DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

SNOOPY




Serão incontáveis os cães com o nome do beagle de Charlie Brown. Há muita gente que se lembra do seu equilíbrio improvável na aresta do telhado da casota e do seu pequeno amigo, o pássaro tagarela que preenchia as bolhas da locução com inúmeros is grandes. As minhas filhas também chamaram assim ao cão delas. Arraçado de pequinois, tinha a estatura e o feitio desses pequenotes rabugentos.
Naquele tempo, em Setúbal, as crianças brincavam na rua e os cães andavam à solta. O Snoopy sujeitava-se à hierarquia natural entre os colegas. O tamanho e a força eram os elementos ordenadores. Ao passar frente à casa da Lady, uma pastora alemã temível, atravessava a rua em sentido perpendicular ao eixo, seguia pelo passeio oposto e, no fim do quarteirão, completava o desenho geométrico, regressando ao passeio inicial para continuar o seu caminho em segurança. Observei-lhe repetidamente este tipo de comportamento e dei-lhe um nome: a táctica do quadrado.
O Soopy não tinha os parafusos todos bem ajustados na caixa craniana. Deixava-se ficar imóvel, durante hora, a fitar a porta da casa de banho, o seu inimigo imaginário. De repente, atacava e fazia-o com determinação. Quando o cão completou cinco anos tive de comprar uma porta nova.


A dada altura, o Brutus entrou nas nossas vidas. Embora se enchesse de ciúmes, o Snoopy ficou beneficiado. Deixou de ser o último na escala familiar. Boxer impuro e folgazão, o Brutus obedeceu cegamente ao pequenote enquanto ele durou. Nunca o Snoopy comera tanto. Esgotava a ração dele e comia o que era capaz do prato do acólito, até ficar atafulhado. O outro aguardava com humildade a sua vez de se alimentar. 
Quando o Brutus ia nos seis meses, entretinha-se a brincar com o Snoopy no passeio, frente a uma papelaria. Uma senhora de idade, com a vista cansada, tropeçou nos cães e caiu. No dia seguinte, o Setubalense proclamava em letras gordas: CÃES SELVAGENS ATACAM VELHINHA EM MONTALVÃO. 
O boxer ganhou mais corpo do que os de raça pura. Era um belo animal. Não se se pensam como eu, mas acho que apenas os humanos se interessam pelas características das raças caninas. Os cães importam-se apenas com a estatura dos rivais.
Quando o impedido cresceu, o Snoopy arvorou-se em chefe da exígua matilha e aproveitou para tirar desforra de cães maiores que o tinham incomodado antes. A sua táctica de combate nada tinha de exemplar: intrigava, atiçava o Brutus contra o adversário e ia mordendo as pernas que lhe passavam frente à boca, sem exercer qualquer espécie de discriminação. 
Era um bufo e gostava de chibar. Se ninguém o via, o Brutus refastelava-se no grande sofá de couro da sala. Quando eu chegava, o Snoopy ladrava a acusá-lo. O culpado vinha em passada airosa, como se assobiasse para disfarçar.
Em novo, o cãozinho era ágil e não se deixava apanhar pela rede da Câmara que garantia a saúde dos cães de Setúbal eliminando das ruas os que estavam doentes, velhos ou coxos. Os cachorros saudáveis escapava-lhe facilmente. Quando a leishmaniose lhe enfraqueceu o olhar, o Snoopy foi capturado duas vezes. Paguei as multas e fui buscá-lo ao canil municipal.
Enquanto os outros cães conviviam de forma barulhenta, o Snoopy encostava o focinho à grade do portão e esperava. Da primeira vez saiu disparado, caiu, levantou-se e voltou a correr. A nossa casa era longe, mas foi lá que o apanhei.
Era o cão das minhas filhas e não o meu. Não nos dávamos muito bem. Ainda assim, ensinou-me algumas coisas sobre psicologia canina. Descobri, com alguma surpresa, que o lugar de honra, quando saíamos a passear, era o da trela. Era impensável o pobre Brutus aspirar a ser conduzido pela arreata.
Durante umas férias, em Cabanas de Tavira, o cão teve de engolir o orgulho e dobrar a coluna cervical. A entrada para o nosso apartamento fazia-se por uma escada íngreme de ferro que as suas patas curtas não lhe permitiam trepar. Ali ficava, à espera que alguém lhe pegasse ao colo e o levasse para cima. A partir dessa altura, ficámos amigos. 

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