DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 6 de maio de 2013


                   AMÍLCAR CABRAL            

                           XXV   
    

   QUEM TEM MEDO MORRE DEPRESSA

                     (MARCELINO DA MATA)




       A sorte protege mais os prudentes que os audazes e o lema dos "comandos" não corresponde à realidade.  Marcelino da Mata é claramente uma exceção. Participou em inúmeras operações militares tendo sido raramente ferido pelo adversário. Em contrapartida, foi atingido por fogo amigo pelo menos quatro vezes e sofreu ainda dois acidentes de viação de certa gravidade.

Nunca fui ferido em combate, mas fui ferido várias vezes dentro dos quartéis. Apanhei um tiro numa perna quando ia a atravessar uma parada, dado por um tipo que estava sentado à porta da caserna a limpar a arma: fiquei dois dias no quartel; e apanhei três tiros de rajada no ombro, dados por um amigo meu que, na brincadeira, visou baixo de mais. Os grupos que tive foram “Os Roncos” que eram 15 pretos e 15 brancos e davam-se todos como irmãos; comigo tinha que ser assim. Parti a cabeça em Farim em 68, numa noite em que estava num destacamento e havia outro a dois quilómetros que estava a ser atacado. Metemo-nos numa viatura e, num cruzamento, ao virar, o inimigo emboscado deu uma bazucada na roda do jipe: dei seis cambalhotas, bati com a cabeça e parti um braço que ficou com o osso todo esmigalhado; levantei-me e eles começaram a gritar “agarra!”, disparei com o outro braço e fiz dois mortos; eles fugiram e a seguir desmaiei. Puseram-me um bocado de metal. Uns tempos depois um condutor despistou o Unimog, demos várias cambalhotas e o metal entortou; puseram-me outro e noutra operação caí mal ao saltar dum helicóptero, o ferro voltou a entortar e tiveram que me meter outro.

Marcelino da Mata é de etnia papel, tal como Nino Vieira. Nasceu em Tite, em 1940 e teve acesso a uma educação melhor do que a média dos seus conterrâneos. Diz ter feito o sétimo ano, embora não se entenda se incluiu na conta a escolaridade primária.
A sua incorporação no exército é, pelo menos, curiosa. Conta ter entrado para a tropa, em Bolama, em lugar do irmão mais velho e com o nome dele. Tornou-se soldado condutor. Ouçamo-lo:
Fui para a escola de cabos mas como falo muitos dialetos (balanta, mandinga, fula, mandeco, mancai, um pouco de nalu e de beafada), qualquer tropa que ia para o mato em operações me levava como intérprete.
 Comecei a perceber o que estava em causa, quando a guerra começou: eu tinha de lutar de um lado; e esse lado era, e é, Portugal. A princípio não percebia nada de política, mas como não gostava de cabo-verdianos e eles estavam à frente do PAIGC, eu estava contra eles; depois, comecei a não gostar do comunismo. Quando se apanhava alguém no mato, ele ou ela dizia logo que não falava português e então eu perguntava de que etnia era, e interpretava para o oficial comandante. Foi nessas operações em que servia de intérprete que me habituei a estar debaixo de fogo, que comecei a ganhar prática. Apareceu um alferes chamado Maurício Saraiva a pedir voluntários para formar um grupo de “comandos” e eu ofereci-me.

Mal terminou o curso de “comandos”, foi enviado para um navio de guerra e desembarcado na ilha de Como. Começara a operação “Tridente”.

Havia operações de noite e de dia, bombardeamentos de noite e de dia. A ilha estava ocupada pelo PAIGC. Tinha árvores muito cerradas, com mais de 100 metros de altura: isso causava problemas com os bombardeamentos, porque as bombas rebentavam nas copas. De dia, a um metro, não se via ninguém: só dávamos pelo inimigo quando ele abria fogo; a ilha é toda cheia de pântanos. Tínhamos lodo até aos joelhos e água até à cintura.

 É provável que as árvores parecessem mais altas vistas de baixo. Por outro lado, Marcelino da Mata sempre gostou de exagerar. Não se pode acreditar em tudo o que contam guerreiros, pescadores e caçadores.

    Estivemos lá 75 dias com o meu grupo a trabalhar com o Batalhão de Cavalaria 490 e outras forças. Tivemos algumas baixas, mas limpámos a ilha toda. Houve uma dezena de evacuados por causa da matacanha, um bicho que se mete debaixo das unhas. Eles sofreram 3 ou 4 vezes mais mortos. Deixámos lá ficar uma companhia de caçadores. Conheci lá o comandante Calvão.
O que dava cabo dos brancos era o clima e a água, que não prestava. A maior parte dos brancos que fizeram a tropa na Guiné vieram com o estômago rebentado; a água não prestava, o clima era húmido, havia um calor enorme. Mas, pior do que isso, é que os brancos iam daqui sem conhecer o terreno, sem instrução nenhuma.
A guerra na Guiné fazia-se assim: destruíamos os acampamentos, apanhávamos os gajos e o material.
Saí dos “comandos”. Fui para Farim, no norte, falei com o comandante, tenente-coronel Agostinho Ferreira, do Batalhão 1887. Pedi-lhe para me deixar formar um grupo especial (“Os Roncos”). Na altura a aviação não ia a Farim, a coluna não se fazia, os barcos também não iam lá. Estava tudo bloqueado e o povo tinha fome. Eu formei o grupo, instruí os homens e começámos a atuar. Consegui abrir a estrada para Mansabá, afastei o inimigo e os barcos começaram a atirar. Quando chegou a época do cultivo, abrimos o outro lado do rio, o povo atravessou o rio e começou a cultivar. Na altura o PAIGC estava a dois quilómetros de Farim. Afastei os gajos todos.

O brigadeiro Sá Carneiro deu-me uma Cruz de Guerra de primeira classe e outra de segunda, e vim recebê-las em 1967 ao Terreiro do Paço. Quem me condecorou foi Salazar, que me disse que eu era um herói nacional e que, por aquilo que tinha lido de mim, eu merecia a medalha que tinha no peito. Foi a primeira vez que vim ao Continente e não cheguei a ver Lisboa – foi desembarcar no aeroporto, dormir, ir à parada e voltar a apanhar o avião – porque estava em preparação uma operação de envergadura no Cumbamorie, no norte, com três companhias de tropa e o meu grupo “Os Roncos”. No aeroporto de Bissau estavam à minha espera, vesti o camuflado e meti-me numa avioneta diretamente para Farim. Quando lá cheguei estavam a arrancar para o mato e eu fui com eles. Esta operação era 40 quilómetros dentro do Senegal. O meu grupo empurrava o inimigo para uma clareira, e quando ele chegasse à mata do outro lado deviam estar lá as outras companhias para o limpar. Tinha havido muito tiro, vários tipos atingidos; eles a correr para a mata e nós a deixarmo-nos ficar para trás, para não sermos apanhados pelo fogo da emboscada dos nossos.

Marcelino da Mata diz ter participado em diversas operações militares nos países limítrofes da Guiné-Bissau: Senegal e Guiné-Conacry. As autoridades portuguesas sempre o negaram, receando as repercussões internacionais. De facto, os guerrilheiros do PAIGC atacavam muitas vezes a partir de santuários existentes no exterior da colónia e a lógica da guerra tornava natural que os adversários os perseguissem. Os quarenta quilómetros é que parecem um exagero.

Atuava no máximo com 8 homens. Quando não sabia onde eram os acampamentos, ia até à fronteira do Senegal com uma farda do PAIGC e uma bolsa de enfermeiro, entrava numa povoação e dizia: “Venho do Senegal, sou enfermeiro e fui mandado para a zona tal”. E eles encaminhavam-me até ao acampamento, ficava por lá 2 ou 3 dias, tratava dos homens, dava injeções. Às 5 ou 7 horas da noite ia-me embora e apanhava o meu grupo. Às 5 da manhã já estávamos em cima deles.

Não sabe quantos inimigos abateu. Se fosse um daqueles cobóis do cinema que faziam um risco no cano por cada adversário derrubado, precisaria de uma espingarda bem comprida para caberem lá todos.
De medalha em medalha e de louvor em louvor, a reputação de Marcelino da Mata foi crescendo. A lenda também. Os inimigos receavam-no e os camaradas de armas olhavam-no com respeito. A verdade é que Marcelino ajudou a construir a própria fama. Nunca se coibiu de acrescentar zeros às perdas inimigas.
Foi sendo promovido por valor. Em 1972, era alferes com a especialidade comando. Passa a ser o responsável pelo IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional) dos cursos de comandos. Era a última fase de treino, feita no mato em missões reais.

Em 21 de abril de 1971, por proposta do general António de Spínola, Marcelino da Mata foi agraciado outra Cruz de Guerra de 1ª Classe. «No decorrer de uma operação (Mar Verde) excecionalmente difícil e em que, face ao aparecimento de situações imprevisíveis, pôs à prova as suas invulgares qualidades de decisão, de desembaraço e de inultrapassável espírito de missão. Tendo morrido em combate, pouco depois do assalto a um aquartelamento inimigo, o comandante do Grupo que desencadeara a ação, foi o Sargento Marcelino quem assumiu o comando das forças executantes. Face à resistência que o inimigo ofereceu em diversas ocasiões, o Sargento Marcelino, pessoalmente, causou ao inimigo elevado número de baixas, atuando com uma coragem e decisão verdadeiramente notáveis, sendo-lhe devido o êxito total da ação, que decorreu sempre com iminente risco de vida».

Dois dias depois do 25 de Abril de 1974, foi ferido numa explosão e evacuado para o Hospital Militar Principal, em Lisboa.
Hoje, Marcelino da Mata é tenente-coronel graduado, na situação de reforma extraordinária. Julga-se que é o oficial do Exército Português que mais condecorações recebeu por valor excecional em combate. Aos louvores, perdeu a conta − «uns dizem que foram 47, outros 52».



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