DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 12 de novembro de 2013


                   JERÓNIMO BOSH 

     PINTOR DO LADO ESCURO DA ALMA                    


                                  II       

             O JARDIM DAS DELÍCIAS


     Jerónimo Bosh pintou magistralmente o medo e o grotesco. Recorreu a símbolos ambíguos do Mal e do Bem para descrever a loucura do mundo que escorregava (tal como escorrega agora e quase me atrevo a dizer que escorregou sempre) para a perdição moral. Julgo que há mais vagas nos hotéis do Céu do que na concorrência.


      Hieronymus retratou como ninguém o vício e o pecado. Foi muito melhor a pintar demónios do que a desenhar anjos.
      Pouco se sabe da sua vida e não há provas de que tenha trabalhado fora da sua terra natal, Hertogenbosh. Era filho e neto de pintores. Terá aprendido no atelier familiar.


    A estranheza dos seus desenhos levantou especulações.  Ao tempo, existiam variadas seitas que se dedicavam às ciências ocultas. Jeroen poderá ter recolhido delas alguns conhecimentos sobre os sonhos e a alquimia. Terá chegado a ser perseguido pela Inquisição.


    O Jardim das Delícias Terrenas está exposto no Museu do Prado, em Madrid. Julga-se que foi pintado entre 1503 e 1504.


   Antes de se abrir o tríptico, vêm-se as portadas, que representam o mundo no terceiro dia da criação. A terra está dentro de uma esfera de vidro, simbolizando provavelmente a sua fragilidade. Os animais ainda não tinham sido criados.
   Aberto o quadro, figuram de um lado o Paraíso e, do outro, o Inferno. A meio, fica a Vida. No painel central, o homem deixa-se levar pelos prazeres dos sentidos. Pessoalmente, não vejo mal nisso... 


     Comecemos pelo centro. O painel está organizado em três estratos, ou andares. No espaço superior, a meio, uma estrutura cilíndrica encimada por uma torre que se vai afilando, flutua num lago, ou assenta no seu fundo.

                           

   Tem no equador um estrado onde se vêem figuras humanas, enquanto outras se banham mais abaixo. Os homens e as mulheres representadas estão despidas. No campo vizinho, abundam árvores de fruto. Um círculo de pessoas sentadas no chão parece tentar comer um morango gigantesco. De cada lado há construções elevadas cujo significado me escapa. No céu, voam figuras fantásticas cavalgadas por humanos. Poderão representar a sedução do mal.


O estrato mediano é centrado pela fonte da juventude onde se refresca um grupo de mulheres. Há negras entre elas. Dificilmente Bosh terá visto muitas, no interior da Holanda do século XV. Os frutos são omnipresentes. 


À volta da fonte desfila um grupo numeroso de cavaleiros montados em animais fantásticos agrupados em quadrigas irregulares. 
Vêem-se grandes pássaros, que simbolizarão a lascívia. 


O andar inferior é ocupado por dezenas de figuras nuas. 


Trata-se muitas vezes de casais, mas alguns agrupamentos são mais complexos. Os observadores mal intencionados lêem neles cenas de luxúria. Segundo os escribas da Wikipedia, vê-se ali todo o tipo de relações carnais: heterossexuais, homossexuais, onanistas e até ligações entre animais e entre plantas.


As estruturas de vidro que aprisionam figuras nuas fazem lembrar os alambiques dos alquimistas.


Os pecadores de Bosh não mostram sinais de arrependimento. Entregam-se alegremente à perdição.
Alguns observadores atentos fizeram notar que ali não se dá ela passagem do tempo. Não se vêem velhos nem crianças. Ninguém trabalha. Comem-se os frutos que a terra dá espontaneamente.
O quadro foi comprado por Filipe II e esteve no dormitório do rei até à sua morte. Não sabemos com que é que o nosso monarca sonhava…


   No painel esquerdo está representado o Paraíso. Deus, figurado como Cristo, está de pé e apresenta a Adão a Eva acabadinha de criar e pronta para o pecado.

 
    Abundam os pássaros e há muitos animais africanos mais ou menos fantasiados. O centro do quadro volta a estar ocupado pela fonte da Vida, de que sai uma estrutura elevada cor-de-rosa que lembra um vaso de flores, ou mesmo uma guitarra. Há quem veja nela a flecha de uma catedral ou até um símbolo fálico... 
      Em vez dum Paraíso tranquilo em que os animais vivam na paz de Deus, vê-se um leão preparado para devorar um veado e um javali a perseguir uma figura estranha com duas pernas. Perto do tanque, um leopardo abocanha um lagarto e uma ave come uma rã.

                   

O painel da direita representa o Inferno. Há quem lhe chame O Inferno da Música, tantos são os instrumentos musicais apresentados.
Escrevi antes que, no meu entender, Bosh pinta melhor o Mal do que o Bem. Nenhuma das suas figuras sagradas  se aproxima do deslumbramento dos seus demónios e monstros.


É um painel sombrio que contrasta com os tons antecedentes. No estrato superior são representados o fogo e os tormentos.


O andar médio contem imagens de pesadelo.  É dominado pela figura do homem-árvore, que olha para o observador. Tem na cabeça um disco em que dançam pequenos demónios. Os braços são troncos de árvore e apoiam-se em barcaças. O peito é oco e dá abrigo a monstros.
A faca ligada às orelhas tem sido interpretada como um símbolo fálico.


O andar inferior é o da orquestra. Os instrumentos musicais são aparelhos de tortura. Em lugar do maestro está um demónio que devora condenados e vai defecando num poço negro. Em baixo, à direita, um homem é abraçado por uma porca com lenço de freira.


     Jerónimo Bosh foi um pintor singular. Ouçamos o que diz dele Frei José de Siguenza, o seu primeiro biógrafo: «a diferença entre a pintura de Bosh e a dos outros é que os demais procuram pintar o homem qual parece por fora; somente ele o ousa pintar como é por dentro».

       Fontes:
A Grande História da Arte – Renascimento e Maneirismo. Público, Porto, 2006.
Wikipedia.
Fotografias dos quadros: Internet.

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