OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH
A BARCA DOS
LOUCOS
Tenho a pintura
à minha frente, no ecrã do computador. Movimento o “rato” e faço a tela
deslizar. Vou ampliando os pormenores que me importa esclarecer.
Conheço todos os
que estão a bordo, uns melhor do que outros. É que naveguei nesta embarcação.
Nunca fiz parte da companha mas juntei-me a ela, algumas vezes. Acho, até, que
fiquei favorecido no retrato que o pintor traçou de mim.
Bosh pintou uma
festa. Aconteceu numa época estranha, no decurso da minha juventude. Já lá vai
tempo. Estávamos em 1499 e era verão. O número do ano seguinte teria dois zeros
no final. Havia quem garantisse que traria o fim do mundo.
Entre nós,
alguns temiam o inferno menos do que outros. Era preciso aproveitar os dias
bons e todos nos procurávamos divertir.
Para onde terá
navegado a barca, nessa tarde? Não me lembro, mas dificilmente terá ido longe.
No quadro, nem parece deslocar-se. Não há velas içadas na árvore que faz de
mastro e o pendão ondula preguiçosamente, sem se estender nem cair de todo,
como se soprasse alguma aragem. O homem de barrete preto e vestes rubras que
canta, a bombordo, rema apenas de um lado, com uma colher comprida. Se o
fizesse com ânimo, obrigaria a embarcação a rodar, sem progredir.
Quantas pessoas
leva a barca dos tolos? Serão doze. Há mais duas figuras pintadas, mas são
estranhas ao grupo. Uma delas quase se esconde no ramo de árvore que encima o
mastro. Poderá ser uma coruja. Não espantaria que Bosch tivesse pintado um
símbolo de sabedoria a dominar o grupo de palermas. A outra encontra-se na
extremidade do bastão que o bobo segura. Poderá ser parte dele, ou representar
uma velha oculta na vegetação, a coscuvilhar.
A ser a última
ceia, seria preciso adivinhar quem fazia de Cristo. Excluo-me da lista, mas não
proponho qualquer nome. Judas poderá ser qualquer um.
A mesa
ultrapassa a borda da embarcação por bombordo, para que os que se recreiam na
água possam participar no festim. Não se vê grande coisa para comer. O único
prato à vista contém pequenos frutos vermelhos. Poderão ser cerejas, ou
framboesas. A festa irá adiantada. O barril que se vê à ré terá levado já algum
desbaste.
Os cantores são
cinco.
A freira e o
frade mostram-se de perfil. Ela, de touca branca e véu escuro, dedilha um
instrumento de cordas, parecido com um bandolim. Olha para cima e tem o nariz
quase direito, com uma ligeira convexidade a meio. O frade tonsurado tem a
testa alta, o nariz comprido com uma saliência no dorso, as orelhas pequenas e
o pescoço magro.
As três figuras
do segundo plano vestem de vermelho.
Pendurado na
adriça da vela grande está o que parece ser um odre com vinho. Esconde
parcialmente o rosto do personagem do meio.
Afonso é o frade
que canta. Reparem que não digo os nomes em flamengo. Aportuguesei-os. É que
alguns são quase impossíveis de traduzir.
Apesar do aspeto
franzino, o Afonso tem duas mulheres. Sabem uma da outra, mas procuram não se
desentender, pois o frade oferece-lhes roupas vistosas e jantares
opíparos.
Uma delas é a
madre Paula, que figura no quadro, a tocar. A outra é a Hermengarda. Não está
no barco. Tem a cara faceira e o corpo arredondado e apetitoso. Conheço-lhe os
lençóis.
O Manuel
Birrento é o homem de barrete escuro e camisa vermelha que canta atrás da
freira. Tem o braço direito levantado para realçar algum verso da cantiga.
Nunca gostei dele. Tem mau humor e vocifera com facilidade. Em dada ocasião,
chegámos a trocar alguns sopapos.
Rodolfo é o que
está á popa, a vomitar. É jovem, mas tem as articulações dos dedos das mãos
nodosas. Sofre de gota e não tem cautela com o que come e bebe.
João é o bêbado
deitado à proa. Está amparado pela mulher de nariz muito comprido, com um ar
feliz. Parece gostar dele. Oferece-lhe mais vinho.
Esqueci o nome
do homem de camisa alaranjada e nariz curvo que procura subir à árvore. Poderá
ter um pão comprido na mão. Presas ao tronco estão o que parecem ser aves
cozinhadas, possivelmente patos.
O bobo Josias,
de nariz comprido, desinteressou-se do grupo e bebe sozinho, concentradamente,
instalado à popa, num galho. Parece com pouca vontade de dizer piadas. Será a
única pessoa sensata, a bordo.
Os dois homens
que estão na água, a estibordo, têm pé. Um, despido, ampara-se na borda, como
se fosse subir.
Sou eu.
O outro chama-se
Joaquim. Transporta cuidadosamente uma taça, mostrando cuidado para não a
verter. Poderá ser vinho do garrafão pendurado na borda, aparentemente para
refrescar a bebida. Seria mais fácil servirem-se diretamente dele, se os da
barca tivessem juízo.
Bosh terá
procurado retratar a tolice dos homens que se divertem sem pensar no amanhã, descuidando
a salvação das suas almas. Parece ser uma das mensagens que o pintor flamengo
repete com mais insistência: a inutilidade de pregar o bem. Alguns humanos
estão destinados a perder-se.
Terá razão. Eu
continuo a pagar o preço dos meus erros.
Meti-me com a
Hermengarda e o frade soube disso. Acho que foi o Manuel Birrento quem chibou.
O frade era
bruxo, ou tinha amigos bruxos. Lançou-me uma praga que dura há cinco séculos.
Fiquei sempre jovem e as mulheres atraem-me.
Qualquer fêmea
de homem, bonita ou feia, me incendeia os sentidos. Tenho grandes ereções, por
vezes dolorosas, que se desvanecem sempre que me aproximo de uma rapariga
despida. A maldição do frade faz com que o ardor me esmoreça. Lembra-me o
suplício de Tântalo, mas ele ofendeu os deuses e eu limitei-me a tirar proveito
de uma mulher oferecida. Chego a correr perigo. Já tenho fugido de maridos e
namorados que não sabem que de mim nada há a temer.
Por vezes,
apaixono-me. Aconteceu com a Serena, que era bela como a lua e estava prestes a
casar com um rico negociante de tecidos. Seduzi-a. O desejo apagou-se quando me
deitei sobre ela. Cuspiu-me na cara. Nunca me senti tão humilhado.
Vezes sem conta,
olho a barca dos loucos e chamo por Frei Afonso, a ver se me escuta.
Hermengarda era mulher vivaça e deitava-se com muitos. Foi um castigo exagerado
para a importância da falta.
Passou o ano de
1.500, e também o de 2.000, sem que o mundo acabasse. Há muito tempo que desejo
morrer. Quem dera ter-me afogado à beira daquela barca!
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