RITUAIS DE LUTO
A
pandemia de COVID 19 continua a alastrar. As desgraças sucedem-se umas às
outras e são mostradas quase em direto na televisão.
Ao menos, poucas vezes se veem mães a prantear
os filhos mortos. Quem chora são filhos e filhas, impedidos de entrar em lares
e hospitais para acompanhar os últimos momentos de vida das pessoas que mais os
amaram.
A
pandemia tem provocado razias nos lares de idosos. Durante as últimas semanas
de vida e no período de agonia, os doentes não têm tido o carinho dos
familiares.
Nos
cortejos funerários, atrás do féretro, seguem, quanto muito, meia dúzia de
pessoas, com máscaras molhadas por lágrimas. As cerimónias fúnebres tiveram de
ser severamente limitadas.
A
ideia da morte afeta profundamente todos os grupos humanos. As sociedades
defendem-se contra a dor da perda criando rituais de luto que diferem amplamente
conforme os povos e as culturas. Os cortejos funerários dos países europeus em
que familiares e amigos, vestidos de cores escuras, desfilam atrás do caixão
que encerra o corpo do falecido, contrastam vivamente com as “combas” de
Luanda, em que se festeja o morto durante vários dias.
A
Luanda moderna não substituiu de todo a Luanda antiga, nem pretendeu fazê-lo. A
Comba é um ritual fúnebre que continua a ser praticado com variações por
diversos dos grupos étnicos que constituem a população da cidade.
Dura,
em geral, três a cinco dias. Durante o velório, há sempre gente acordada. As
pessoas revezam-se. Os homens jogam cartas no quintal da residência, enquanto
as mulheres conversam umas com as outras ou rezam na proximidade do caixão do
falecido. Umas tantas cozinham.
Como
a despedida dura dias, quando chega o sono cada um dorme onde pode. Alguns
trazem esteiras e cobrem-se com lençóis, enquanto outros se instalam em casas
de vizinhos ou dormem nos automóveis.
O
defunto constitui o elemento central da festa. Entrou num estádio sagrado e
prepara-se para dar o passo definitivo que o aproximará dos seus ancestrais.
Seguem-se-lhe,
na hierarquia, os tios mais velhos. Sentam-se em cadeiras alinhadas frente ao
caixão, perto da viúva e dos filhos, e recebem as condolências e as doações
financeiras de vizinhos, amigos e familiares.
As
comidas e as bebidas destinam-se a aliviar a tristeza do falecido para que ele
se conforme com a nova viagem. Todos os participantes se esforçam por
permanecer em locais bem visíveis, para que a família enlutada repare neles.
O
prato fundamental é o funje, acompanhado de frango e de peixe. Servem-se bebidas
populares como o marufo (vinho de palmeira), caxipembe (cerveja de milho), caporroto
e cerveja. O caporroto é uma excentricidade luandense. É obtido a partir do
açúcar fermentado com carvão de pilha elétrica, que lhe confere propriedades
psicotrópicas. Há quem morra por o consumir. As famílias mais ricas oferecem
também vinhos portugueses e uísque.
Nem
sempre as manifestações do luto em Portugal foram tão contidas como nos tempos
modernos. Antigamente morria-se em casa e era na residência do morto que se
realizava o velório. Julgo que “velório” vem de vela. As luzinhas eram
conservadas acesas durante toda a noite à cabeceira do defunto. Num
compartimento contíguo eram servidas bebidas e alguma comida leve. Entre nós,
bebia-se sobretudo vinho e aguardente.
O
denominador comum de todos os rituais fúnebres é a reunião de familiares e
amigos, para se despedirem do morto e expressarem solidariedade aos parentes
mais chegados. Tanto os funerais como os casamentos e batizados são cerimónias
estruturantes das nossas sociedades.
O
luto quase solitário que agora nos aflige é uma experiência trágica e
deprimente.
Trecho
retirado do livro “Crónicas da Peste”, publicado em “e-books Kindle, Amazon.com.br.”