DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

 


                OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH    

  ESTIVE NO INFERNO


Estive no Inferno. Fiz por lá uma passagem rápida.

Não tive a companhia de um poeta cuja harpa soasse de modo a serenar o cão das três cabeças e a pôr travão aos destemperos dos diabos. No entanto, não entrei lá sozinho. Tão pouco fui tentar rever a mulher amada. A minha “Beatriz” está bem e recomenda-se. Deixou a juventude lá muito para trás, engordou e piorou o feitio, mas vamo-nos entendendo.

Entrei naquele espaço maldito seduzido pelo olhar de Jerónimo Bosch. Pretendia entender as raízes dos seus medos e conhecer mais de perto os pesadelos que assombravam os homens da Flandres na época em que pintou.

Perdoem-me por não falar ainda do meu guia. Prometo que o irei apresentar numa das páginas seguintes.

Haverá quem pense de forma diferente da minha, mas considero que Bosh ilustrou melhor o Mal do que o Bem. Todos conhecemos artistas que desenharam anjos mais perfeitos que os dele. Não acontece o mesmo com os monstros e demónios. Nesse aspeto, o artista é inigualável. Preencheu as suas telas com uma escrita pictórica intensa e assustadora.

Cheguei a imaginar que o pintor tivesse procurado adentrar as almas de familiares e vizinhos para soletrar nelas os medos primordiais. Não era possível fazê-lo, nem seria necessário. Bastou a Bosch recorrer às próprias memórias e chamar de volta os pesadelos incutidos na sua alma ao longo dos primeiros anos de vida. O miúdo Jeroen terá ouvido falar da proximidade do ano de 1500 e da possibilidade de estar a chegar o fim do mundo. Os padres que pregavam nas igrejas e as tias velhas que contavam histórias junto à fogueiras de inverno foram imprimindo os seus terrores no espírito duma criança saudável, mas sensível. Os espetros estavam guardados no saco das recordações. Quando chegou à idade adulta, Bosh foi capaz de os chamar e de lhes dar vidas novas nas telas que ia pintando.

Quererão saber como entrei no Inferno e como saí de lá são e salvo.

Vou contar-vos o que aconteceu, mas não estou certo de que acreditem no que escrevo. Na verdade, não poderia ter entrado nem saído sem a ajuda do meu amigo Joaquim. Será a altura de vos falar dele.

Tinha passado tanto tempo a olhar aquele quadro que imaginava tratar por tu cada personagem. Pior, pensei. A dada altura, achei que certas figuras ali representadas se tinham habituado a mim. Terá sido o caso desse pequeno monstro.

Não se chama mesmo Joaquim. Tem um desses nomes flamengos impronunciáveis, mas compreende a minha dificuldade linguística e não se importa que o trate deste modo.

Coloquei aqui o retrato do Joaquim, para que reparem bem nele.


Gosta de usar um enorme gorro de cor alaranjada. É um ser desconfiado e, enquanto fala comigo, vai espreitando os cantos do quadro. A sua bela barba grisalha quase o faz parecer respeitável. Quase, porque tem bem à vista os pés de batráquio e não se esforça por esconder a cauda comprida e ondulada. Terá os ouvidos vulneráveis, pois cobre-os com escudos metálicos de onde saem espigas de ferro.

Tenho pouco de padre e confesso que raramente me preocupa o destino dos meus interlocutores. A palavra escapou-me, mas não a retiro. A verdade é que uns tantos desses figurantes dialogam comigo. Bosh tentou empurrar os seus monstros para o lado do Mal, mas apenas o terá conseguido em parte. Palpitam em muitos deles corações humanos. Alguns desses pequenos seres poderão escapar à eterna danação.

Nas primeiras ocasiões em que nos encontrámos não se mostrou simpático mas, de certo modo, acabou por me aceitar. Não terá muita gente com quem conviver.

Foi até ele quem primeiro rompeu o silêncio. Perguntou-me:

− Quem és? O que fazes aqui?

− Vou responder primeiro à segunda pergunta. Sou um admirador dos quadros do pintor que te criou.

− És como ele?

Fiquei, durante instantes, sem saber o que dizer. Quem conheceria os grupos em que o pequeno ser enquadrava os outros? Existiam maneiras diferentes de classificar os entes vivos e um número ainda maior de possibilidades de situar os personagens de ficção. Como ele não parecia ter a mente complicada, escolhi a resposta mais simples.

 − Sim, sou humano. Isso não se nota?

− Aprendi há muito que nem tudo o que parece é.

− Achas que me visto de maneira muito diferente do artista que te fez?

− Sei lá como é que ele se vestia… Passam aqui em frente muitas pessoas que trajam como tu.

− Não sabes o nome dele?

− Não. Nunca mo disse. 

− E o rosto dele? Esqueceste-o?

O homem das barbas grisalhas pareceu entristecer.

− Mal o vi. A última coisa que me pintou foram os olhos. Deve ter-se ido embora antes de a tinta secar.

A esta conversa, seguiram-se outras. O pequeno monstro do barrete flamejante não tinha muita gente com quem tagarelar e habituou-se a escutar-me. Era reservado. Eu, habitualmente, falava pelos dois.

Às tantas, veio o Inferno à baila. Julgo que fui eu a abordar primeiro a questão.

− O teu criador preocupava-se muito com a perdição e com o inferno. Pintou-os muitas vezes.

− Pintou? Eu só conheço um dos quadros. É aquele em que está o homem-árvore.

− Bem sei. É um dos painéis laterais do “Jardim das Delícias”. Sabes? Estou convencido de que a melhor maneira de conhecer a alma de um homem é apreciar-lhe a obra.

− Crês que é mesmo preciso conhecer as almas? Não são todas parecidas umas com as outras?

− Acho que não. Julgo que diferem mais do que as caras.

− É a tua opinião…

− Pois… Gostaria de saber mais sobre Jerónimo Bosch, o teu criador. No meu modo de pensar, para o entender é preciso olhar de perto os infernos que pintou.

− Queres ir lá?

Quase me engasguei com a pergunta.

− Aonde? Ao Inferno?

− Era disso que estávamos a falar.

− Deixam-me entrar? E depois, como é que de lá saio? E se os diabos me agarram?

− Um destes dias disseste que não acreditavas neles…

− Bem… Eu…

− Queres ir ou não? Posso levar-te e trazer-te. Conhecem-me lá bem. Terás é de vestir outra roupa, para não dares tanto nas vistas. Ou, então, vais nu. Os condenados andam quase todos assim.

Reparei que o Joaquim falava dos danados como se referisse os hóspedes dum hotel. Nunca o vi emitir sobre eles juízos de valor.

E um dia, lá fomos. Esperei por uma altura em que não estivesse ninguém na sala do museu, despi-me e escondi a roupa atrás de um caixote de lixo. Depois, segui o Joaquim até ao quadro e entrei com ele na grande caixa metálica cilíndrica.

Senti que a estrutura descia, antes de se deter.

Quando a porta se abriu, eu estava no Inferno. Curiosamente, não senti calor. Ou já não ardia como dantes, ou a parte de mim que ali entrou não entendia as temperaturas.

Logo à minha frente, meia dúzia de cães infernais com focinhos e caudas muito compridos e três dedos em cada pata devoravam as entranhas de um cavaleiro que conservava vestida a parte de cima da armadura e ainda segurava uma taça na mão esquerda. Suponho que se tratava  de um sacrílego.

Um pouco acima, um demónio de armadura com cabeça de peixe e barbatanas no lugar das orelhas trespassava com a grande espada um condenado que tinha a cabeça tapada com um elmo metálico.

O homem-árvore, de tronco e rosto pálidos, estava perto de nós, mas olhava para a direita, para a frente do quadro. Mais abaixo corria um rio estreito. Depois, via-se uma série de enormes instrumentos musicais rodeados de demónio e de amaldiçoados.

Um grande pássaro sentado num cadeirão ia comendo e defecando gente.

O que mais me impressionou foi a porca no fundo do painel, a abraçar e beijar um condenado. Em frente, estava um monstro coberto com uma armadura metálica que apenas lhe deixava de fora os membros inferiores. Tinha uma seta espetada numa das coxas e levava, pendurado no penacho do elmo, um pé humano decepado.

A dada altura, o meu guia chamou-me discretamente:

− Vem! O museu está quase a encerrar.

Segui-o de volta até ao cilindro metálico. Subimos e encontrei-me fora do quadro.

Corri a vestir-me. Felizmente, não havia ninguém na sala.

Despedi-me do Joaquim e agradeci-lhe a visita guiada. Tinha-lhe dito que me chamava António. Não percebi por que razão, quando nos despedimos, me chamou Tundal.



Nessa noite, tive um pesadelo, o que não admirava. Sonhei que a porca da touca de freira tentava meter-se na minha cama.

 





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