OS CONTOS DE
HERTOGENBOSCH
ESTIVE NO INFERNO
Estive no
Inferno. Fiz por lá uma passagem rápida.
Não tive a
companhia de um poeta cuja harpa soasse de modo a serenar o cão das três
cabeças e a pôr travão aos destemperos dos diabos. No entanto, não entrei lá
sozinho. Tão pouco fui tentar rever a mulher amada. A minha “Beatriz” está bem
e recomenda-se. Deixou a juventude lá muito para trás, engordou e piorou o
feitio, mas vamo-nos entendendo.
Entrei naquele
espaço maldito seduzido pelo olhar de Jerónimo Bosch. Pretendia entender as
raízes dos seus medos e conhecer mais de perto os pesadelos que assombravam os
homens da Flandres na época em que pintou.
Perdoem-me por
não falar ainda do meu guia. Prometo que o irei apresentar numa das páginas
seguintes.
Haverá quem
pense de forma diferente da minha, mas considero que Bosh ilustrou melhor o Mal
do que o Bem. Todos conhecemos artistas que desenharam anjos mais perfeitos que
os dele. Não acontece o mesmo com os monstros e demónios. Nesse aspeto, o
artista é inigualável. Preencheu as suas telas com uma escrita pictórica
intensa e assustadora.
Cheguei a
imaginar que o pintor tivesse procurado adentrar as almas de familiares e
vizinhos para soletrar nelas os medos primordiais. Não era possível fazê-lo,
nem seria necessário. Bastou a Bosch recorrer às próprias memórias e chamar de
volta os pesadelos incutidos na sua alma ao longo dos primeiros anos de vida. O
miúdo Jeroen terá ouvido falar da proximidade do ano de 1500 e da possibilidade
de estar a chegar o fim do mundo. Os padres que pregavam nas igrejas e as tias
velhas que contavam histórias junto à fogueiras de inverno foram imprimindo os
seus terrores no espírito duma criança saudável, mas sensível. Os espetros
estavam guardados no saco das recordações. Quando chegou à idade adulta, Bosh foi
capaz de os chamar e de lhes dar vidas novas nas telas que ia pintando.
Quererão saber
como entrei no Inferno e como saí de lá são e salvo.
Vou contar-vos o
que aconteceu, mas não estou certo de que acreditem no que escrevo. Na verdade,
não poderia ter entrado nem saído sem a ajuda do meu amigo Joaquim. Será a
altura de vos falar dele.
Tinha passado tanto
tempo a olhar aquele quadro que imaginava tratar por tu cada personagem. Pior,
pensei. A dada altura, achei que certas figuras ali representadas se tinham
habituado a mim. Terá sido o caso desse pequeno monstro.
Não se chama
mesmo Joaquim. Tem um desses nomes flamengos impronunciáveis, mas compreende a
minha dificuldade linguística e não se importa que o trate deste modo.
Coloquei aqui o
retrato do Joaquim, para que reparem bem nele.
Gosta de usar um
enorme gorro de cor alaranjada. É um ser desconfiado e, enquanto fala comigo,
vai espreitando os cantos do quadro. A sua bela barba grisalha quase o faz
parecer respeitável. Quase, porque tem bem à vista os pés de batráquio e não se
esforça por esconder a cauda comprida e ondulada. Terá os ouvidos vulneráveis,
pois cobre-os com escudos metálicos de onde saem espigas de ferro.
Tenho pouco de
padre e confesso que raramente me preocupa o destino dos meus interlocutores. A
palavra escapou-me, mas não a retiro. A verdade é que uns tantos desses
figurantes dialogam comigo. Bosh tentou empurrar os seus monstros para o lado
do Mal, mas apenas o terá conseguido em parte. Palpitam em muitos deles
corações humanos. Alguns desses pequenos seres poderão escapar à eterna
danação.
Nas primeiras
ocasiões em que nos encontrámos não se mostrou simpático mas, de certo modo,
acabou por me aceitar. Não terá muita gente com quem conviver.
Foi até ele quem
primeiro rompeu o silêncio. Perguntou-me:
− Quem és? O que
fazes aqui?
− Vou responder
primeiro à segunda pergunta. Sou um admirador dos quadros do pintor que te
criou.
− És como ele?
Fiquei, durante
instantes, sem saber o que dizer. Quem conheceria os grupos em que o pequeno
ser enquadrava os outros? Existiam maneiras diferentes de classificar os entes
vivos e um número ainda maior de possibilidades de situar os personagens de
ficção. Como ele não parecia ter a mente complicada, escolhi a resposta mais
simples.
− Sim, sou humano. Isso não se nota?
− Aprendi há
muito que nem tudo o que parece é.
− Achas que me
visto de maneira muito diferente do artista que te fez?
− Sei lá como é
que ele se vestia… Passam aqui em frente muitas pessoas que trajam como tu.
− Não sabes o
nome dele?
− Não. Nunca mo
disse.
− E o rosto
dele? Esqueceste-o?
O homem das
barbas grisalhas pareceu entristecer.
− Mal o vi. A
última coisa que me pintou foram os olhos. Deve ter-se ido embora antes de a
tinta secar.
A esta conversa,
seguiram-se outras. O pequeno monstro do barrete flamejante não tinha muita
gente com quem tagarelar e habituou-se a escutar-me. Era reservado. Eu,
habitualmente, falava pelos dois.
Às tantas, veio
o Inferno à baila. Julgo que fui eu a abordar primeiro a questão.
− O teu criador
preocupava-se muito com a perdição e com o inferno. Pintou-os muitas vezes.
− Pintou? Eu só
conheço um dos quadros. É aquele em que está o homem-árvore.
− Bem sei. É um
dos painéis laterais do “Jardim das Delícias”. Sabes? Estou convencido de que a
melhor maneira de conhecer a alma de um homem é apreciar-lhe a obra.
− Crês que é
mesmo preciso conhecer as almas? Não são todas parecidas umas com as outras?
− Acho que não.
Julgo que diferem mais do que as caras.
− É a tua
opinião…
− Pois… Gostaria
de saber mais sobre Jerónimo Bosch, o teu criador. No meu modo de pensar, para
o entender é preciso olhar de perto os infernos que pintou.
− Queres ir lá?
Quase me
engasguei com a pergunta.
− Aonde? Ao
Inferno?
− Era disso que
estávamos a falar.
− Deixam-me
entrar? E depois, como é que de lá saio? E se os diabos me agarram?
− Um destes dias
disseste que não acreditavas neles…
− Bem… Eu…
− Queres ir ou
não? Posso levar-te e trazer-te. Conhecem-me lá bem. Terás é de vestir outra
roupa, para não dares tanto nas vistas. Ou, então, vais nu. Os condenados andam
quase todos assim.
Reparei que o
Joaquim falava dos danados como se referisse os hóspedes dum hotel. Nunca o vi
emitir sobre eles juízos de valor.
E um dia, lá
fomos. Esperei por uma altura em que não estivesse ninguém na sala do museu,
despi-me e escondi a roupa atrás de um caixote de lixo. Depois, segui o Joaquim
até ao quadro e entrei com ele na grande caixa metálica cilíndrica.
Senti que a
estrutura descia, antes de se deter.
Quando a porta
se abriu, eu estava no Inferno. Curiosamente, não senti calor. Ou já não ardia
como dantes, ou a parte de mim que ali entrou não entendia as temperaturas.
Logo à minha
frente, meia dúzia de cães infernais com focinhos e caudas muito compridos e
três dedos em cada pata devoravam as entranhas de um cavaleiro que conservava
vestida a parte de cima da armadura e ainda segurava uma taça na mão esquerda. Suponho
que se tratava de um sacrílego.
Um pouco acima,
um demónio de armadura com cabeça de peixe e barbatanas no lugar das orelhas
trespassava com a grande espada um condenado que tinha a cabeça tapada com um
elmo metálico.
O homem-árvore, de
tronco e rosto pálidos, estava perto de nós, mas olhava para a direita, para a
frente do quadro. Mais abaixo corria um rio estreito. Depois, via-se uma série
de enormes instrumentos musicais rodeados de demónio e de amaldiçoados.
Um grande
pássaro sentado num cadeirão ia comendo e defecando gente.
O que mais me
impressionou foi a porca no fundo do painel, a abraçar e beijar um condenado.
Em frente, estava um monstro coberto com uma armadura metálica que apenas lhe
deixava de fora os membros inferiores. Tinha uma seta espetada numa das coxas e
levava, pendurado no penacho do elmo, um pé humano decepado.
A dada altura, o
meu guia chamou-me discretamente:
− Vem! O museu
está quase a encerrar.
Segui-o de volta
até ao cilindro metálico. Subimos e encontrei-me fora do quadro.
Corri a
vestir-me. Felizmente, não havia ninguém na sala.
Despedi-me do
Joaquim e agradeci-lhe a visita guiada. Tinha-lhe dito que me chamava António.
Não percebi por que razão, quando nos despedimos, me chamou Tundal.
Nessa noite, tive
um pesadelo, o que não admirava. Sonhei que a porca da touca de freira tentava
meter-se na minha cama.
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