DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

 

                OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH
 

   A BARCA DOS LOUCOS

 

       


 

 

Tenho a pintura à minha frente, no ecrã do computador. Movimento o “rato” e faço a tela deslizar. Vou ampliando os pormenores que me importa esclarecer.

Conheço todos os que estão a bordo, uns melhor do que outros. É que naveguei nesta embarcação. Nunca fiz parte da companha mas juntei-me a ela, algumas vezes. Acho, até, que fiquei favorecido no retrato que o pintor traçou de mim.

Bosh pintou uma festa. Aconteceu numa época estranha, no decurso da minha juventude. Já lá vai tempo. Estávamos em 1499 e era verão. O número do ano seguinte teria dois zeros no final. Havia quem garantisse que traria o fim do mundo.

Entre nós, alguns temiam o inferno menos do que outros. Era preciso aproveitar os dias bons e todos nos procurávamos divertir.

Para onde terá navegado a barca, nessa tarde? Não me lembro, mas dificilmente terá ido longe. No quadro, nem parece deslocar-se. Não há velas içadas na árvore que faz de mastro e o pendão ondula preguiçosamente, sem se estender nem cair de todo, como se soprasse alguma aragem. O homem de barrete preto e vestes rubras que canta, a bombordo, rema apenas de um lado, com uma colher comprida. Se o fizesse com ânimo, obrigaria a embarcação a rodar, sem progredir.

Quantas pessoas leva a barca dos tolos? Serão doze. Há mais duas figuras pintadas, mas são estranhas ao grupo. Uma delas quase se esconde no ramo de árvore que encima o mastro. Poderá ser uma coruja. Não espantaria que Bosch tivesse pintado um símbolo de sabedoria a dominar o grupo de palermas. A outra encontra-se na extremidade do bastão que o bobo segura. Poderá ser parte dele, ou representar uma velha oculta na vegetação, a coscuvilhar.

A ser a última ceia, seria preciso adivinhar quem fazia de Cristo. Excluo-me da lista, mas não proponho qualquer nome. Judas poderá ser qualquer um.

A mesa ultrapassa a borda da embarcação por bombordo, para que os que se recreiam na água possam participar no festim. Não se vê grande coisa para comer. O único prato à vista contém pequenos frutos vermelhos. Poderão ser cerejas, ou framboesas. A festa irá adiantada. O barril que se vê à ré terá levado já algum desbaste.

Os cantores são cinco.

A freira e o frade mostram-se de perfil. Ela, de touca branca e véu escuro, dedilha um instrumento de cordas, parecido com um bandolim. Olha para cima e tem o nariz quase direito, com uma ligeira convexidade a meio. O frade tonsurado tem a testa alta, o nariz comprido com uma saliência no dorso, as orelhas pequenas e o pescoço magro.

As três figuras do segundo plano vestem de vermelho.

Pendurado na adriça da vela grande está o que parece ser um odre com vinho. Esconde parcialmente o rosto do personagem do meio.

Afonso é o frade que canta. Reparem que não digo os nomes em flamengo. Aportuguesei-os. É que alguns são quase impossíveis de traduzir.

Apesar do aspeto franzino, o Afonso tem duas mulheres. Sabem uma da outra, mas procuram não se desentender, pois o frade oferece-lhes roupas vistosas e jantares opíparos. 

Uma delas é a madre Paula, que figura no quadro, a tocar. A outra é a Hermengarda. Não está no barco. Tem a cara faceira e o corpo arredondado e apetitoso. Conheço-lhe os lençóis.

O Manuel Birrento é o homem de barrete escuro e camisa vermelha que canta atrás da freira. Tem o braço direito levantado para realçar algum verso da cantiga. Nunca gostei dele. Tem mau humor e vocifera com facilidade. Em dada ocasião, chegámos a trocar alguns sopapos.

Rodolfo é o que está á popa, a vomitar. É jovem, mas tem as articulações dos dedos das mãos nodosas. Sofre de gota e não tem cautela com o que come e bebe.

João é o bêbado deitado à proa. Está amparado pela mulher de nariz muito comprido, com um ar feliz. Parece gostar dele. Oferece-lhe mais vinho.

Esqueci o nome do homem de camisa alaranjada e nariz curvo que procura subir à árvore. Poderá ter um pão comprido na mão. Presas ao tronco estão o que parecem ser aves cozinhadas, possivelmente patos.

O bobo Josias, de nariz comprido, desinteressou-se do grupo e bebe sozinho, concentradamente, instalado à popa, num galho. Parece com pouca vontade de dizer piadas. Será a única pessoa sensata, a bordo.

Os dois homens que estão na água, a estibordo, têm pé. Um, despido, ampara-se na borda, como se fosse subir.

Sou eu. 

O outro chama-se Joaquim. Transporta cuidadosamente uma taça, mostrando cuidado para não a verter. Poderá ser vinho do garrafão pendurado na borda, aparentemente para refrescar a bebida. Seria mais fácil servirem-se diretamente dele, se os da barca tivessem juízo.

Bosh terá procurado retratar a tolice dos homens que se divertem sem pensar no amanhã, descuidando a salvação das suas almas. Parece ser uma das mensagens que o pintor flamengo repete com mais insistência: a inutilidade de pregar o bem. Alguns humanos estão destinados a perder-se.

Terá razão. Eu continuo a pagar o preço dos meus erros.

Meti-me com a Hermengarda e o frade soube disso. Acho que foi o Manuel Birrento quem chibou.

O frade era bruxo, ou tinha amigos bruxos. Lançou-me uma praga que dura há cinco séculos. Fiquei sempre jovem e as mulheres atraem-me.

Qualquer fêmea de homem, bonita ou feia, me incendeia os sentidos. Tenho grandes ereções, por vezes dolorosas, que se desvanecem sempre que me aproximo de uma rapariga despida. A maldição do frade faz com que o ardor me esmoreça. Lembra-me o suplício de Tântalo, mas ele ofendeu os deuses e eu limitei-me a tirar proveito de uma mulher oferecida. Chego a correr perigo. Já tenho fugido de maridos e namorados que não sabem que de mim nada há a temer. 

Por vezes, apaixono-me. Aconteceu com a Serena, que era bela como a lua e estava prestes a casar com um rico negociante de tecidos. Seduzi-a. O desejo apagou-se quando me deitei sobre ela. Cuspiu-me na cara. Nunca me senti tão humilhado.

Vezes sem conta, olho a barca dos loucos e chamo por Frei Afonso, a ver se me escuta. Hermengarda era mulher vivaça e deitava-se com muitos. Foi um castigo exagerado para a importância da falta. 

Passou o ano de 1.500, e também o de 2.000, sem que o mundo acabasse. Há muito tempo que desejo morrer. Quem dera ter-me afogado à beira daquela barca!

 

 

 

 

 


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