada para os problemas coloniais. No começo dos anos 50 iniciou a actividade editorial, possibilitando a personagens como Agostinho Neto, Viriato da Cruz e Luandino Vieira a publicação dos seus primeiros poemas. Os objetivos da Casa eram facilitar a integração na Portugalidade dos jovens provenientes das colónias.
   Pouco tardou até que alguns estudantes negros notassem que as suas  preocupações específicas eram ignoradas pela organização. Aos poucos, os africanos a estudar em Portugal passaram a separar a defesa dos interesses dos seus povos da luta contra a ditadura portuguesa. Começou a chamada "africanização dos espíritos". Reclamava-se a herança cultural negra, anterior à chegada dos europeus a África. A tomada crescente de uma consciência política específica desenvolveu-se nas proximidades da CEI, mas à sua revelia. Foram sendo criadas organizações autónomas. Nasceu, em 1951, o Centro de Estudos Africanos (CEA). O Movimento Democrático das Colónias Portuguesas (MDCP) foi fundado em Lisboa em 1954 e o Movimento de Libertação Nacional das Colónias Portuguesas (MLNCP) teve origem em Paris, em 1957. O Movimento Anticolonialista (MAC) nasceu da fusão dos dois anteriores, já em 1958.
     Vasco Cabral, Agostinho Neto e Mário de Andrade conheceram as prisões políticas portuguesas. Amílcar Cabral nunca foi detido. O seu envolvimento político em Portugal foi discreto e pouco comprometedor. Terá sido incomodado uma única vez pela PIDE. Cabral contou mais tarde:
 “Chamaram-me à PIDE porque eu fazia luta pela paz em Portugal, pelo fim do fascismo em Portugal, porque assinei o documento do povo português contra a Organização do Tratado do Atlântico Norte.”
“Moral e politicamente nada se apurou em seu desabono”, relatou a PIDE, dois meses antes de Amílcar Cabral abandonar Portugal com destino à Guiné.
                    

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