DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

 

    OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH


A COZINHEIRA DO INFERNO




 

 

Foi o Joaquim quem me desafiou para outra aventura. Estaria a habituar-se à minha companhia. 

− Gostava que conhecesses a minha tia Matilde.

− Não sabia que tinhas uma tia…

− Que sabes tu de mim? E eu de ti?

− Sabemos o suficiente para nos estimarmos. A tua tia mora perto?

− A tia Matilde, sim. Tenho outra, mas habita num quadro diferente. Vou visitá-la de vez em quando.

Lá nos vimos num dos infernos de Bosch. A pintura era o Julgamento Final.

Ao alto, está Cristo na sua glória. Parece habitar uma nuvem. Tem, de cada lado, um punhado de bem-aventurados. Há anjos pálidos a tocar trombetas.

Esta é a parte menos interessante da pintura.

Acho que reside aqui a fratura essencial na obra e na alma do grande artista flamengo. Bosch faz a apologia do Bem, mas deleita-se a representar o Mal.

O céu não é representado de modo interessante, nem acolhedor. A minoria dos eleitos corresponderá a homens e mulheres com os quais, em vida, teríamos pouco interesse em relacionar-nos. Assustaram-se com a ameaça dos tormentos do Inferno e praticaram o Bem de forma interesseira, a fim de poderem ser acolhidos no Paraíso. Poucos foram acometidos da vontade genuína de ajudar os outros. Dito de outro modo, os santos são uns chatos. Mal das crenças que fazem da negação do prazer um ideal de santidade.

Fartei-me de Filosofia. Baixei o olhar e vi o que parece ser um mundo em chamas. Começa ali o reino do Mal. Extinguem-se a graça e a clemência de Deus. A vingança dos juízes é terrível. Os que se portaram mal em vida são sujeitos a todos os suplícios imagináveis.

A tristeza paira no ar poluído. Distingue-se um verdadeiro exército de vencidos, conduzidos por monstros e demónios para a boca de um cântaro enorme onde irão ser triturados.

Os diabos parecem atarefados. Ou recebem horas extraordinárias, ou têm prémios de produção. O que contrasta e magoa na pintura é a extrema desproporção entre o número dos benditos e o dos danados. Segundo o pintor flamengo, Deus destinou a grande maioria dos humanos a arder eternamente no fogo dos infernos.

O que vale ao artista (e a nós, que apreciamos a sua obra) é o seu sentido de humor.

Numa espécie de planalto, na parte inferior do quadro, está a cozinha do Inferno. Pelo menos, foi o que me pareceu avistar.

Como na visita precedente, eu tinha tirado a roupa para não dar nas vistas. Estava a habituar-me a andar despido. Os infernais verdugos mal reparavam por mim. Era mais um danado, entre centenas ou milhares.

 O Joaquim guiou-me por um atalho que parecia conhecer bem. Chegámos num instante ao espaço das cozinheiras. 

− Olha! Aquela é a Matilde. Vês? O vestido dela é do mesmo pano do meu gorro.

Matilde era um ser híbrido, parte mulher e parte réptil, com feições grosseiras. Usava um longo vestido rosa carregado e um toucado branco. Tinha pés de lagarto.

Estava sentada no chão, ou num banco muito baixo. Segurava uma enorme sertã onde fritava um danado. Ao lado da fogueira estava dois ovos enormes. Iriam servir para completar o cozinhado.

Um pouco acima dela, outro monstro fêmea de cabelo branco ia torturando um danado com ferros em brasa.

Matilde parecia descontraída. Olhava para cima. Talvez espreitasse o relógio.

O sobrinho aproximou-se para a saudar.

− Olá, tia… Tem passado bem?

A cozinheira não pareceu muito contente com a vinda do Joaquim. Respondeu-lhe:

− Eu tenho… E tu? Que é que vieste cá fazer?

− Vim visitá-la…

− Passo bem sem as tuas visitas. Não vês que estou atarefada?

O Joaquim ficou desapontado com a falta de simpatia com que fora recebido, mas não esmoreceu. Fez uma vénia à tia e recuou.

− Ela não é má pessoa… Tem é aquele ofício.

Não me ocorreu nada para lhe dizer. De certo modo, cada um tem de cumprir o seu destino, embora exista quase sempre uma margem razoável de livre-arbítrio.

Deixei de teorizar e olhei em redor com mais atenção. Constatei que tinha perdido parte da capacidade de me surpreender. De um lado e do outro, era tudo mais do mesmo. Monstros mais ou menos cobertos de armaduras metálicas entretinham-se a fazer mal aos condenados. Reparei num que cavalgava uma espécie de peixe com focinho de ratazana. Calçava botas.

Um pouco acima, sobre uma placa que cobria um pequeno edifício, ficava o local onde o meu amigo Joaquim exercia habitualmente o seu ofício. Não chegámos a falar dele, mas imagino que fosse semelhante ao dos seus colegas.

Fiz um aceno de despedida à Matilde, mas ela não deu por mim. Não me importei. Já me habituara a passar despercebido naquele lugar. Viemos embora.

Eu quase sentia vontade de ter uma tia assim. Como não podia ser, tomei nota mentalmente para, num próximo aniversário lhe oferecer os dois grossos volumes do Pantagruel. Estou certo de que o Joaquim se irá alegrar com a ideia de ser o portador da encomenda. 

 

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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

 


                OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH    

  ESTIVE NO INFERNO


Estive no Inferno. Fiz por lá uma passagem rápida.

Não tive a companhia de um poeta cuja harpa soasse de modo a serenar o cão das três cabeças e a pôr travão aos destemperos dos diabos. No entanto, não entrei lá sozinho. Tão pouco fui tentar rever a mulher amada. A minha “Beatriz” está bem e recomenda-se. Deixou a juventude lá muito para trás, engordou e piorou o feitio, mas vamo-nos entendendo.

Entrei naquele espaço maldito seduzido pelo olhar de Jerónimo Bosch. Pretendia entender as raízes dos seus medos e conhecer mais de perto os pesadelos que assombravam os homens da Flandres na época em que pintou.

Perdoem-me por não falar ainda do meu guia. Prometo que o irei apresentar numa das páginas seguintes.

Haverá quem pense de forma diferente da minha, mas considero que Bosh ilustrou melhor o Mal do que o Bem. Todos conhecemos artistas que desenharam anjos mais perfeitos que os dele. Não acontece o mesmo com os monstros e demónios. Nesse aspeto, o artista é inigualável. Preencheu as suas telas com uma escrita pictórica intensa e assustadora.

Cheguei a imaginar que o pintor tivesse procurado adentrar as almas de familiares e vizinhos para soletrar nelas os medos primordiais. Não era possível fazê-lo, nem seria necessário. Bastou a Bosch recorrer às próprias memórias e chamar de volta os pesadelos incutidos na sua alma ao longo dos primeiros anos de vida. O miúdo Jeroen terá ouvido falar da proximidade do ano de 1500 e da possibilidade de estar a chegar o fim do mundo. Os padres que pregavam nas igrejas e as tias velhas que contavam histórias junto à fogueiras de inverno foram imprimindo os seus terrores no espírito duma criança saudável, mas sensível. Os espetros estavam guardados no saco das recordações. Quando chegou à idade adulta, Bosh foi capaz de os chamar e de lhes dar vidas novas nas telas que ia pintando.

Quererão saber como entrei no Inferno e como saí de lá são e salvo.

Vou contar-vos o que aconteceu, mas não estou certo de que acreditem no que escrevo. Na verdade, não poderia ter entrado nem saído sem a ajuda do meu amigo Joaquim. Será a altura de vos falar dele.

Tinha passado tanto tempo a olhar aquele quadro que imaginava tratar por tu cada personagem. Pior, pensei. A dada altura, achei que certas figuras ali representadas se tinham habituado a mim. Terá sido o caso desse pequeno monstro.

Não se chama mesmo Joaquim. Tem um desses nomes flamengos impronunciáveis, mas compreende a minha dificuldade linguística e não se importa que o trate deste modo.

Coloquei aqui o retrato do Joaquim, para que reparem bem nele.


Gosta de usar um enorme gorro de cor alaranjada. É um ser desconfiado e, enquanto fala comigo, vai espreitando os cantos do quadro. A sua bela barba grisalha quase o faz parecer respeitável. Quase, porque tem bem à vista os pés de batráquio e não se esforça por esconder a cauda comprida e ondulada. Terá os ouvidos vulneráveis, pois cobre-os com escudos metálicos de onde saem espigas de ferro.

Tenho pouco de padre e confesso que raramente me preocupa o destino dos meus interlocutores. A palavra escapou-me, mas não a retiro. A verdade é que uns tantos desses figurantes dialogam comigo. Bosh tentou empurrar os seus monstros para o lado do Mal, mas apenas o terá conseguido em parte. Palpitam em muitos deles corações humanos. Alguns desses pequenos seres poderão escapar à eterna danação.

Nas primeiras ocasiões em que nos encontrámos não se mostrou simpático mas, de certo modo, acabou por me aceitar. Não terá muita gente com quem conviver.

Foi até ele quem primeiro rompeu o silêncio. Perguntou-me:

− Quem és? O que fazes aqui?

− Vou responder primeiro à segunda pergunta. Sou um admirador dos quadros do pintor que te criou.

− És como ele?

Fiquei, durante instantes, sem saber o que dizer. Quem conheceria os grupos em que o pequeno ser enquadrava os outros? Existiam maneiras diferentes de classificar os entes vivos e um número ainda maior de possibilidades de situar os personagens de ficção. Como ele não parecia ter a mente complicada, escolhi a resposta mais simples.

 − Sim, sou humano. Isso não se nota?

− Aprendi há muito que nem tudo o que parece é.

− Achas que me visto de maneira muito diferente do artista que te fez?

− Sei lá como é que ele se vestia… Passam aqui em frente muitas pessoas que trajam como tu.

− Não sabes o nome dele?

− Não. Nunca mo disse. 

− E o rosto dele? Esqueceste-o?

O homem das barbas grisalhas pareceu entristecer.

− Mal o vi. A última coisa que me pintou foram os olhos. Deve ter-se ido embora antes de a tinta secar.

A esta conversa, seguiram-se outras. O pequeno monstro do barrete flamejante não tinha muita gente com quem tagarelar e habituou-se a escutar-me. Era reservado. Eu, habitualmente, falava pelos dois.

Às tantas, veio o Inferno à baila. Julgo que fui eu a abordar primeiro a questão.

− O teu criador preocupava-se muito com a perdição e com o inferno. Pintou-os muitas vezes.

− Pintou? Eu só conheço um dos quadros. É aquele em que está o homem-árvore.

− Bem sei. É um dos painéis laterais do “Jardim das Delícias”. Sabes? Estou convencido de que a melhor maneira de conhecer a alma de um homem é apreciar-lhe a obra.

− Crês que é mesmo preciso conhecer as almas? Não são todas parecidas umas com as outras?

− Acho que não. Julgo que diferem mais do que as caras.

− É a tua opinião…

− Pois… Gostaria de saber mais sobre Jerónimo Bosch, o teu criador. No meu modo de pensar, para o entender é preciso olhar de perto os infernos que pintou.

− Queres ir lá?

Quase me engasguei com a pergunta.

− Aonde? Ao Inferno?

− Era disso que estávamos a falar.

− Deixam-me entrar? E depois, como é que de lá saio? E se os diabos me agarram?

− Um destes dias disseste que não acreditavas neles…

− Bem… Eu…

− Queres ir ou não? Posso levar-te e trazer-te. Conhecem-me lá bem. Terás é de vestir outra roupa, para não dares tanto nas vistas. Ou, então, vais nu. Os condenados andam quase todos assim.

Reparei que o Joaquim falava dos danados como se referisse os hóspedes dum hotel. Nunca o vi emitir sobre eles juízos de valor.

E um dia, lá fomos. Esperei por uma altura em que não estivesse ninguém na sala do museu, despi-me e escondi a roupa atrás de um caixote de lixo. Depois, segui o Joaquim até ao quadro e entrei com ele na grande caixa metálica cilíndrica.

Senti que a estrutura descia, antes de se deter.

Quando a porta se abriu, eu estava no Inferno. Curiosamente, não senti calor. Ou já não ardia como dantes, ou a parte de mim que ali entrou não entendia as temperaturas.

Logo à minha frente, meia dúzia de cães infernais com focinhos e caudas muito compridos e três dedos em cada pata devoravam as entranhas de um cavaleiro que conservava vestida a parte de cima da armadura e ainda segurava uma taça na mão esquerda. Suponho que se tratava  de um sacrílego.

Um pouco acima, um demónio de armadura com cabeça de peixe e barbatanas no lugar das orelhas trespassava com a grande espada um condenado que tinha a cabeça tapada com um elmo metálico.

O homem-árvore, de tronco e rosto pálidos, estava perto de nós, mas olhava para a direita, para a frente do quadro. Mais abaixo corria um rio estreito. Depois, via-se uma série de enormes instrumentos musicais rodeados de demónio e de amaldiçoados.

Um grande pássaro sentado num cadeirão ia comendo e defecando gente.

O que mais me impressionou foi a porca no fundo do painel, a abraçar e beijar um condenado. Em frente, estava um monstro coberto com uma armadura metálica que apenas lhe deixava de fora os membros inferiores. Tinha uma seta espetada numa das coxas e levava, pendurado no penacho do elmo, um pé humano decepado.

A dada altura, o meu guia chamou-me discretamente:

− Vem! O museu está quase a encerrar.

Segui-o de volta até ao cilindro metálico. Subimos e encontrei-me fora do quadro.

Corri a vestir-me. Felizmente, não havia ninguém na sala.

Despedi-me do Joaquim e agradeci-lhe a visita guiada. Tinha-lhe dito que me chamava António. Não percebi por que razão, quando nos despedimos, me chamou Tundal.



Nessa noite, tive um pesadelo, o que não admirava. Sonhei que a porca da touca de freira tentava meter-se na minha cama.

 





terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

 

     OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH

                  OS CAVALEIROS



Como sabem, tenho boa parte das pinturas de Jerónimo Bosh gravadas no computador. Conservo quadros inteiros, mas fragmento muitas vezes as cópias, para melhor as analisar. Quando é necessário, amplio um pormenor. Hoje deu-me para rever o Jardim das Delícias Terrenas.

Muito do que Bosch pintou afigura-se estranho, pelo menos aos primeiros olhares. Quando vemos melhor, começamos a entendê-lo, embora sobrem dúvidas e perplexidades.

De cada vez que olho “O Jardim das Delícias Terrenas”, mais irónico se me afigura o título da obra. Estou em crer que o pintor representou intencionalmente na tábua central do tríptico um paraíso falso.

A meio do painel há um pequeno lago. Julgo que representa a fonte da eterna juventude. Banham-se nelas mulheres nuas (entre as quais diversas negras) e alguns pássaros.

À volta, desfila uma estranha e lustrosa cavalgada. Os cavaleiros vão despidos e conduzem montadas inverosímeis. Veem-se cavalos, bois, grandes porcos, ursos, algumas feras e ainda uns tantos seres que deverão a existência à imaginação do artista. Os quatro rios que se veem mais acima constituem outra referência ao Jardim do Éden.

Os cavaleiros seguem em fileiras de quatro, mas o alinhamento não é rigoroso. Repetem o mesmo percurso, como se fossem figuras de carrossel. Acho que se deixam guiar pelas montadas. Conservam os olhos abertos mas parecem ter desaprendido de ver. Nenhum olha para o grupo das mulheres nuas que se banham no lago. Será uma estranha omissão, num conjunto de homens novos.

Eu reparei bem nelas e terei feito mal. É a minha imaginação a pregar-me partidas. Acho que Jerónimo Bosh se entreteve a construir armadilhas para alguns apreciadores da sua obra. Estou quase certo de ter reconhecido a Elisa.

Foi minha namorada, na nossa juventude. Trocou-me por outro rapaz, mais bonito ou mais esperto do que eu. Talvez fosse as duas coisas. Não a vejo há muitos anos, mas ouvi dizer que tem uma carrada de filhos. Até há pouco tempo, estava viva e de saúde. Curiosamente, na pintura não envelheceu. Conserva a figura de adolescente que me cativou e me fez sofrer. Se não é ela, é uma rapariga extraordinariamente parecida com ela. Não deu por mim. Mesmo que o fizesse, dificilmente me identificaria. É que eu mudei muito.

Esfreguei os olhos para tentar ver mais claro. Não pode é Elisa. Como é que poderia figurar num quadro de Bosch, que viveu cinco séculos mais cedo e numa região distante da nossa? No entanto, aprendi há muito que não podemos compreender tudo o que nos é dado avistar.

As figuras de alguns cavaleiros pareceram-me familiares. Estou quase certo de avistado dois ou três durante as visitas que fiz ao Inferno, guiado pelo Joaquim.

Ou o pintor estava fatigado e recorreu a modelos já usados, dando-lhes um novo enquadramento, ou foi muito mais ambicioso, libertando-os das penas do Inferno pela força da sua arte. A ser assim, a mudança irá perdurar enquanto o quadro existir e for inteligível.

Considero que Bosch poderia ter sido mais generoso para com os seus personagens. Concedeu-lhes apenas meia existência. A imaginação torna quase tudo possível e Bosch tinha-a imensa. Se fosse essa a sua intenção, o artista teria ido mais longe. Quer-me parecer que desenhou exatamente o que tinha na ideia. Os cavaleiros deixaram de suportar as penas do Inferno, mas parecem mais aliviados do que felizes. Julgo que o pintor terá sido suficientemente misericordioso para lhes apagar das memórias os tormentos sofridos. Seria difícil conservar essas lembranças tenebrosas e manter a sanidade mental.

Tentei falar com um personagem que passou à minha frente montado num grifo. Ignorou-me. Dirigi-me a outro que seguia um pouco atrás, cavalgando um porco. Não me ouviu. Estarão cegos e surdos para os humanos que contemplam o quadro. É também possível que a minha imaginação esteja hoje menos fértil do que em dias anteriores.

Os homens montados conversam uns com os outros. Alguns vão apanhando frutos no caminho. Um exagerado cavalga um leão e empunha um grande peixe à maneira de lança. Ao longe e à esquerda, aproxima-se outro grupo de cavaleiros. Parecem vir juntar-se aos que aqui estão.

Fartei-me deles e desliguei o computador. Foi como se lhes tivesse virado as costas. Não consegui, contudo, deixar de pensar neles e no que representam.

Bosch fê-los voltar ao mundo, mas não lhes permitiu que reconhecessem o Mal. Estão cegos para a vida e nunca serão homens completos. Receiam arriscar-se fora do trilho marcado.

Como noutros trípticos do pintor, o painel central representa alguma forma de equilíbrio entre as pinturas dos extremos.

Foi-nos dada a possibilidade de acertar e de errar. Sem a liberdade, a vida seria bem menos digna. Um santo só o poderá ser verdadeiramente se tiver a possibilidade de pecar.

Demorei-me a falar deste grupo que parece casto, mas que está longe de representar o conjunto do quadro. A maior parte dos personagens entrega-se aos prazeres carnais, muitas vezes com indivíduos do mesmo sexo e frequentemente em grupo. Terá sido esse atrevimento, invulgar na época, que cativou o interesse do rei Filipe II de Espanha, senhor também de Portugal.

No meu modo de ver, o que dá grandeza ao painel é o bando de grandes pássaros coloridos que estão poisados à esquerda do conjunto central. São maiores que os humanos que os acompanham. Diz-se que são os símbolos da luxúria, tal como os frutos de que muitos protagonistas se mostram ávidos. Aguardam. Parecem bem capazes de voar. 

Recearia voltar a olhar a pintura quando a noite caísse. Imagino ver os pássaros livrarem-se da plumagem colorida e tomarem a forma de demónios alados, dispostos a voltar a devolver aquele rebanho de tolos ao seu redil infernal.

 

 

 


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

 

                OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH
 

   A BARCA DOS LOUCOS

 

       


 

 

Tenho a pintura à minha frente, no ecrã do computador. Movimento o “rato” e faço a tela deslizar. Vou ampliando os pormenores que me importa esclarecer.

Conheço todos os que estão a bordo, uns melhor do que outros. É que naveguei nesta embarcação. Nunca fiz parte da companha mas juntei-me a ela, algumas vezes. Acho, até, que fiquei favorecido no retrato que o pintor traçou de mim.

Bosh pintou uma festa. Aconteceu numa época estranha, no decurso da minha juventude. Já lá vai tempo. Estávamos em 1499 e era verão. O número do ano seguinte teria dois zeros no final. Havia quem garantisse que traria o fim do mundo.

Entre nós, alguns temiam o inferno menos do que outros. Era preciso aproveitar os dias bons e todos nos procurávamos divertir.

Para onde terá navegado a barca, nessa tarde? Não me lembro, mas dificilmente terá ido longe. No quadro, nem parece deslocar-se. Não há velas içadas na árvore que faz de mastro e o pendão ondula preguiçosamente, sem se estender nem cair de todo, como se soprasse alguma aragem. O homem de barrete preto e vestes rubras que canta, a bombordo, rema apenas de um lado, com uma colher comprida. Se o fizesse com ânimo, obrigaria a embarcação a rodar, sem progredir.

Quantas pessoas leva a barca dos tolos? Serão doze. Há mais duas figuras pintadas, mas são estranhas ao grupo. Uma delas quase se esconde no ramo de árvore que encima o mastro. Poderá ser uma coruja. Não espantaria que Bosch tivesse pintado um símbolo de sabedoria a dominar o grupo de palermas. A outra encontra-se na extremidade do bastão que o bobo segura. Poderá ser parte dele, ou representar uma velha oculta na vegetação, a coscuvilhar.

A ser a última ceia, seria preciso adivinhar quem fazia de Cristo. Excluo-me da lista, mas não proponho qualquer nome. Judas poderá ser qualquer um.

A mesa ultrapassa a borda da embarcação por bombordo, para que os que se recreiam na água possam participar no festim. Não se vê grande coisa para comer. O único prato à vista contém pequenos frutos vermelhos. Poderão ser cerejas, ou framboesas. A festa irá adiantada. O barril que se vê à ré terá levado já algum desbaste.

Os cantores são cinco.

A freira e o frade mostram-se de perfil. Ela, de touca branca e véu escuro, dedilha um instrumento de cordas, parecido com um bandolim. Olha para cima e tem o nariz quase direito, com uma ligeira convexidade a meio. O frade tonsurado tem a testa alta, o nariz comprido com uma saliência no dorso, as orelhas pequenas e o pescoço magro.

As três figuras do segundo plano vestem de vermelho.

Pendurado na adriça da vela grande está o que parece ser um odre com vinho. Esconde parcialmente o rosto do personagem do meio.

Afonso é o frade que canta. Reparem que não digo os nomes em flamengo. Aportuguesei-os. É que alguns são quase impossíveis de traduzir.

Apesar do aspeto franzino, o Afonso tem duas mulheres. Sabem uma da outra, mas procuram não se desentender, pois o frade oferece-lhes roupas vistosas e jantares opíparos. 

Uma delas é a madre Paula, que figura no quadro, a tocar. A outra é a Hermengarda. Não está no barco. Tem a cara faceira e o corpo arredondado e apetitoso. Conheço-lhe os lençóis.

O Manuel Birrento é o homem de barrete escuro e camisa vermelha que canta atrás da freira. Tem o braço direito levantado para realçar algum verso da cantiga. Nunca gostei dele. Tem mau humor e vocifera com facilidade. Em dada ocasião, chegámos a trocar alguns sopapos.

Rodolfo é o que está á popa, a vomitar. É jovem, mas tem as articulações dos dedos das mãos nodosas. Sofre de gota e não tem cautela com o que come e bebe.

João é o bêbado deitado à proa. Está amparado pela mulher de nariz muito comprido, com um ar feliz. Parece gostar dele. Oferece-lhe mais vinho.

Esqueci o nome do homem de camisa alaranjada e nariz curvo que procura subir à árvore. Poderá ter um pão comprido na mão. Presas ao tronco estão o que parecem ser aves cozinhadas, possivelmente patos.

O bobo Josias, de nariz comprido, desinteressou-se do grupo e bebe sozinho, concentradamente, instalado à popa, num galho. Parece com pouca vontade de dizer piadas. Será a única pessoa sensata, a bordo.

Os dois homens que estão na água, a estibordo, têm pé. Um, despido, ampara-se na borda, como se fosse subir.

Sou eu. 

O outro chama-se Joaquim. Transporta cuidadosamente uma taça, mostrando cuidado para não a verter. Poderá ser vinho do garrafão pendurado na borda, aparentemente para refrescar a bebida. Seria mais fácil servirem-se diretamente dele, se os da barca tivessem juízo.

Bosh terá procurado retratar a tolice dos homens que se divertem sem pensar no amanhã, descuidando a salvação das suas almas. Parece ser uma das mensagens que o pintor flamengo repete com mais insistência: a inutilidade de pregar o bem. Alguns humanos estão destinados a perder-se.

Terá razão. Eu continuo a pagar o preço dos meus erros.

Meti-me com a Hermengarda e o frade soube disso. Acho que foi o Manuel Birrento quem chibou.

O frade era bruxo, ou tinha amigos bruxos. Lançou-me uma praga que dura há cinco séculos. Fiquei sempre jovem e as mulheres atraem-me.

Qualquer fêmea de homem, bonita ou feia, me incendeia os sentidos. Tenho grandes ereções, por vezes dolorosas, que se desvanecem sempre que me aproximo de uma rapariga despida. A maldição do frade faz com que o ardor me esmoreça. Lembra-me o suplício de Tântalo, mas ele ofendeu os deuses e eu limitei-me a tirar proveito de uma mulher oferecida. Chego a correr perigo. Já tenho fugido de maridos e namorados que não sabem que de mim nada há a temer. 

Por vezes, apaixono-me. Aconteceu com a Serena, que era bela como a lua e estava prestes a casar com um rico negociante de tecidos. Seduzi-a. O desejo apagou-se quando me deitei sobre ela. Cuspiu-me na cara. Nunca me senti tão humilhado.

Vezes sem conta, olho a barca dos loucos e chamo por Frei Afonso, a ver se me escuta. Hermengarda era mulher vivaça e deitava-se com muitos. Foi um castigo exagerado para a importância da falta. 

Passou o ano de 1.500, e também o de 2.000, sem que o mundo acabasse. Há muito tempo que desejo morrer. Quem dera ter-me afogado à beira daquela barca!