DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

 

    OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH


A COZINHEIRA DO INFERNO




 

 

Foi o Joaquim quem me desafiou para outra aventura. Estaria a habituar-se à minha companhia. 

− Gostava que conhecesses a minha tia Matilde.

− Não sabia que tinhas uma tia…

− Que sabes tu de mim? E eu de ti?

− Sabemos o suficiente para nos estimarmos. A tua tia mora perto?

− A tia Matilde, sim. Tenho outra, mas habita num quadro diferente. Vou visitá-la de vez em quando.

Lá nos vimos num dos infernos de Bosch. A pintura era o Julgamento Final.

Ao alto, está Cristo na sua glória. Parece habitar uma nuvem. Tem, de cada lado, um punhado de bem-aventurados. Há anjos pálidos a tocar trombetas.

Esta é a parte menos interessante da pintura.

Acho que reside aqui a fratura essencial na obra e na alma do grande artista flamengo. Bosch faz a apologia do Bem, mas deleita-se a representar o Mal.

O céu não é representado de modo interessante, nem acolhedor. A minoria dos eleitos corresponderá a homens e mulheres com os quais, em vida, teríamos pouco interesse em relacionar-nos. Assustaram-se com a ameaça dos tormentos do Inferno e praticaram o Bem de forma interesseira, a fim de poderem ser acolhidos no Paraíso. Poucos foram acometidos da vontade genuína de ajudar os outros. Dito de outro modo, os santos são uns chatos. Mal das crenças que fazem da negação do prazer um ideal de santidade.

Fartei-me de Filosofia. Baixei o olhar e vi o que parece ser um mundo em chamas. Começa ali o reino do Mal. Extinguem-se a graça e a clemência de Deus. A vingança dos juízes é terrível. Os que se portaram mal em vida são sujeitos a todos os suplícios imagináveis.

A tristeza paira no ar poluído. Distingue-se um verdadeiro exército de vencidos, conduzidos por monstros e demónios para a boca de um cântaro enorme onde irão ser triturados.

Os diabos parecem atarefados. Ou recebem horas extraordinárias, ou têm prémios de produção. O que contrasta e magoa na pintura é a extrema desproporção entre o número dos benditos e o dos danados. Segundo o pintor flamengo, Deus destinou a grande maioria dos humanos a arder eternamente no fogo dos infernos.

O que vale ao artista (e a nós, que apreciamos a sua obra) é o seu sentido de humor.

Numa espécie de planalto, na parte inferior do quadro, está a cozinha do Inferno. Pelo menos, foi o que me pareceu avistar.

Como na visita precedente, eu tinha tirado a roupa para não dar nas vistas. Estava a habituar-me a andar despido. Os infernais verdugos mal reparavam por mim. Era mais um danado, entre centenas ou milhares.

 O Joaquim guiou-me por um atalho que parecia conhecer bem. Chegámos num instante ao espaço das cozinheiras. 

− Olha! Aquela é a Matilde. Vês? O vestido dela é do mesmo pano do meu gorro.

Matilde era um ser híbrido, parte mulher e parte réptil, com feições grosseiras. Usava um longo vestido rosa carregado e um toucado branco. Tinha pés de lagarto.

Estava sentada no chão, ou num banco muito baixo. Segurava uma enorme sertã onde fritava um danado. Ao lado da fogueira estava dois ovos enormes. Iriam servir para completar o cozinhado.

Um pouco acima dela, outro monstro fêmea de cabelo branco ia torturando um danado com ferros em brasa.

Matilde parecia descontraída. Olhava para cima. Talvez espreitasse o relógio.

O sobrinho aproximou-se para a saudar.

− Olá, tia… Tem passado bem?

A cozinheira não pareceu muito contente com a vinda do Joaquim. Respondeu-lhe:

− Eu tenho… E tu? Que é que vieste cá fazer?

− Vim visitá-la…

− Passo bem sem as tuas visitas. Não vês que estou atarefada?

O Joaquim ficou desapontado com a falta de simpatia com que fora recebido, mas não esmoreceu. Fez uma vénia à tia e recuou.

− Ela não é má pessoa… Tem é aquele ofício.

Não me ocorreu nada para lhe dizer. De certo modo, cada um tem de cumprir o seu destino, embora exista quase sempre uma margem razoável de livre-arbítrio.

Deixei de teorizar e olhei em redor com mais atenção. Constatei que tinha perdido parte da capacidade de me surpreender. De um lado e do outro, era tudo mais do mesmo. Monstros mais ou menos cobertos de armaduras metálicas entretinham-se a fazer mal aos condenados. Reparei num que cavalgava uma espécie de peixe com focinho de ratazana. Calçava botas.

Um pouco acima, sobre uma placa que cobria um pequeno edifício, ficava o local onde o meu amigo Joaquim exercia habitualmente o seu ofício. Não chegámos a falar dele, mas imagino que fosse semelhante ao dos seus colegas.

Fiz um aceno de despedida à Matilde, mas ela não deu por mim. Não me importei. Já me habituara a passar despercebido naquele lugar. Viemos embora.

Eu quase sentia vontade de ter uma tia assim. Como não podia ser, tomei nota mentalmente para, num próximo aniversário lhe oferecer os dois grossos volumes do Pantagruel. Estou certo de que o Joaquim se irá alegrar com a ideia de ser o portador da encomenda. 

 

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