DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

 


     A GRIPE PNEUMÓNICA

 


Assinalou-se em 1918 o centenário do começo da gripe pneumónica, a pandemia mais assassina da história da humanidade. Terá atingido 500 milhões de pessoas, em todos os continentes, numa altura em que a população mundial, rondava os 1.600 milhões (Vagneron). Adoeceu quase um terço dos habitantes do planeta (Sobral). A estimativa do número global de mortos oscila, segundo as fontes, entre 20 e 100 milhões. (Sequeira, Pereira, Sobral, Johnson e Mueller).

Para dificultar o acerto de contas contribui o facto de, há um século, as estatísticas serem pouco fiáveis em alguns dos países mais populosos do mundo, como a China e a Índia.

 Alguns historiadores apontam para um número de óbitos comparável à soma dos mortos civis e militares registados no conjunto das duas Grandes Guerras (Sobral). Provavelmente, a gripe pneumónica colheu, no decurso de um único ano, um terço do número das vidas ceifadas pela peste em seis séculos de história (Sequeira).


A taxa de mortalidade variou consoante os países afetados, as ondas epidémicas e os critérios dos observadores. Johnson e Mueller apontam para uma taxa de 2,5 a 5%, à escala mundial. Foi mais elevada na segunda vaga, onde terá atingido 6 a 8 por cento. Em algumas regiões, ter-se-á aproximado dos 20%. Nos Estados Unidos, houve populações de índios que foram devastadas.


A origem geográfica da chamada “gripe espanhola” continua a ser discutida. Sabe-se, porém, que não começou na Espanha. A explicação para a alcunha é simples (Sequeira). A Espanha foi um dos poucos países que mantiveram a neutralidade durante a I Grande Guerra e, por essa razão, um dos raros onde a imprensa era livre de noticiar a epidemia. Sabia-se que, mesmo longe da região do conflito armado, estavam a adoecer e a morrer milhares e milhares de pessoas. Os países beligerantes evitavam alarmar em demasia as opiniões públicas nacionais e censuravam as notícias.

O primeiro registo seguro provém do Kansas, no centro dos E.U.A. A doença foi identificada pela primeira vez em janeiro de 1918, em Haskell County, num campo militar. (Sequeira).




Na primavera de 1918, continuavam a ser treinados muitos recrutas americanos para participar na guerra que se travava na Europa. No mês de março de 1918, foi internado na base militar de Fort Riley, um jovem que se queixava de dores de garganta, mialgias e febre. Na mesma semana, adoeceram mais de duzentos soldados com os mesmos sintomas. Uma semana depois, foi registado um caso similar em Queens, Nova Iorque. Antes do final de março, havia mais de mil militares hospitalizados. A doença espalhou-se rapidamente por vários acampamentos militares. Era a gripe.

Logo a seguir, o vírus foi transportado pelos soldados americanos. A Pneumónica viajou por mar. Na Europa, foram registados os primeiros casos em abril de 1918. Ocorreram em soldados franceses, ingleses e americanos que se encontravam em portos de embarque, em França. (Sequeira).



É esta a opinião dominante. Há, contudo, quem defenda que a pandemia começou mais cedo, em instalações militares francesas e inglesas (Killingray, Spinney). Há também quem admita a possibilidade de a gripe ter tido origem multicêntrica, com focos independentes na Ásia, na Europa e nos Estados Unidos da América.

Tratava-se de uma doença extraordinariamente contagiosa. Chegaram a adoecer mil e quinhentos soldados por dia.




Todos os exércitos envolvidos na Grande Guerra foram devastados pelo mal. Calcula-se que perto de 80 por cento das mortes nas forças americanas destacadas para a Europa foram provocadas pela gripe (Sequeira).




A expansão da epidemia foi imparável. Em maio, atingiu Portugal, Espanha e a Grécia. Em junho, chegou à Dinamarca e à Noruega e, em agosto, matava já na Holanda, na Bélgica e na Suécia. A seguir, espalhou-se pelo mundo. Mesmo ilhas remotas, no Ártico e no Pacífico foram afetadas pela pandemia. (Abreu, Rebelo-de-Andrade).

Em Portugal, os cálculos do total de óbitos variam entre os 100.000 (Sequeira) e os mais de 130.000 (Bandeira, Sobral). Os números ganham maior expressão se comparados com os 8.000 soldados mortos portugueses registados na I Grande Guerra, os 9.000 ocorridos durante os 16 anos das guerras coloniais e os 10.550 atribuídos à SIDA ao longo de 30 anos de vigência da endemia (Abreu).

A pneumónica grassou durante os anos de 1918 e 1919. O seu progresso não foi regular. Evoluiu em três vagas sucessivas. (Sequeira). A primeira foi a mais benigna e decorreu até agosto de 1918.

A segunda foi a mais mortífera. Instalou-se durante os meses frios do outono e do inverno. Segundo Laurinda Abreu e José Vicente Simões, Portugal terá registado uma das maiores taxas de mortalidade da Europa. Os cálculos variam entre os 9,8 por mil habitantes (Sobral) e os 22 (Bandeira). Na vizinha Espanha, os óbitos ficaram em cerca de 13 por mil.

A terceira onda decorreu de fevereiro a maio de 1919.

Esta pandemia gripal demonstrou virulência e agressividade raras. Matava rapidamente, por vezes em dois ou três dias, com sintomas hemorrágicos. Era frequente a associação de complicações respiratórias bacterianas graves.

Em 1918, o vírus da gripe ainda não tinha sido identificado.

Em setembro desse ano, os médicos franceses Charles Nicolle, Charles Lebailly e René Dujarric defenderam a origem viral da gripe. Seria transmitida por um micróbio “filtrável”, isto é, tão pequeno que passava através dos melhores filtros. (Rebelo-de-Andrade).

Em 1931, Richard Shop isolou o vírus influenza dos suínos. Em 1933, os ingleses Wilson Smith, Christopher Andrews e Patrick Laidlow atribuíram a gripe humana ao vírus influenza (Rebelo-de-Andrade).

O vírus da gripe em humanos só foi isolado em 1939 (Sequeira).




A Pneumónica foi provocada por uma estirpe do vírus Influenza A, do subtipo H1N1 (Sobral).

O vírus da gripe é um ortomixovírus com dois tipos essenciais de glicoproteínas de superfície: a hemaglutinina e a neuraminidase. (Sequeira). A variação da antigenicidade destas glicoproteínas permite à gripe apresentar-se de formas novas quase todos os anos.




De tempos a tempos, ocorrem variações maiores, os chamados “antigenic shift”. (Sequeira) As nossas defesas imunológicas assentam na imunidade humoral, baseada na produção de anticorpos contra estes dois antigénios e ajudada pela imunidade celular, a cargo dos linfócitos T, das células exterminadoras naturais e dos macrófagos (Sequeira).

Segundo Francisco George, as pandemias de gripe são sempre diferentes umas das outras. Sucedem-se, a cada pandemia, epidemias anuais provocadas por estirpes que lhe são aparentadas, como se duma dinastia se tratasse.

Em 2005, foi anunciado o sequenciamento genético do vírus da gripe de 1918, recuperado de cadáveres enterrados em campos congelados no norte da Europa (Sequeira).




As crianças e os idosos costumam ser os mais vulneráveis às epidemias. Não aconteceu assim com a Pneumónica que castigou, essencialmente, os setores jovens da população, predominando entre os 20 e os 40 anos de vida.

Estudos em ratinhos sugeriram que as mortes ocorriam quando os sistemas imunológicos reagiam exageradamente ao vírus, com libertação excessiva de citoquinas. Essas “tempestades” de citoquinas terão precipitado o envolvimento pulmonar e a morte de adultos jovens, durante a pneumónica. (Rebelo-de-Andrade e Felismino). Os sistemas imunológicos mais débeis de crianças e velhos não seriam capazes de reações tão intensas, permitindo menores taxas de mortalidade.



Apesar de existirem diferenças notáveis nas condições higiénicas e alimentares dos portugueses, na opinião de muitos investigadores a gripe foi transversal a todas as classes sociais (Sobral). Outros, como Ricardo Jorge, consideram que os mais pobres foram mais castigados.

As medidas tomadas contra a pandemia foram semelhantes às que se tinham aprendido com a experiência multissecular de combate ao tifo exantemático e à peste bubónica: banhos obrigatórios, desinfeção de roupas e habitações, isolamento dos doentes e dos seus contactos. Foram-lhes adicionadas a notificação obrigatória dos infetados e a divisão das cidades maiores em áreas sanitárias, com constrangimentos à circulação entre bairros. Recomendava-se o uso de máscaras e a lavagem frequente das mãos. Os espaços públicos eram desinfetados com formaldeído, creolina e outros produtos. A dois de outubro de 1918, a direção dos H.C.L. proibiu as visitas aos doentes internados.

Há quem defenda que uma parte dos óbitos por gripe poderá estar associada à intoxicação com aspirina, que chegava a ser recomendada em doses de 30 gramas por dia e seria capaz de provocar hemorragias. No entanto, a mortalidade foi também elevada em regiões do mundo em que a população não tinha acesso a esse medicamento.

Muitos consideram que a estirpe viral da gripe pneumónica foi invulgarmente agressiva. Terá sido ajudada, pelo menos na Europa, pela subnutrição e pela falta de condições higiénicas causadas pela guerra e, ainda, pelas aglomerações humanas nos acampamentos militares e nas cidades. A sobrelotação dos hospitais terá facilitado a eclosão de superinfeções bacterianas, responsáveis por muitas mortes.

Os mais velhos terão sido relativamente poupados por terem tido contacto anterior com vírus aparentados a este, que terão circulado décadas atrás (pandemia de 1890).

As vítimas prediletas da gripe pneumónica foram as grávidas, com taxas de mortalidade excecionalmente elevadas. Há quem indique uma taxa de 30% e quem aponte para números superiores. Entre outubro e novembro, de 1918 a pneumónica matou 40% das mulheres grávidas portuguesas. (Correio do Ribatejo).

A história da gripe está longe de acabar. Vejamos brevemente como começou.

Tucidide (460-395 a. C.), autor da Guerra do Peleponeso (Sequeira) relatou uma epidemia ocorrida em Atenas no ano de 431 a.C. Descreveu os sintomas, que parecem sobreponíveis aos da gripe e, ainda, a desregulação que a doença provocou na vida da cidade, com o oportunismo, o mercado negro dos bens essenciais e a falta de respeito pelos mortos.

Hipócrates descreveu um surto de infeção catarral acontecida no norte da Grécia no ano 412 a.C. Tratou-se, provavelmente, de gripe, e foi relatada no Livro IV das Epidemias. (Sequeira)

Há descrições de possíveis surtos gripais no século V, mas a verdadeira história da gripe epidémica tem início entre os séculos XIV e XVI, com os relatos das epidemias italianas do Renascimento. Ocorreu uma pandemia em 1530. (Sequeira) A partir dessa data, a gripe diminuiu de frequência na Europa, até que no inverno de 1889, nasceu na Sibéria uma nova pandemia (Sequeira).

Depois da Pneumónica, houve três pandemias de gripe A: a gripe asiática de 1957 (que contagiou o autor destas linhas) a de Hong Kong de 1968 e a de 2009.

As aves, especialmente as aquáticas migratórias, como os patos selvagens, constituem o reservatório natural do vírus da gripe. As pandemias regressam, com intervalos de tempo variáveis. 



As autoridades sanitárias estão, cada ano, à espera duma nova epidemia. Hoje dispomos de antibióticos para combater as infeções bacterianas secundárias e de uma melhor organização dos cuidados sanitários. Contudo, os transportes são muito mais rápidos e os vírus propagam-se bem mais depressa.

Que conselhos se poderiam dar aos doentes? Alguns são atuais ainda nos nossos dias: permanecer em casa, repousar e adotar uma dieta ligeira. Recomendavam-se ainda caldos de galinha e gargarejos mentolados.

A terapêutica era sintomática (Rebelo-de-Andrade). A febre era combatida com soluções de quinino e salicilatos. A tosse tratava-se com xaropes de benzoato de sódio e de acetato de amónio. (Sequeira). Nos casos mais graves, recorria-se a injeções de soluções arsenicais, cafeína e adrenalina. Em 1918, não existiam terapêuticas antivirais específicas.

Na atualidade, dispomos de vários medicamentos. O antiparkinsónico amantadina e a sua aparentada rimantadina (grupo das adamantanas) nunca foram eficazes contra a gripe B e encontram cada vez mais resistências nas estirpes de gripe A. Tendem a ser abandonadas no tratamento da gripe.

Os inibidores da neuraminidase (zanamivir, oseltamivir (Tamiflu) e peramivir) podem ser usados tanto para prevenir, como para tratar, a gripe. Há quem os aconselhe para doentes com co-morbilidade. O peramivir, de administração intravenosa, é sugerido para as situações em que o oseltamivir falha.

Em casos de mutação viral importante, são estes os únicos meios terapêuticos de que dispomos para tentar controlar a proliferação da doença, até se produzir uma vacina específica contra a estirpe nova.

A terapêutica antiviral reduz a mortalidade dos doentes com pneumonia viral, mesmo se iniciada dois dias após o início da doença. No entanto, nas epidemias de gripe A do Missisipi (em 2001) e de Hong Kong (em 2009) foram encontrados vírus que continham o gene de mutação H275Y da neuraminidase, que conferia resistência ao oseltamivir. Tem sido recomendada a profilaxia precoce. A F.D.A. descreveu os efeitos gerais destas drogas como “modestos” (Jefferson).

Há artigos que sugerem que o uso profilático deste produto em pessoas que contactaram com doentes pode aumentar o risco de resistência e que a profilaxia se deverá reservar a pacientes com patologia grave associada. Tem sido tentada a associação de vários antivirais.

O vírus da gripe pneumónica percorreu o mundo durante dezoito meses, de março de 1918 a agosto de 1919.



Os portugueses poderiam mesmo chamar “espanhola” à gripe pneumónica. Os primeiros casos conhecidos ocorreram em maio de 1918, em Vila Viçosa. Foram trazidos de Espanha por trabalhadores sazonais portugueses vindos de Badajoz e de Olivença. (Sequeira).  No entanto, segundo Rebelo-de-Andrade e Felismino, as portas de entrada do vírus no nosso país poderão ter sido múltiplas, em relação com o regresso dos militares que combatiam em França. No Porto, terão sido registados alguns casos já no começo de março.    

A gripe espalhou-se rapidamente pelo Alentejo. Chegou a Lisboa em junho. Em pouco tempo, espalhou-se por todo o país.

Instalou-se na Madeira, a partir de meados de setembro, levada por passageiros embarcados no navio Mormugão. 


Navio "Mormugão"

Atingiu, uma semana mais tarde, os Açores, transmitida por doentes que seguiram, por mar, de Bordéus para Ponta Delgada (Rebelo-de-Andrade).

Quando ocorreram, em Vila Nova de Gaia, (Sequeira,) em agosto, alguns casos de pneumonia fulminante, houve quem receasse estar a enfrentar um surto de peste bubónica, de que havia memória recente. Ocorrera uma epidemia de peste, na região, no final do século XIX. As autoridades sanitárias esclareceram que se tratava de gripe, mas a população nada terá ganho com a troca.

Era o início da segunda vaga da gripe. Durou poucos meses, mas acompanhou-se de uma elevada taxa mortalidade.

 Perante um flagelo que não entendiam, nem eram capazes de combater, muitos portugueses refugiaram-se na religião e procuraram obter, como durante a Idade Média, por meio de preces e procissões, o auxílio que as autoridades sanitárias eram impotentes para proporcionar.

Segundo João Frada, os concelhos da Região Norte foram relativamente poupados pela doença. Os resultados da investigação de Leston Bandeira apontam para Lisboa, Porto e Viseu como os distritos mais atingidos.

Por outro lado, as taxas mais elevadas de mortalidade não se verificaram nos concelhos mais populosos do continente. Benavente foi a povoação mais afetada pela epidemia, tendo morrido sete por cento dos doentes atingidos. Entre as cidades, as mais afetadas foram Covilhã e Leiria (Bandeira, Pereira). De acordo com Sobral, no nosso país, a mortalidade foi maior em mulheres (54% do total de óbitos), ao contrário do que aconteceu na maioria das nações.

Foram, nessa altura, ensaiadas as primeiras vacinas polivalentes. Algumas chegaram a ser utilizadas no final de 1918, com sucesso limitado.

Em 1920 (os números de 1918 não são conhecidos) existiam em Portugal 2.580 médicos (1/2.338 habitantes) e 1.577 farmácias (1/3.825 habitantes). Concentravam-se mais nas grandes cidades e eram escassos nas regiões periféricas, como o Algarve. A mobilização de muitos médicos para a guerra da Flandres agravou a situação sanitária do país (Sobral).



Ricardo Jorge, diretor do então Instituto Central de Higiene (Sequeira, Sobral) teve um papel importante, ainda que nem sempre consensual, no combate à gripe. Tornara-se conhecido pela sua intervenção no surto de peste bubónica ocorrido no Porto em julho de 1899. Quando a Pneumónica chegou, era Diretor-geral de Saúde e foi nomeado comissário-geral do governo na luta contra a epidemia gripal.

Em 18 de junho de 2018, apresentou no Conselho Superior de Higiene, um relatório em que referia “a nova incursão peninsular da influenza” (Pereira).

Ricardo Jorge obrigou à notificação de todos os casos diagnosticados, procurou impedir as movimentações das forças militares e as migrações dos trabalhadores agrícolas sazonais e esforçou-se por conter os aumentos dos preços dos medicamentos nas farmácias. Suspendeu as aulas, proibiu as visitas aos hospitais e opôs-se à realização de feiras e peregrinações. No entanto, preocupou-se também com a economia e com saúde mental dos portugueses. As fábricas continuaram a laborar. Escolas, cafés, salas de espetáculo, igrejas e transportes públicos, não foram encerrados. (Rebelo-de-Andrade).  

Faltavam camas para os doentes. Em Lisboa, o Liceu Camões e o convento das Trinas foram transformados em hospitais.


                                                          Convento das Trinas

Como noutros países, as crianças pequenas e os adultos jovens foram mais atingidos.

Segundo Helena Rebelo-de-Andrade, a pandemia encontrou Portugal a braços com uma crise “económica, social, política e sanitária”.

O quadro clínico da Gripe Pneumónica era semelhante aos das gripes dos nossos dias: febre, cefaleias, mialgias, ardor faríngeo, rinorreia e, ocasionalmente, conjuntivite. Na maioria dos casos, a doença evoluía bem e curava em 3 a 5 dias.

A complicação mais temida era a pneumonia primária, com expetoração hemoptoica e espumosa. Provocava muitas vezes síndromes de insuficiência respiratória aguda, matando o doente num dia ou em dois. Ocasionalmente, eram invadidos outros órgãos e sistemas, surgindo miocardites, encefalites e, provavelmente em associação com o uso de salicilatos, síndromas de Reye.

  A desgraça estava à vista de todos. Saíam, cada dia, funerais da própria rua e até da casa ao lado. A epidemia era transversal a todas as classes sociais. Morriam padeiros, leiteiros, médicos e coveiros. Os sinos das igrejas tocavam quase continuamente a finados. A dada altura, alguns calaram-se. Houve autoridades locais que consideraram que contribuíam demasiado para o alarme social.

   A morte banalizou-se. Faltavam os caixões e muitos corpos eram sepultados em valas comuns, envoltos em serapilheiras.

Registo o telegrama dramático que o governador civil de Faro dirigiu ao presidente da República e que foi publicado pelo jornal “O Século”, a 14/10/1918:


Exmo. Senhor Presidente da República. Belém. Lisboa. Gravemente doente, solicito a V. Ex.ª proteção para o Algarve. Epidemia varre povoações inteiras havendo já cemitérios completamente cheios, fazendo-se enterramentos em campa rasa. Faltam medicamentos, arroz, açúcar, velas, petróleo, massas, manteigas, batatas, e há três dias que não há pão […]. Povo ordeiramente vem pedir-me pão e crianças vagueiam nas ruas chorando com fome. Director Geral de Abastecimentos mandou requisitar toda batata de Monchique, único concelho produtor e que já não tem batata para metade do distrito. Rogo proteção a V. Ex.ª acudindo a tanta miséria. A todo o momento cai gente na rua com doença e fome. Barcos de pesca param serviço por falta de gente. Não há peixe.


 No nosso país, foram mais atingidos pela gripe as crianças com menos de dois anos de idade e os adultos jovens. Metade dos óbitos registaram-se entre os 20 e os 40 anos de idade (Rebelo-de-Andrade) e 55% entre os 15 e os 39 anos. (Sequeira). No entanto, é possível que parte dessas mortes tenha sido falsamente atribuída à gripe.

 O número de óbitos registado em Portugal varia, segundo as fontes, entre 50 e 120 mil. João Frade contabiliza exatamente 60.174, mas poderão ter-lhe escapado inúmeros casos sem diagnóstico ou com diagnósticos enganosos. Note-se que, em 1918, os portugueses eram menos de seis milhões.



Sidónio Pais, o “Presidente-Rei” de Fernando Pessoa, empenhou-se pessoalmente no combate à pandemia. Segundo Rebelo-de-Andrade e Felismino, chegou a fazer da gripe uma bandeira política. Sabia falar aos mais humildes.

Faltava pão nas casas, os republicanos não se entendiam e a participação de Portugal na guerra desgastava o país. As metralhadoras obrigavam os soldados a afundar-se nas trincheiras.   

  Sidónio, professor universitário de Matemática e vagamente major de Artilharia, mostrava-se ao país fardado e montado num cavalo branco.

Procurou conciliar o populismo com o pragmatismo. Apresentando-se como o salvador de Portugal, procurou o apoio dos muitos portugueses católicos e apaziguou as relações tensas entre a Igreja e o Estado. Devolveu à Igreja os seminários confiscados em 2011 e restabeleceu as relações diplomáticas com a Santa Sé. Foi piscando o olho, simultaneamente, aos monárquicos e aos sindicalistas, procurando fortalecer a sua base de apoio social. Falhou. Mataram-no no Rossio a 14 de dezembro de 1918. Por essa altura, a segunda vaga de gripe pneumónica aproximava-se do fim. 

 Os vírus da gripe modificam-se rapidamente. É provável que tenham evoluído para cepas menos letais. Como as variantes altamente mortíferas acabam em muito pouco tempo com o seu anfitrião, não se podem propagar com tanta facilidade. Trata-se de um processo de seleção natural.

A gripe pneumónica provocou uma crise demográfica grave no nosso país, com um saldo negativo de 70.291 habitantes, apenas em 1918.

Entre dezenas de milhares de desconhecidos, a gripe ceifou as vidas de várias personalidades com relevo na sociedade portuguesa: o pintor Amadeu de Souza Cardoso. o suposto vidente de Fátima Jacinto Marto, o  pianista e compositor António Fragoso e o fundador do Sporting, José Alvalade.


                                                          António Fragoso

Vou dedicar algum espaço a Amadeo.

Amadeo de Sousa-Cardoso morreu, em Espinho a 14 de outubro de 1918. Foi ceifado pela Gripe Pneumónica. O pintor integrava o grupo etário mais atingido: festejaria o seu 31º aniversário dali a um mês.




   Durante a sua prolongada estadia em Paris, Amadeo de Sousa-Cardoso privou com alguns dos nomes mais sonantes da pintura e da escultura da época. Outro Amadeo (Modigliani) tornou-se seu amigo chegado.

    A I Grande Guerra fê-lo voltar à Pátria.




  Quem olha hoje as obras de Amadeo, fica impressionado pela vitalidade que transmitiu ao pincel. Lê-se ali vontade de experimentar, ambição, bom gosto, desejo de afirmação e uma grande harmonia na mistura das cores. Aqui e além, o artista dá a impressão de tatear, como se percorresse, de olhos vendados, uma vereda pouco conhecida. Pintou centenas de quadros. Em muitos deles, parece brilhar a centelha do génio.



    A pensar em quadros seus, escreveu Pessoa, pela voz de Álvaro de Campos: só tem direito ou o dever de exprimir o que sente, em arte, o indivíduo que sente por vários. O que é preciso é o artista que sinta por um certo número de Outros, uns do passado, outros do presente, outros do futuro.

  O pintor não se fidelizou a qualquer corrente estética. Afirmou, numa entrevista a um jornal português:



 Eu não sigo escola alguma. Nós, os novos, só procuramos a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco.

Alcançou a perfeição em várias dessas correntes, mas não se deteve em nenhuma. Chegou a escrever: Eu, por exemplo, nem a mim mesmo me sigo na visão artística. Tudo o que tenho feito é diferente do precedente e sempre mais perfeito.

Ia outubro de 1918 adiantado quando Amadeo de Sousa-Cardoso escreveu ao irmão António a sua última carta conhecida. Deixo aqui excertos dela.

Meu caro António:

Algumas notícias nossas e são as seguintes: a Gracita continua no mesmo estado. Não tem piorado, mas também as melhoras não são para dar descanso. Na noite passada, o termómetro acusou altíssima temperatura. Hoje, até à hora que escrevo, tem baixado: 39, 39 e meio.

Eu ando constipadíssimo. De vez em quando, sinto bastante opressão no peito. Tenho-me atirado ao vinho do Porto, como prevenção.

Não sei quê que me diz que vae haver grande mudança na vida da nossa família. Será pessimismo meu oxalá!

Abraça-te teu muito dedicado irmão

       O pintor de Manhufe morreu cedo e o seu valor foi reconhecido tardiamente.

Ninguém pode saber quanto teria ainda para dar à arte portuguesa e mundial. Embora seja pouco útil conjeturar, alguns dos que o apreciam interrogam-se: teria Amadeo acabado por se encostar a algum dos movimentos estéticos da época, ou viria a criar uma escola própria?

 

                            EPÍLOGO


Recentemente, voltei a ler o artigo “Revisitar a pneumónica de 1918-1919”, publicado em 2018 por Laurinda Abreu e José Vicente Simões. Dada a relevância do conteúdo, cito aqui uma pequena parte, com a devida vénia aos autores.

Durante a Pneumónica, Portugal terá registado uma das maiores taxas de mortalidade na Europa (entre 9,8 e 22 por 1000 habitantes, consoante as diferentes estimativas), sendo este um dos indicadores que, obviamente, deve suscitar mais reflexão. A figura central do combate à epidemia de 1918 em Portugal foi, como bem se sabe, o diretor-geral de Saúde, Ricardo Jorge. Sendo conhecido o seu pensamento, não seria expectável que defendesse o encerramento das fronteiras e a instalação de lazaretos para organização de quarentenas. Tal como já tinha acontecido aquando do surto de peste que atingiu o Porto em 1899, Ricardo Jorge optou pelo isolamento dos doentes e por recomendações higiénicas e dietéticas. A questão fulcral é perceber porque terá sido tão grande o desaire demográfico português quando comparado com outros países que aplicaram disposições similares.

Quando se compara a reação governamental à crise de 1918 com a atuação perante as epidemias de cólera de 1884 e 1885, que fizeram pesadas baixas em Espanha e noutros países europeus e deixaram praticamente incólume Portugal, verifica-se uma mudança substancial de estratégia política. No primeiro caso, o governo de Fontes Pereira de Melo, ciente da debilidade do país e das suas próprias limitações em termos de saúde pública, agiu por antecipação e impôs um rígido controlo das fronteiras, marítimas e terrestres, e da mobilidade de pessoas e mercadorias, substituindo o saber médico pelo poder das armas dos militares. Em 1918, diferentemente, Portugal colocou-se ao lado dos países tidos como mais desenvolvidos e, como eles, procurou agir em função dos mais recentes conhecimentos médicos e preceitos higienistas – uma opção de política de saúde pública que, a avaliar pelos resultados, não foi porventura a mais adequada às circunstâncias do país.



BIBLIOGRAFIA

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Mello, Maria, Vilarigues, Márcia e Otero, Vanessa. “Tudo palpita e vive no seu próprio espaço com Amadeo de Sousa Cardoso. 1º Congresso Internacional Amadeo de Sousa Cardoso. Em: Ler.letras.up.pt

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Sobral, José Manuel e Lima, Maria Luísa. A epidemia da pneumónica em Portugal no seu tempo histórico. Em: Ler História, nº73/2018. Pg 45-66, Dossier: Revisitar a Pneumónica de 1918-1919, organizado por Laurinda Abreu e José Vicente Simões.

Vagneron, Frédéric,  « La grippe espagnole : une historiographie centenaire revisitée », Ler História, 73 | 2018, 21-43. Este artigo faz parte do dossier temático Revisitar a Pneumónica de 1918-1919, organizado por Laurinda Abreu e José Vicente Serrão.

Vários. Correio do Ribatejo 12/07/2018. Crónicas Memórias da Cidade “Da fome, da guerra e da pestilência livrai-nos Senhor”


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