CONTOS DE HERTOGENBOSCH
A PEDRA DA
LOUCURA
Era voz corrente, na Europa Central e no fim
da Idade Média, que a loucura se devia à influência de uma pedra que se formava
no interior do cérebro e que poderia ser removida mediante uma intervenção
cirúrgica. Essa lenda inspirou grandes pintores europeus, incluindo Jerónimo
Bosch.
É
sua a pintura que vou descrever. Servirá de ponto de partida para a história
breve que conto a seguir.
A
obra de Bosch representa uma pretensa intervenção cirúrgica realizada ao ar
livre. O artista retrata um aldrabão com um funil a fazer de chapéu, fingindo
operar um homem à cabeça.
O
pretenso neurocirurgião é assistido por um velho de roupagem escura. A
observar, está uma mulher que equilibra um livro sobre a cabeça. O pintor
quererá mostrar que a sabedoria não entrou naquele cérebro.
A
mensagem inscrita na tela (em flamengo) pode ser traduzida assim: "Mestre,
retira esta pedra, meu nome é Das Lubbert." Das Lubbert era uma designação
aplicada aos patetas. Bosch aproveitou o tema para ilustrar a credulidade
humana.
Vou
contar a história de Das Lubbert mais ou menos como a recolhi na tradução
francesa de um velho livro flamengo. Como o texto era pouco apaladado,
introduzi-lhe algumas alterações, pelas quais me responsabilizo. Confesso
também que aportuguesei os nomes, para facilitar a leitura
O
nome verdadeiro deste Das Lubbert era Lucas Veren. O homem não foi sempre doido
e muito menos tolo. Era um próspero negociante de tecidos da vila holandesa
insular de Marken.
Vivia-se
a época da Renascença e sopravam ventos novos, mas pouca gente dava por eles na
ilha. Lucas era casado e tinha cinco filhos. Ajudara a encarreirá-los na vida.
Alguns já lhe haviam dado netos.
Os
problemas de Lucas Veren começaram quando Matias, o seu segundo filho, voltou a
casar, após a mulher ter morrido de parto. Matias não procurou esposa na terra:
engraçou com uma rapariga de Monickendam. Chamava-se Ana e era bonita demais.
Apesar de ser filha de um agricultor, não parecia ter nascido para trabalhar no
campo. De estatura média, corpo esbelto, cabelo cor de palha, testa direita,
nariz curto e olhos verdes, exibia, por tudo e por nada, um sorriso
deslumbrante. Tratava bem sogros e cunhados e afeiçoou-se ao único enteado, um
menino magro de dois anos. Aparentemente, Matias tinha feito uma boa escolha,
mas a pedra da loucura já se começara a formar na cabeça do pai.
O
homem vivera cinquenta anos ajuizados e era respeitado na terra. A chegada da
nova nora semeou-lhe a confusão na alma. Cada vez que o sorriso alumiava aquele
rosto, o sogro sentia-se perto dos anjos. Só pensava nela. Perdeu o sono e
começou a desleixar os negócios.
Como
seria de esperar, a primeira pessoa a reparar no interesse de Lucas foi a própria
Ana. A atitude do sogro nada tinha de paternal. O homem andava sempre atrás
dela e olhava-a com olhos de carneiro mal morto. Quando se cumprimentavam,
tardava a largar-lhe a mão.
Ana
era uma mulher simples que pretendia uma vida normal. Estava habituada a que os
homens se interessassem por ela mas, em solteira, isso pouca importância tinha
e alimentava-lhe alguma vaidade.
Nas
comunidades holandesas daquele tempo, as regras eram para cumprir e os caminhos
de uma mulher séria tinham limites apertados. Ana não sabia como fugir ao
assédio do sogro. Procurava esquivar-se e evitava encontrá-lo sem estar
acompanhada. Só entrava em casa dele com o marido ao lado. Mal o olhava e
dirigia-lhe poucas palavras, procurando, apenas, não ser mal-educada. Mantinha,
contudo, o feitio extrovertido e o sorriso fácil.
A
paixão proibida de Lucas Veren afundou raízes.
Lisa,
a esposa, foi a segunda a dar pela perturbação do seu homem. Como as mulheres
atentam mais em certos comportamentos, identificou cedo a razão do problema.
Pensou em afastar a nora do marido, mas a terra tinha poucas ruas e Matias
morava logo ao lado.
Eram
bonitas, as casas de Marken, feitas de madeira e assentes em estacas, para não
serem inundadas quando viesse uma das cheias periódicas. Comportavam geralmente
um piso térreo e grandes águas furtadas com uma janela aberta para a frente.
Naquele tempo, era moda pintarem-nas de verde.
Lisa
pensou que a alteração do comportamento do marido se poderia dever a mau-olhado.
Contratou os serviços de uma mulher de virtudes para tentar desfazer o enredo.
A bruxa bem se esforçou por justificar os honorários. A amarração era forte e o
resultado foi nulo.
O
tempo melhora umas coisas e piora outras. O negociante de tecidos estava a
tornar-se cada vez mais atrevido. Entrava em casa da nora com o filho ausente,
fazia-lhe declarações dramáticas de amor e procurava abraçá-la. Por vezes, enchia-se
de cerveja e começava a tornar-se violento. Ana receou ser violada.
Precisava
de proteção. Olhava o marido grande, soturno, bondoso mas com explosões de mau
génio e achava que era melhor não lhe dizer nada. Era difícil prever a sua
reação. E se ele entontecesse com o ciúme e matasse o próprio pai? Ficariam
duas casas destruídas e duas mulheres sem meios de sustento.
Encheu-se
de coragem e resolveu abrir-se com a sogra. Certa tarde, espreitou atrás das
cortinas até ver o sogro sair de casa. Deixou o enteado a dormir e foi bater à
porta dele. Lisa atendeu prontamente.
−
Senhora! Vim aqui pedir a sua ajuda. Tenho um problema sério e não sou capaz de
o resolver sozinha.
Lisa
olhou a nora. Era realmente muito bonita e parecia boa rapariga. Não sabia,
contudo, se a havia de olhar como esposa do filho ou como rival. Aguardou.
Ana
fez-lhe um relato nervoso, entrecortado de lágrimas. Confessou que receara
falar do caso ao marido. Rematou assim:
−
Peço perdão por ter trazido este problema para sua casa, mas juro que nada fiz
para o provocar.
−
Fizeste bem em vires ter comigo, comentou a sogra. − Eu já sabia o que se
passava. Tenho andado desgostosa. Acho que o meu marido endoideceu. Juntas,
somos mais fortes, mas não chegamos. Falar com ele, não adianta. Está obcecado.
Seria possível que me batesse, embora nunca o tenha feito antes. Vamos reunir
um conselho de família.
Falou
aos filhos, à exceção de Matias, que não parecia conveniente informar tão cedo.
Convocou também os dois irmãos e o tio materno de Lucas, que era apenas dez
anos mais velho que o sobrinho e desempenhava as funções de burgomestre.
À
hora aprazada, Lisa era a única mulher presente. Com voz firme, explicou aos
familiares o que estava a suceder e pediu-lhes conselhos e ajuda.
A
família era respeitada na terra. Todos gostavam do pai, ou parente, que tinha
tido, até data recente, um comportamento exemplar. Concordaram com o diagnóstico
feito pela esposa de Lucas. O homem endoidecera.
−
Aquilo trata-se, afirmou o burgomestre. É preciso retirar-lhe a pedra da
loucura.
Quando
Lucas Veren regressou a casa encontrou os parentes reunidos e com ar
circunspecto. Envergonhado, ouviu o tio burgomestre comunicar-lhe o diagnóstico
e o tratamento proposto. Humilhado e com um aperto no peito, aceitou
submeter-se.
Não
havia na povoação mestre capacitado para uma operação tão melindrosa. Foi
preciso chamar um de fora.
Sou
forçado a reconhecer que a intervenção que descrevo não se pareceu com a que
Jerónimo Bosh ridicularizou. Assemelhou-se mais à que pintou David Teniers, o
Jovem.
Foi levada a cabo dentro de casa, com a iluminação
proporcionada pela janela aberta. Aterrado, o enfermo procurava manter-se
imóvel, enquanto o mestre, como um pé apoiado no banco onde se sentava o
doente, executava o procedimento.
O
livrinho que li não fala do resultado da intervenção cirúrgica. Diz apenas que
Matias Veren e a esposa se mudaram para Monickendam, onde viriam a nascer todos
os seus filhos. A história de Lucas e de Ana interrompe-se ali.
Poderia
inventar outro final para esta narrativa. Os escritores detêm poderes que não
são de menosprezar. Seria capaz de sujeitar Lucas Veren a uma morte dolorosa
infligida pelo segundo filho, ou fazê-lo raptar a nora e ir viver com ela para
longe. Existiam outras possibilidades de desenvolvimento.
Achei,
contudo, que não devia seguir esses caminhos. As coisas são como são. Há histórias
que é melhor não modificar em demasia.
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