OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH
OS CAVALEIROS
Como sabem,
tenho boa parte das pinturas de Jerónimo Bosh gravadas no computador. Conservo
quadros inteiros, mas fragmento muitas vezes as cópias, para melhor as
analisar. Quando é necessário, amplio um pormenor. Hoje deu-me para rever o
Jardim das Delícias Terrenas.
Muito do que
Bosch pintou afigura-se estranho, pelo menos aos primeiros olhares. Quando
vemos melhor, começamos a entendê-lo, embora sobrem dúvidas e perplexidades.
De cada vez que
olho “O Jardim das Delícias Terrenas”, mais irónico se me afigura o título da
obra. Estou em crer que o pintor representou intencionalmente na tábua central
do tríptico um paraíso falso.
A meio do painel
há um pequeno lago. Julgo que representa a fonte da eterna juventude. Banham-se
nelas mulheres nuas (entre as quais diversas negras) e alguns pássaros.
À volta, desfila
uma estranha e lustrosa cavalgada. Os cavaleiros vão despidos e conduzem
montadas inverosímeis. Veem-se cavalos, bois, grandes porcos, ursos, algumas
feras e ainda uns tantos seres que deverão a existência à imaginação do
artista. Os quatro rios que se veem mais acima constituem outra referência ao
Jardim do Éden.
Os cavaleiros
seguem em fileiras de quatro, mas o alinhamento não é rigoroso. Repetem o mesmo
percurso, como se fossem figuras de carrossel. Acho que se deixam guiar pelas
montadas. Conservam os olhos abertos mas parecem ter desaprendido de ver.
Nenhum olha para o grupo das mulheres nuas que se banham no lago. Será uma
estranha omissão, num conjunto de homens novos.
Eu reparei bem
nelas e terei feito mal. É a minha imaginação a pregar-me partidas. Acho que
Jerónimo Bosh se entreteve a construir armadilhas para alguns apreciadores da
sua obra. Estou quase certo de ter reconhecido a Elisa.
Foi minha
namorada, na nossa juventude. Trocou-me por outro rapaz, mais bonito ou mais
esperto do que eu. Talvez fosse as duas coisas. Não a vejo há muitos anos, mas
ouvi dizer que tem uma carrada de filhos. Até há pouco tempo, estava viva e de
saúde. Curiosamente, na pintura não envelheceu. Conserva a figura de
adolescente que me cativou e me fez sofrer. Se não é ela, é uma rapariga
extraordinariamente parecida com ela. Não deu por mim. Mesmo que o fizesse,
dificilmente me identificaria. É que eu mudei muito.
Esfreguei os
olhos para tentar ver mais claro. Não pode é Elisa. Como é que poderia figurar
num quadro de Bosch, que viveu cinco séculos mais cedo e numa região distante
da nossa? No entanto, aprendi há muito que não podemos compreender tudo o que
nos é dado avistar.
As figuras de
alguns cavaleiros pareceram-me familiares. Estou quase certo de avistado dois
ou três durante as visitas que fiz ao Inferno, guiado pelo Joaquim.
Ou o pintor
estava fatigado e recorreu a modelos já usados, dando-lhes um novo
enquadramento, ou foi muito mais ambicioso, libertando-os das penas do Inferno
pela força da sua arte. A ser assim, a mudança irá perdurar enquanto o quadro
existir e for inteligível.
Considero que
Bosch poderia ter sido mais generoso para com os seus personagens.
Concedeu-lhes apenas meia existência. A imaginação torna quase tudo possível e
Bosch tinha-a imensa. Se fosse essa a sua intenção, o artista teria ido mais
longe. Quer-me parecer que desenhou exatamente o que tinha na ideia. Os
cavaleiros deixaram de suportar as penas do Inferno, mas parecem mais aliviados
do que felizes. Julgo que o pintor terá sido suficientemente misericordioso
para lhes apagar das memórias os tormentos sofridos. Seria difícil conservar
essas lembranças tenebrosas e manter a sanidade mental.
Tentei falar com
um personagem que passou à minha frente montado num grifo. Ignorou-me.
Dirigi-me a outro que seguia um pouco atrás, cavalgando um porco. Não me ouviu.
Estarão cegos e surdos para os humanos que contemplam o quadro. É também
possível que a minha imaginação esteja hoje menos fértil do que em dias
anteriores.
Os homens
montados conversam uns com os outros. Alguns vão apanhando frutos no caminho.
Um exagerado cavalga um leão e empunha um grande peixe à maneira de lança. Ao
longe e à esquerda, aproxima-se outro grupo de cavaleiros. Parecem vir
juntar-se aos que aqui estão.
Fartei-me deles
e desliguei o computador. Foi como se lhes tivesse virado as costas. Não
consegui, contudo, deixar de pensar neles e no que representam.
Bosch fê-los
voltar ao mundo, mas não lhes permitiu que reconhecessem o Mal. Estão cegos
para a vida e nunca serão homens completos. Receiam arriscar-se fora do trilho
marcado.
Como noutros
trípticos do pintor, o painel central representa alguma forma de equilíbrio
entre as pinturas dos extremos.
Foi-nos dada a
possibilidade de acertar e de errar. Sem a liberdade, a vida seria bem menos
digna. Um santo só o poderá ser verdadeiramente se tiver a possibilidade de
pecar.
Demorei-me a
falar deste grupo que parece casto, mas que está longe de representar o
conjunto do quadro. A maior parte dos personagens entrega-se aos prazeres
carnais, muitas vezes com indivíduos do mesmo sexo e frequentemente em grupo.
Terá sido esse atrevimento, invulgar na época, que cativou o interesse do rei
Filipe II de Espanha, senhor também de Portugal.
No meu modo de
ver, o que dá grandeza ao painel é o bando de grandes pássaros coloridos que
estão poisados à esquerda do conjunto central. São maiores que os humanos que
os acompanham. Diz-se que são os símbolos da luxúria, tal como os frutos de que
muitos protagonistas se mostram ávidos. Aguardam. Parecem bem capazes de
voar.
Recearia voltar
a olhar a pintura quando a noite caísse. Imagino ver os pássaros livrarem-se da
plumagem colorida e tomarem a forma de demónios alados, dispostos a voltar a
devolver aquele rebanho de tolos ao seu redil infernal.
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