DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quinta-feira, 23 de maio de 2013



               AMÍLCAR CABRAL

                       XLI

                 A ADJACÊNCIA


No final do século XIX, Cabo Verde dispunha de instrumentos culturais superiores aos das restantes possessões ultramarinas portuguesas. O Seminário-liceu de S. Nicolau tinha uma frequência apreciável. Funcionavam diversas associações recreativas e existia uma imprensa virada para os problemas regionais. Tinha sido criada uma elite intelectual que se sentia diferente do conjunto dos cidadãos das outras colónias portuguesas.
O projeto da adjacência, que advogava para Cabo Verde um estatuto semelhante aos dos Açores e da Madeira foi defendido, com intermitências, por diversos pensadores do arquipélago. Se, de vez em quando, sobretudo por altura das secas, se levantavam vozes a defender a independência, pouco eco despertavam numa opinião pública inclinada a lutar pela autonomia administrativa e económica dentro do império português. Houve quem defendesse a ideia de que, em Cabo Verde, a mestiçagem atenuava a intensidade dos conflitos entre colonos e colonizadores
Não existia, em Cabo Verde, uma tradição de pura crítica anticolonial. A literatura do começo do século XX ligava frequentemente as noções de “nativismo” e de “adjacência”. Nativismo era um processo de busca de individualidade da terra-mãe. Muitos cabo-verdianos achavam que tinham duas pátrias. Uma vinha do nascimento, enquanto a outra era fabricada na escola pela aprendizagem da língua e da cultura portuguesas.
Em 1937, o governo português fez sair duas leis que iriam ter consequências desastrosas para as teses da portugalidade repartida por vários continentes. Uma impedia o acesso à oficialidade das Forças Armadas Portuguesas aos naturais das colónias. Outra proibia o casamento de oficiais portugueses com raparigas nascidas no Ultramar. Nove anos mais tarde, foi publicado um decreto-lei que reforçava os privilégios dos funcionários públicos de raça branca. Os negros e mestiços não podiam ganhar tanto como os seus colegas de pele clara e deixavam de ter acesso aos lugares de chefia. A lei aplicava-se a todos os territórios sob administração portuguesa mas era particularmente lesiva dos interesses doa quadros cabo-verdianos. Seria revogada cinco anos depois. A revisão constitucional de 1951 mudou o nome às colónias, que passaram a chamar-se “províncias ultramarinas”. A cosmética valeu de pouco. Os ventos da independência tinham já começado a soprar.
É provável que até perto do final da década de 50, Amílcar Cabral, como outros intelectuais africanos, tenha tido de lutar consigo mesmo para se livrar do sentimento de pertença a Portugal que lhe foi inculcado durante a aprendizagem escolar.
       Curiosamente, quase trinta anos após a independência, a questão da adjacência continua a suscitar discussões inflamadas na República de Cabo Verde. 

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