DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

 


 NÃO PODES ACREDITAR
   EM TUDO O QUE TE DIZEM!
  



− Eu não sou quem pareço. Os teus olhos enganam-te. Sou um Anjo do Senhor e saúdo-te. O teu Pai enviou-me para te tranquilizar.

Jesus ganhou algum alento. A sua parte humana suportara com dificuldade os tratos já sofridos.

O que tinha forma de homem e que se proclamava Anjo mantinha a mão direita apoiada firmemente no seu ombro. Vestia demasiado bem para um soldado, mas usava uma coleira de pregos, semelhante às dos cães habituados a enfrentar lobos. Deveria tratar-se de um símbolo. Em combate, de pouco serviria.

Homem ou Anjo, continuou a falar.

− Não terás de beber todo esse vinho amargo. Quando chegar a hora, eu e os meus companheiros viremos soltar-te. O céu fica mais perto do que pensas. Daqui até lá, são dois voos de andorinha. O teu Pai amoroso espera-te no alto.

Afastou-se e sumiu na multidão.

Cristo não se mexeu. Era embaraçoso permanecer naquele palanque, nu, com tantos olhos postos nele. 

Os soldados mandaram-no descer. Jesus experimentou o peso da cruz e achou-a demasiado pesada para um homem só. Como ninguém o ajudava, lá a alçou. Começou a subir a calçada íngreme que levava ao calvário. Os que o viam passar zombavam dele.

− Rei dos judeus… Que bela coroa te puseram…

Enquanto ajeitava melhor a cruz sob o ombro direito, lembrou-se do curto espaço de tempo em que vivera com Madalena. Aquela mulher era tão doce… Poderia ter casado com ela. Partiriam para longe e iriam morar numa terra onde ninguém os conhecesse. Talvez para o Egito, onde vivera os seus anos mais verdes e de que mal se lembrava. Um bom carpinteiro arranjava emprego em qualquer lado. Seria bom terem tido filhos. Gostava tanto de crianças…

Madalena nunca abrira a alma para contar o que a empurrara para aquela vida e ele tivera o cuidado de não fazer perguntas.

Acabara por a deixar para trás. Deus Pai mandava. Cabia-lhe obedecer.

Ao trocar Nazaré pelas estradas do mundo, pusera de lado o conforto relativo de que gozava, com refeições modestas mas servidas a horas certas e um teto sob o qual se abrigar. Metera-se a caminho sem um plano definido. Sabia que tinha o dever de espalhar a palavra do Pai, do modo como aprendera a lê-la na própria alma. Os sacerdotes e os fariseus falavam de um Lei antiga em que o Todo-Poderoso se conservava distante do povo humilde que O adorava. Ainda não sabiam disso, mas o tempo deles passara. Fazia falta um novo testemunho. Cabia-lhe proclamá-lo. Dirigia-se a quem lhe dava atenção, quase como se Deus modelasse parte do Seu pensamento quando falava pela sua boca.

A despedida da mãe fora difícil. Ambos tiveram dificuldade em se fitar de olhos nos olhos. Maria, por nunca ter partilhado as palavras do Anjo. O filho, por não ser capaz de compartir com ela o essencial da sua missão. Saíra de casa levando apenas a roupa que vestia, um manto comprido de lã e um bornal com uma merenda modesta.

Sabia que acabaria por ser ouvido, mas não esperava que acontecesse tão depressa. As gentes pareciam ávidas por palavras de conforto. Passou a ser seguido por um pequeno grupo de homens e mulheres. Aos poucos, selecionou uns tantos discípulos. Acabaram por ser doze, como as tribos de Israel. Recusou as mulheres. O grupo andava por onde calhava e, muitas vezes, dormia ao relento. Se calhava chover, abrigavam-se numa estalagem, com quatro, ou mesmo cinco, a dormir no chão do mesmo quarto. Não tinham condições para levarem companheiras. Mesmo os que tinham esposa e filhos, deixaram-nos para o seguirem. Os homens maduros que o acompanhavam abandonaram as terras e os trabalhos, para integrarem uma família nova.

Deixaram de ter meios de subsistência e comiam o que lhes davam. Os camponeses e pescadores das aldeias em que Jesus pregava eram pobres, mas partilhavam o que tinham: pão, azeitonas, cebolas, peixe (se estivessem junto ao rio) ocasionalmente alguns ovos. Havia entre eles alguns que sabiam ler e escrever, como Mateus e João, mas a maioria dos apóstolos era analfabeta.

Jesus, por vezes, surpreendia-se com as expressões dos rostos dos ouvintes. O seu entendimento ultrapassava o deles. Por isso lhe chamavam Mestre. Era como se lhe bebessem as palavras e as tentassem fixar para serem capazes de as reproduzir mais tarde.

O condenado estava aflito para urinar. Tinham passado longas horas sobre a sua prisão e não estivera em qualquer lugar com alguma privacidade. Falou da sua necessidade ao soldado que seguia a seu lado. O romano riu-se dele:

− Aguenta-te… Ou faz aí mesmo…

Ao chegar ao calvário, Jesus poisou a cruz no chão. Começou a desconfiar do Anjo quando o mandaram deitar em cima dela.

Sentiu dores violentas quando lhe pregaram um cravo de bronze em cada pulso. Agora, já nem podia abençoar. Depois, colocaram-lhe um pé em cima do outro e espetaram-lhe, à martelada, uma cavilha comprida, das que usavam na construção de casas e embarcações. Jesus teve de morder os lábios para não gritar.

Quando elevaram a cruz, julgou que os pulsos se iam rasgar sob o peso do corpo. A ajuda tardava. Já não restava muito tempo para que o pudessem retirar dali com vida.

Passaram horas. Escurecia e os curiosos afastavam-se. Jesus sentia a dor maior nos pulsos e na alma. Aproximava-se do momento em que receberia a morte como uma bênção.

Que seria da mãe? As notícias corriam e Nazaré não era longe. A esta hora, Maria devia estar a caminho para tentar confortar o filho nos momentos finais. Apesar do sofrimento, Jesus sentiu-se abraçado.

Que saberia a mãe do seu destino? Provavelmente, bem mais do que confessava. Lembrava-se de uma vez, quando era muito pequeno, a mãe lhe chamar filho de Deus. De vez em quando, começava a contar uma história em que entrava um anjo, mas interrompia-se, antes de a terminar.

Quando o horizonte começou a clarear a nascente, Jesus Cristo entendeu que tinha sido enganado. O que falara com ele não era Anjo. O Pai não estava perto. Abandonara o Filho à sanha dos inimigos.

Lamentou-se, poucos minutos antes de morrer:

− Meu Pai, meu Pai, por que me abandonaste?




Mostra-se um pormenor da Coroação de Espinhos. O quadro encontra-se em Londres, na Galeria Nacional. Terá sido oferecido por Damião de Góis à Igreja de Nossa Senhora da Várzea, em Alenquer e posteriormente negociado, em circunstâncias desconhecidas. . 



 

 


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