NÃO PODES
ACREDITAR
EM TUDO O QUE TE DIZEM!
− Eu não sou
quem pareço. Os teus olhos enganam-te. Sou um Anjo do Senhor e saúdo-te. O teu
Pai enviou-me para te tranquilizar.
Jesus ganhou
algum alento. A sua parte humana suportara com dificuldade os tratos já
sofridos.
O que tinha
forma de homem e que se proclamava Anjo mantinha a mão direita apoiada
firmemente no seu ombro. Vestia demasiado bem para um soldado, mas usava uma
coleira de pregos, semelhante às dos cães habituados a enfrentar lobos. Deveria
tratar-se de um símbolo. Em combate, de pouco serviria.
Homem ou Anjo, continuou
a falar.
− Não terás de
beber todo esse vinho amargo. Quando chegar a hora, eu e os meus companheiros
viremos soltar-te. O céu fica mais perto do que pensas. Daqui até lá, são dois
voos de andorinha. O teu Pai amoroso espera-te no alto.
Afastou-se e
sumiu na multidão.
Cristo não se
mexeu. Era embaraçoso permanecer naquele palanque, nu, com tantos olhos postos
nele.
Os soldados
mandaram-no descer. Jesus experimentou o peso da cruz e achou-a demasiado
pesada para um homem só. Como ninguém o ajudava, lá a alçou. Começou a subir a
calçada íngreme que levava ao calvário. Os que o viam passar zombavam dele.
− Rei dos
judeus… Que bela coroa te puseram…
Enquanto
ajeitava melhor a cruz sob o ombro direito, lembrou-se do curto espaço de tempo
em que vivera com Madalena. Aquela mulher era tão doce… Poderia ter casado com
ela. Partiriam para longe e iriam morar numa terra onde ninguém os conhecesse.
Talvez para o Egito, onde vivera os seus anos mais verdes e de que mal se
lembrava. Um bom carpinteiro arranjava emprego em qualquer lado. Seria bom
terem tido filhos. Gostava tanto de crianças…
Madalena nunca
abrira a alma para contar o que a empurrara para aquela vida e ele tivera o
cuidado de não fazer perguntas.
Acabara por a
deixar para trás. Deus Pai mandava. Cabia-lhe obedecer.
Ao trocar Nazaré
pelas estradas do mundo, pusera de lado o conforto relativo de que gozava, com
refeições modestas mas servidas a horas certas e um teto sob o qual se abrigar.
Metera-se a caminho sem um plano definido. Sabia que tinha o dever de espalhar
a palavra do Pai, do modo como aprendera a lê-la na própria alma. Os sacerdotes
e os fariseus falavam de um Lei antiga em que o Todo-Poderoso se conservava
distante do povo humilde que O adorava. Ainda não sabiam disso, mas o tempo deles
passara. Fazia falta um novo testemunho. Cabia-lhe proclamá-lo. Dirigia-se a
quem lhe dava atenção, quase como se Deus modelasse parte do Seu pensamento
quando falava pela sua boca.
A despedida da
mãe fora difícil. Ambos tiveram dificuldade em se fitar de olhos nos olhos.
Maria, por nunca ter partilhado as palavras do Anjo. O filho, por não ser capaz
de compartir com ela o essencial da sua missão. Saíra de casa levando apenas a
roupa que vestia, um manto comprido de lã e um bornal com uma merenda modesta.
Sabia que
acabaria por ser ouvido, mas não esperava que acontecesse tão depressa. As
gentes pareciam ávidas por palavras de conforto. Passou a ser seguido por um
pequeno grupo de homens e mulheres. Aos poucos, selecionou uns tantos
discípulos. Acabaram por ser doze, como as tribos de Israel. Recusou as
mulheres. O grupo andava por onde calhava e, muitas vezes, dormia ao relento.
Se calhava chover, abrigavam-se numa estalagem, com quatro, ou mesmo cinco, a
dormir no chão do mesmo quarto. Não tinham condições para levarem companheiras.
Mesmo os que tinham esposa e filhos, deixaram-nos para o seguirem. Os homens
maduros que o acompanhavam abandonaram as terras e os trabalhos, para
integrarem uma família nova.
Deixaram de ter
meios de subsistência e comiam o que lhes davam. Os camponeses e pescadores das
aldeias em que Jesus pregava eram pobres, mas partilhavam o que tinham: pão,
azeitonas, cebolas, peixe (se estivessem junto ao rio) ocasionalmente alguns
ovos. Havia entre eles alguns que sabiam ler e escrever, como Mateus e João,
mas a maioria dos apóstolos era analfabeta.
Jesus, por
vezes, surpreendia-se com as expressões dos rostos dos ouvintes. O seu
entendimento ultrapassava o deles. Por isso lhe chamavam Mestre. Era como se
lhe bebessem as palavras e as tentassem fixar para serem capazes de as
reproduzir mais tarde.
O condenado
estava aflito para urinar. Tinham passado longas horas sobre a sua prisão e não
estivera em qualquer lugar com alguma privacidade. Falou da sua necessidade ao
soldado que seguia a seu lado. O romano riu-se dele:
− Aguenta-te… Ou
faz aí mesmo…
Ao chegar ao
calvário, Jesus poisou a cruz no chão. Começou a desconfiar do Anjo quando o
mandaram deitar em cima dela.
Sentiu dores
violentas quando lhe pregaram um cravo de bronze em cada pulso. Agora, já nem
podia abençoar. Depois, colocaram-lhe um pé em cima do outro e espetaram-lhe, à
martelada, uma cavilha comprida, das que usavam na construção de casas e
embarcações. Jesus teve de morder os lábios para não gritar.
Quando elevaram
a cruz, julgou que os pulsos se iam rasgar sob o peso do corpo. A ajuda
tardava. Já não restava muito tempo para que o pudessem retirar dali com vida.
Passaram horas.
Escurecia e os curiosos afastavam-se. Jesus sentia a dor maior nos pulsos e na
alma. Aproximava-se do momento em que receberia a morte como uma bênção.
Que seria da
mãe? As notícias corriam e Nazaré não era longe. A esta hora, Maria devia estar
a caminho para tentar confortar o filho nos momentos finais. Apesar do
sofrimento, Jesus sentiu-se abraçado.
Que saberia a
mãe do seu destino? Provavelmente, bem mais do que confessava. Lembrava-se de
uma vez, quando era muito pequeno, a mãe lhe chamar filho de Deus. De vez em
quando, começava a contar uma história em que entrava um anjo, mas
interrompia-se, antes de a terminar.
Quando o
horizonte começou a clarear a nascente, Jesus Cristo entendeu que tinha sido
enganado. O que falara com ele não era Anjo. O Pai não estava perto. Abandonara
o Filho à sanha dos inimigos.
Lamentou-se,
poucos minutos antes de morrer:
− Meu Pai, meu
Pai, por que me abandonaste?
Mostra-se um pormenor da Coroação de Espinhos. O quadro encontra-se em Londres, na Galeria Nacional. Terá sido oferecido por Damião de Góis à Igreja de Nossa Senhora da Várzea, em Alenquer e posteriormente negociado, em circunstâncias desconhecidas. .
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