DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quinta-feira, 23 de maio de 2013


                   AMÍLCAR CABRAL

                             XL

         ENGENHEIRO NA GUINÉ



                              Amílcar e Maria Helena em Pessubé

Amílcar Cabral terminou o curso em 1950. Para obter a licenciatura, estagiou em Cuba, no Alentejo, em 1951 e princípio de 1952. O relatório final daquele estágio tratava da erosão dos solos e obteve uma classificação elevada. Depois, Amílcar escolheu a Guiné para trabalhar.
Não são conhecidas as razões que o chamaram para lá. Certo é que foi contratado pelo Ministério do Ultramar como diretor-adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais e diretor da Granja Experimental de Pessubé. O facto de um recém-licenciado se estrear logo como diretor faz presumir que não abundavam os engenheiros agrónomos na Guiné portuguesa.
Pessubé situava-se nos arredores de Bissau. A capital da Guiné era uma pequena cidade dividida em duas zonas. No centro, estava Bissau Velho, a cidade colonial, a terra dos brancos, onde ficava o Forte da Amura, o porto de Pindjiguiti e a Avenida da República, que agora tem o nome de Avenida Amílcar Cabral. Localizava-se ali a maioria das casas comerciais portuguesas, como a Casa Gouveia, sucursal da CUF, o estabelecimento Álvaro Camacho e a Sociedade Comercial Ultramarina. Abundavam os pequenos comércios pertencentes a libaneses. Este centro urbano era envolvido pela cidade indígena, habitada maioritariamente por negros da etnia papel.
       Amílcar Cabral chegou a Bissau em setembro de 1952. A esposa juntou-se-lhe dois meses depois. O casal ocupou a moradia existente dentro do espaço da Granja Experimental e destinado ao diretor de serviço.
A granja de Pessubé fornecia vegetais às autoridades administrativas e era utilizada como zona de piqueniques. Cabral procurou transformá-la numa unidade de investigação agrária suscetível de ajudar os agricultores guineenses a melhorar os seus métodos de produção.
Enquanto estudava em Lisboa, Amílcar auxiliara pontualmente a família, à medida das suas escassas possibilidades. Ajudou, a dada altura, a irmã Arminda a vir para a metrópole estudar enfermagem e corte e costura. Com a situação profissional estabilizada, foi chamando os familiares para a Guiné. Veio primeiro Luís Cabral, a quem arranjou emprego na Casa Gouveia. Chegou depois António, o irmão mais novo, e a seguir a mãe, acompanhada pelas filhas gémeas.
O primeiro recenseamento agrícola da Guiné proporcionou ao jovem engenheiro agrónomo a oportunidade de conhecer de perto o interior da sua terra natal e o mosaico étnico que a habitava. O recenseamento resultava de um acordo estabelecido em 1947 entre o governo português e a Food and Agriculture Organization (FAO). Tinha ficado no papel por falta de um técnico capaz de o encabeçar.
 Ao longo de cinco meses (de agosto a dezembro) Cabral e a sua equipa percorreram a quase totalidade do território guineense, visitando mais de 2.200 agricultores. No final do trabalho de campo, Amílcar Cabral fez o tratamento da informação recolhida e elaborou o relatório a ser apresentado à FAO.
Diz António Tomás que foi graças a este trabalho que Amílcar Cabral encontrou a linguagem certa para se entender com os camponeses. Resumida, a mensagem era clara: a pobreza dos agricultores era culpa dos colonos.
A Guiné nunca foi uma colónia de povoamento intensivo. Enquanto em Angola e Moçambique os portugueses tomaram conta de parte das melhores terras, os indígenas guineenses continuaram a ser senhores dos seus terrenos de cultivo, sujeitando-se apenas aos preços tabelados.  
A Guiné produzia essencialmente arroz, amendoim (mancarra) e milho. Todas as etnias semeavam arroz, mas os balantas pouco mais cultivavam. Os fulas preferiam a mancarra, destinada à exportação. A Casa Gouveia era a única entidade compradora e estabelecia os preços que lhe convinham. Segundo alguns agrónomos, o percurso das culturas de mancarra era fácil de seguir pela devastação que produziam no solo. Tornava-se necessário modificar profundamente a estrutura agrária do país, o que pedia mais política do que agronomia.
Amílcar Cabral aprendeu outras coisas úteis para a futura guerra de independência. Qualquer empreendimento na Guiné estaria subordinado à sucessão das estações climáticas. No chão balanta, a sul, os caminhos tornavam-se rapidamente intransitáveis depois do começo da chuva enquanto nas zonas menos húmidas do norte ainda se circulava relativamente bem.  Por outro lado, a navegação por rios e braços de mar era obrigada a seguir o ritmo das marés. 
 Bissau era um meio pequeno e os raros intelectuais da cidade conheciam-se uns aos outros. Sofia Pombo era farmacêutica e militante do PCP. Em sua casa, falava-se abertamente de política e escutavam-se as emissões da Rádio Moscovo. Cabral passou a frequentar a residência da farmacêutica.
Amílcar Cabral foi travando conhecimento com vários cabo-verdianos que trabalhavam como funcionários públicos na administração colonial. Foi nessa altura que se reaproximou de Aristides Pereira, seu antigo colega do Liceu de Cabo Verde. Fez uso da sua experiência de subversão e foi divulgando a ideia da necessidade da interligação das independências de todas as colónias portuguesas. À maneira de Lisboa, foi reunindo um pequeno grupo em que se discutiam temas africanos. À medida que conhecia melhor os intervenientes e se tornava possível confiar em alguns, passava à abordagem das questões políticas. Muitos desses encontros tinham lugar na sua residência na Granja.
As dificuldades subiram de nível quando entraram para o grupo os primeiros guineenses. Os cabo-verdianos e os naturais da Guiné pertenciam a grupos socioeconómicos diferentes. O direito português enquadrava-os mesmo em duas categorias distintas. Enquanto os de Cabo Verde eram “civilizados”, os da Guiné eram quase todos “indígenas”. Muitos cabo-verdianos habitavam na zona “branca” de Bissau. Amílcar Cabral entendeu cedo que não poderia seguir a mesma tática na abordagem de uns e de outros.  Nasceu-lhe então a ideia de criar um clube desportivo e cultural. Ofereceu-se como treinador de futebol. Era uma maneira de se aproximar da juventude de Bissau e de desenvolver o seu trabalho político sob uma cobertura legal.
Decorreram várias reuniões para a preparação dos estatutos do clube. Ao serem apresentados às autoridades competentes, foram recusados.
Foi provavelmente na Guiné que Amílcar Cabral amadureceu intelectualmente e optou definitivamente pelo nacionalismo africano. Durante essa estadia de dois anos e meio começou a esboçar-se o que haveria de ser mais tarde o PAIGC. Cabral aprendeu também que nem todos os que falavam de independência a pretendiam de facto. Foi conhecendo as primeiras traições. Anos depois, falaria com pouco entusiasmo do grupo antifascista de Bissau.
As circunstâncias que puseram fim à estadia de Amílcar Cabral na Guiné não são bem conhecidas. Sabe-se que tanto ele como Maria Helena adoeceram com paludismo. Luís Cabral garante que o seu irmão foi vítima duma denúncia. Um alfaiate de Bissau terá informado as autoridades militares das atividades anti-portuguesas do engenheiro agrónomo e o governador tê-lo-á “convidado” a abandonar a colónia.
       Certo é que foi um Cabral diferente o que desembarcou em Lisboa. Partira um engenheiro agrónomo. Regressava um político decidido a dedicar a vida à independência da Guiné e de Cabo Verde.
       Terá sido autorizado a voltar a Bissau para visitar a família. Aproveitou bem as deslocações. Na primeira, em 1956, formou o o PAI (Partido Africano para a Independência), que se transformaria mais tarde em PAIGC. Na segunda, em 1959, começou a preparar a luta armada.

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