DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

 

     OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH

                  OS CAVALEIROS



Como sabem, tenho boa parte das pinturas de Jerónimo Bosh gravadas no computador. Conservo quadros inteiros, mas fragmento muitas vezes as cópias, para melhor as analisar. Quando é necessário, amplio um pormenor. Hoje deu-me para rever o Jardim das Delícias Terrenas.

Muito do que Bosch pintou afigura-se estranho, pelo menos aos primeiros olhares. Quando vemos melhor, começamos a entendê-lo, embora sobrem dúvidas e perplexidades.

De cada vez que olho “O Jardim das Delícias Terrenas”, mais irónico se me afigura o título da obra. Estou em crer que o pintor representou intencionalmente na tábua central do tríptico um paraíso falso.

A meio do painel há um pequeno lago. Julgo que representa a fonte da eterna juventude. Banham-se nelas mulheres nuas (entre as quais diversas negras) e alguns pássaros.

À volta, desfila uma estranha e lustrosa cavalgada. Os cavaleiros vão despidos e conduzem montadas inverosímeis. Veem-se cavalos, bois, grandes porcos, ursos, algumas feras e ainda uns tantos seres que deverão a existência à imaginação do artista. Os quatro rios que se veem mais acima constituem outra referência ao Jardim do Éden.

Os cavaleiros seguem em fileiras de quatro, mas o alinhamento não é rigoroso. Repetem o mesmo percurso, como se fossem figuras de carrossel. Acho que se deixam guiar pelas montadas. Conservam os olhos abertos mas parecem ter desaprendido de ver. Nenhum olha para o grupo das mulheres nuas que se banham no lago. Será uma estranha omissão, num conjunto de homens novos.

Eu reparei bem nelas e terei feito mal. É a minha imaginação a pregar-me partidas. Acho que Jerónimo Bosh se entreteve a construir armadilhas para alguns apreciadores da sua obra. Estou quase certo de ter reconhecido a Elisa.

Foi minha namorada, na nossa juventude. Trocou-me por outro rapaz, mais bonito ou mais esperto do que eu. Talvez fosse as duas coisas. Não a vejo há muitos anos, mas ouvi dizer que tem uma carrada de filhos. Até há pouco tempo, estava viva e de saúde. Curiosamente, na pintura não envelheceu. Conserva a figura de adolescente que me cativou e me fez sofrer. Se não é ela, é uma rapariga extraordinariamente parecida com ela. Não deu por mim. Mesmo que o fizesse, dificilmente me identificaria. É que eu mudei muito.

Esfreguei os olhos para tentar ver mais claro. Não pode é Elisa. Como é que poderia figurar num quadro de Bosch, que viveu cinco séculos mais cedo e numa região distante da nossa? No entanto, aprendi há muito que não podemos compreender tudo o que nos é dado avistar.

As figuras de alguns cavaleiros pareceram-me familiares. Estou quase certo de avistado dois ou três durante as visitas que fiz ao Inferno, guiado pelo Joaquim.

Ou o pintor estava fatigado e recorreu a modelos já usados, dando-lhes um novo enquadramento, ou foi muito mais ambicioso, libertando-os das penas do Inferno pela força da sua arte. A ser assim, a mudança irá perdurar enquanto o quadro existir e for inteligível.

Considero que Bosch poderia ter sido mais generoso para com os seus personagens. Concedeu-lhes apenas meia existência. A imaginação torna quase tudo possível e Bosch tinha-a imensa. Se fosse essa a sua intenção, o artista teria ido mais longe. Quer-me parecer que desenhou exatamente o que tinha na ideia. Os cavaleiros deixaram de suportar as penas do Inferno, mas parecem mais aliviados do que felizes. Julgo que o pintor terá sido suficientemente misericordioso para lhes apagar das memórias os tormentos sofridos. Seria difícil conservar essas lembranças tenebrosas e manter a sanidade mental.

Tentei falar com um personagem que passou à minha frente montado num grifo. Ignorou-me. Dirigi-me a outro que seguia um pouco atrás, cavalgando um porco. Não me ouviu. Estarão cegos e surdos para os humanos que contemplam o quadro. É também possível que a minha imaginação esteja hoje menos fértil do que em dias anteriores.

Os homens montados conversam uns com os outros. Alguns vão apanhando frutos no caminho. Um exagerado cavalga um leão e empunha um grande peixe à maneira de lança. Ao longe e à esquerda, aproxima-se outro grupo de cavaleiros. Parecem vir juntar-se aos que aqui estão.

Fartei-me deles e desliguei o computador. Foi como se lhes tivesse virado as costas. Não consegui, contudo, deixar de pensar neles e no que representam.

Bosch fê-los voltar ao mundo, mas não lhes permitiu que reconhecessem o Mal. Estão cegos para a vida e nunca serão homens completos. Receiam arriscar-se fora do trilho marcado.

Como noutros trípticos do pintor, o painel central representa alguma forma de equilíbrio entre as pinturas dos extremos.

Foi-nos dada a possibilidade de acertar e de errar. Sem a liberdade, a vida seria bem menos digna. Um santo só o poderá ser verdadeiramente se tiver a possibilidade de pecar.

Demorei-me a falar deste grupo que parece casto, mas que está longe de representar o conjunto do quadro. A maior parte dos personagens entrega-se aos prazeres carnais, muitas vezes com indivíduos do mesmo sexo e frequentemente em grupo. Terá sido esse atrevimento, invulgar na época, que cativou o interesse do rei Filipe II de Espanha, senhor também de Portugal.

No meu modo de ver, o que dá grandeza ao painel é o bando de grandes pássaros coloridos que estão poisados à esquerda do conjunto central. São maiores que os humanos que os acompanham. Diz-se que são os símbolos da luxúria, tal como os frutos de que muitos protagonistas se mostram ávidos. Aguardam. Parecem bem capazes de voar. 

Recearia voltar a olhar a pintura quando a noite caísse. Imagino ver os pássaros livrarem-se da plumagem colorida e tomarem a forma de demónios alados, dispostos a voltar a devolver aquele rebanho de tolos ao seu redil infernal.

 

 

 


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