DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

 

        OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH

        SABES QUEM SOU?

 



Passo muito tempo a olhar as reproduções dos quadros de Jerónimo Bosch. Às tantas, chego a pensar que certos personagens que neles figuram se habituaram a mim. Confesso que me afeiçoei a alguns dos pequenos monstros que o pintor imaginou.

Tentei meter conversa com alguns. Durante bastante tempo não tive êxito. Um deles acabou por responder à minha interpelação.

Era um monstro pequeno, de barba benfeita. Ostentava uma espécie de turbante, prolongado num lenço comprido. Calçava uma única bota vermelha. No pé esquerdo usava apenas uma meia, da mesma cor. Parecia beber de uma taça doirada, mas não se entendia como era capaz de o fazer, pois não tinha braços nem mãos. O pescoço continuava-se imediatamente na cintura pélvica. Avistei-o num canto da pintura e chamei-o:

− Ei… Tu!

Surpreendentemente, ouviu-me e voltou-se para trás.

− Que pretendes de mim?

Tinha uma voz grossa. Hesitei, antes de responder.

− Eu… bem… Se calhar, não quero nada. Perdoa-me por fazer perder o teu tempo. 

− Tempo é coisa que não me falta. Sabes quem sou?

Voltei a hesitar. Já estava arrependido por o ter interpelado.

− Confesso que não.

− Bem, assim já somos dois.

− Não entendo…

− Eu também não sei quem sou, nem o que faço aqui. Durante a maior parte do tempo não faço nada. E tu, sabes quem és? Tens um nome?

− Sim. Chamo-me António.

− Pois eu, nem nome tenho. A culpa é daquele pintor maluco que me inventou. Conhece-lo?

− Conheço os seus quadros. Admiro-o.

− Tens falado com ele?

Só então percebi que o pequeno monstro não dava conta da passagem do tempo. Jerónimo Bosh morrera há cinco séculos. Achei melhor não o desapontar.

− Ultimamente, não…

Levantei-me, com a intenção de me retirar. O monstro pareceu entristecer.

− Gostei de falar contigo, António. Espero que voltes cá. Tenho um favor a pedir-te.

− Se estiver ao meu alcance…

− Deve estar. Não é coisa complicada. Se encontrares o pintor, pergunta-lhe quem sou. Depois, vem-me dizer o meu nome. Eu sou fácil de encontrar. Estou sempre por aqui.

− Está bem. Até à vista.

Decidi não voltar a olhar aquele quadro sem ter inventado um nome e um passado para o meu novo amigo. 



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