DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

      O ASSASSINATO DE TROTSKI



Vou ultimando a revisão de “A guerra da Guiné”  e comecei a escrever um livro novo. Vai chamar-se “O assassinato de Trótski”. Trata de um assassino profissional que perde o equilíbrio psíquico e deixa de ser fiável.
Até à data, escrevi quinze livros, onze dos quais estão publicados. Algum dia (ou amanhã, ou daqui a muito tempo) ficará um livro por acabar. Não queria que fosse este -  nunca se quer… Deposito grande esperança na interrelação dos personagens que já criei.
Enquanto espera que lhe dêem trabalho, Antero, o matador, entretém-se a espiolhar crimes antigos, reais ou supostos. Trótski, Aldo Moro, o Papa João Paulo I, Carrero Blanco, Eduardo Mondlane, Sá Carneiro, Anna Politovskaya e Alexander Litvinenko são lembrados nestas páginas e vêem os seus casos analisados. 
Publiquei o primeiro livro em 2003. Têm saído, deste então com uma periodicidade mais ou menos anual. A minha escrita não é popular nem se dirige aos apreciadores das telenovelas, mas vai havendo quem a leia. A crise que o nosso país atravessa teve impacto no mercado de bens não essenciais, como a literatura de ficção. Encerraram editoras e distribuidoras, mas as crises não duram sempre. Conto ver nas livrarias, durante o ano de 2014, pelo menos dois novos títulos. 

terça-feira, 12 de novembro de 2013


                   JERÓNIMO BOSH 

     PINTOR DO LADO ESCURO DA ALMA                    


                                  II       

             O JARDIM DAS DELÍCIAS


     Jerónimo Bosh pintou magistralmente o medo e o grotesco. Recorreu a símbolos ambíguos do Mal e do Bem para descrever a loucura do mundo que escorregava (tal como escorrega agora e quase me atrevo a dizer que escorregou sempre) para a perdição moral. Julgo que há mais vagas nos hotéis do Céu do que na concorrência.


      Hieronymus retratou como ninguém o vício e o pecado. Foi muito melhor a pintar demónios do que a desenhar anjos.
      Pouco se sabe da sua vida e não há provas de que tenha trabalhado fora da sua terra natal, Hertogenbosh. Era filho e neto de pintores. Terá aprendido no atelier familiar.


    A estranheza dos seus desenhos levantou especulações.  Ao tempo, existiam variadas seitas que se dedicavam às ciências ocultas. Jeroen poderá ter recolhido delas alguns conhecimentos sobre os sonhos e a alquimia. Terá chegado a ser perseguido pela Inquisição.


    O Jardim das Delícias Terrenas está exposto no Museu do Prado, em Madrid. Julga-se que foi pintado entre 1503 e 1504.


   Antes de se abrir o tríptico, vêm-se as portadas, que representam o mundo no terceiro dia da criação. A terra está dentro de uma esfera de vidro, simbolizando provavelmente a sua fragilidade. Os animais ainda não tinham sido criados.
   Aberto o quadro, figuram de um lado o Paraíso e, do outro, o Inferno. A meio, fica a Vida. No painel central, o homem deixa-se levar pelos prazeres dos sentidos. Pessoalmente, não vejo mal nisso... 


     Comecemos pelo centro. O painel está organizado em três estratos, ou andares. No espaço superior, a meio, uma estrutura cilíndrica encimada por uma torre que se vai afilando, flutua num lago, ou assenta no seu fundo.

                           

   Tem no equador um estrado onde se vêem figuras humanas, enquanto outras se banham mais abaixo. Os homens e as mulheres representadas estão despidas. No campo vizinho, abundam árvores de fruto. Um círculo de pessoas sentadas no chão parece tentar comer um morango gigantesco. De cada lado há construções elevadas cujo significado me escapa. No céu, voam figuras fantásticas cavalgadas por humanos. Poderão representar a sedução do mal.


O estrato mediano é centrado pela fonte da juventude onde se refresca um grupo de mulheres. Há negras entre elas. Dificilmente Bosh terá visto muitas, no interior da Holanda do século XV. Os frutos são omnipresentes. 


À volta da fonte desfila um grupo numeroso de cavaleiros montados em animais fantásticos agrupados em quadrigas irregulares. 
Vêem-se grandes pássaros, que simbolizarão a lascívia. 


O andar inferior é ocupado por dezenas de figuras nuas. 


Trata-se muitas vezes de casais, mas alguns agrupamentos são mais complexos. Os observadores mal intencionados lêem neles cenas de luxúria. Segundo os escribas da Wikipedia, vê-se ali todo o tipo de relações carnais: heterossexuais, homossexuais, onanistas e até ligações entre animais e entre plantas.


As estruturas de vidro que aprisionam figuras nuas fazem lembrar os alambiques dos alquimistas.


Os pecadores de Bosh não mostram sinais de arrependimento. Entregam-se alegremente à perdição.
Alguns observadores atentos fizeram notar que ali não se dá ela passagem do tempo. Não se vêem velhos nem crianças. Ninguém trabalha. Comem-se os frutos que a terra dá espontaneamente.
O quadro foi comprado por Filipe II e esteve no dormitório do rei até à sua morte. Não sabemos com que é que o nosso monarca sonhava…


   No painel esquerdo está representado o Paraíso. Deus, figurado como Cristo, está de pé e apresenta a Adão a Eva acabadinha de criar e pronta para o pecado.

 
    Abundam os pássaros e há muitos animais africanos mais ou menos fantasiados. O centro do quadro volta a estar ocupado pela fonte da Vida, de que sai uma estrutura elevada cor-de-rosa que lembra um vaso de flores, ou mesmo uma guitarra. Há quem veja nela a flecha de uma catedral ou até um símbolo fálico... 
      Em vez dum Paraíso tranquilo em que os animais vivam na paz de Deus, vê-se um leão preparado para devorar um veado e um javali a perseguir uma figura estranha com duas pernas. Perto do tanque, um leopardo abocanha um lagarto e uma ave come uma rã.

                   

O painel da direita representa o Inferno. Há quem lhe chame O Inferno da Música, tantos são os instrumentos musicais apresentados.
Escrevi antes que, no meu entender, Bosh pinta melhor o Mal do que o Bem. Nenhuma das suas figuras sagradas  se aproxima do deslumbramento dos seus demónios e monstros.


É um painel sombrio que contrasta com os tons antecedentes. No estrato superior são representados o fogo e os tormentos.


O andar médio contem imagens de pesadelo.  É dominado pela figura do homem-árvore, que olha para o observador. Tem na cabeça um disco em que dançam pequenos demónios. Os braços são troncos de árvore e apoiam-se em barcaças. O peito é oco e dá abrigo a monstros.
A faca ligada às orelhas tem sido interpretada como um símbolo fálico.


O andar inferior é o da orquestra. Os instrumentos musicais são aparelhos de tortura. Em lugar do maestro está um demónio que devora condenados e vai defecando num poço negro. Em baixo, à direita, um homem é abraçado por uma porca com lenço de freira.


     Jerónimo Bosh foi um pintor singular. Ouçamos o que diz dele Frei José de Siguenza, o seu primeiro biógrafo: «a diferença entre a pintura de Bosh e a dos outros é que os demais procuram pintar o homem qual parece por fora; somente ele o ousa pintar como é por dentro».

       Fontes:
A Grande História da Arte – Renascimento e Maneirismo. Público, Porto, 2006.
Wikipedia.
Fotografias dos quadros: Internet.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

               JERÓNIMO BOSH

                                         


A descrença tem um preço e o positivismo paga-se caro. Pelo menos para alguns, o esforço de encarar o mundo e a vida de forma racionalista abre as portas ao gosto da fantasia.
Esta pequena introdução é um pretexto para falar de Jerónimo Bosh, um pintor que me fascina.
                                
Extração da pedra da loucura

Jeroen (Hieronymus) van Anken, nasceu na Holanda em 1450 e viveu 56 anos. Assinou alguns trabalhos como Bosh, abreviatura do nome da sua terra nata, Hertogenbosh. Os espanhóis chamam-lhe “El Bosco”.
Os seus quadros testemunham uma imaginação prodigiosa. Será o primeiro de todos os artistas fantásticos. Estranhamente, foi este visionário quem melhor representou a pintura renascentista na Flandres do início do século XVI.
A minha estranheza será fácil de entender quando se olha a sua pintura. O que chama primeiro a atenção do observador não é a aproximação do mestre às referências culturais da Antiguidade Clássica. O que salta à vista é a representação pictórica do pecado e do medo escondidos no fundo das almas dos seus contemporâneos.
                                
Navio dos loucos
                                                       
Existem perto de 40 quadros de Bosh dispersos por museus da Europa e dos Estados Unidos da América. O rei Filipe II de Espanha (o nosso Filipe I, primo de D. Sebastião) apreciava as suas obras e adquiriu algumas. Será essa a razão de pertencerem atualmente ao Museu do Prado alguns dos melhores trabalhos de Jeroen van Anken, incluindo «O Jardim das Delícias Terrenas».
O nosso museu das Janelas Verdes (Museu Nacional de Arte Antiga) tem o privilégio de acolher as «Tentações de Santo Antão», um dos quadros emblemáticos do pintor. O tríptico veio do antigo Palácio Real das Necessidades. Ninguém sabe como lá foi ter. Há quem diga que pertenceu ao humanista Damião de Góis.                              


O artista foi beber aos pesadelos próprios e alheios, à simbologia dos alquimistas e aos textos sagrados apocalípticos. Criou figuras complexas, originais e difíceis de entender. Produziu os seus melhores quadros à volta do ano 1500. Os profetas do fim do mundo e do anti-Cristo agarraram-se sempre aos números «redondos» do calendário. A Idade Média e os seus pavores ainda estavam próximos. Algumas das figuras que pintou, fantásticas e diabólicas, por vezes com vestes religiosas, refletem esses medos.
                           

Hoje vou falar das Tentações de Santo Antão. Nos próximos dias tratarei do «Jardim das Delícias» e das influências que o pintor holandês exerceu sobre colegas seus muito distanciados no tempo.
Santo Antão, um eremita egípcio do século III é considerado o fundador da vida monástica. Era muito popular na Idade Média, sendo considerado protetor contra o ergotismo, doença provocada pela cravagem do centeio. O santo é muitas vezes representado na companhia de um porco. Comer mais carne e menos pão diminuía a probabilidade de contrair a doença.
Antão distribuiu os seus bens pelos pobres e passou vinte anos a meditar no deserto, o que provocou a ira do diabo, que o tentou de todas as formas imagináveis.
Bosh retrata a seu modo as tentações a que o pobre santo foi exposto. Rodeou-o de monstros e demónios assustadores.


Conta Atanásio de Alexandria – e quem sou eu para duvidar das suas palavras? – que o diabo dispõe de mil maneiras para causar dano. «Aquela mesma noite ouviu-se um ruído tão grande que tremeu todo aquele lugar. Os muros da sua cela pareceram abrir-se, e entrou uma multidão de demónios; aparências de bestas selvagens e répteis, espetros de leões, ursos, leopardos, touros, serpentes, áspides, escorpiões e lobos enchiam o recinto».
O tríptico data provavelmente de 1505. Foi pintado em pleno Renascimento. Tanto esta obra como «O Jardim das Delícias» fazem a ponte, ou a transição, entre o imaginário medieval bem presente ainda na Europa e as influências renascentistas que iam ganhando terreno nas artes. 


As tentações começam no painel que fica à esquerda de quem olha. Em cima, o santo é arrastado aos ares pelos demónios. A meio, enfraquecido, é amparado por figuras piedosas. A parte mais interessante do painel está em baixo.



Há demónios que leem uma carta debaixo de uma ponte. Um  monstro patina no gelo para entregar outra. Bem gostava de saber o que diziam as missivas. Poderiam anunciar o fim dos nossos dias.


O painel da direita mostra uma mulher despida a tentar o santo. Antão desvia o olhar para o outro lado e lá estão outros seres maléficos a tentar conquistá-lo com comida e bebida.



 Ao alto, voa um peixe que transporta um casal.



No painel central vê-se um templo cilíndrico, em ruínas, com a figura de Cristo crucificado no seu interior. Ao fundo, arde uma aldeia.



As partes média e inferior do quadro são ocupadas por figuras diabólicas grotescas, em parte humanas e em parte compostas por animais, plantas ou objetos. 


É o painel central que transmite a mensagem essencial da obra. Estamos rodeados pelo mal.


Só com a renúncia às coisas do mundo e com a ajuda de Cristo se pode alcançar a salvação.