OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH
O FAROL
Apresento um
pormenor do painel que representa o Paraíso, no Jardim das Delícias Terrenas.
Situa-se no canto superior esquerdo do quadro. Não inspirou um conto, pois já
estava escrito, mas fez-mo recordar.
Entendo pouco de
pássaros. Ia chamar estorninhos aos que saem da gruta e voam em bando, mas
poderei estar errado. Não sei se os que estão poisados no solo aguardam o
momento de se juntar a eles, ou se apenas testemunham um movimento inusitado.
Seria quase
impossível não me lembrar de “O Farol”.
Não sei bem como
consegui chegar ao cimo do comprido edifício circular. Arfava. Os degraus eram
muitos e a escadaria assustava. Esforcei-me por subir, para impressionar a
Sandra. Procuro parecer jovem perto dela.
Cá estamos, no
topo. Caminhamos à roda do patamar, protegidos pela balaustrada.
O horizonte
alarga-se sobre a terra e sobre o mar. Vemos nascer as ondas ao longe. Vão-se
crescendo até morrerem contra as rochas.
As gaivotas voam
sem propósito aparente, como se tivessem sido contratadas para enfeitar a
paisagem. Não deixa de ser estranho olhá-las de cima.
O farol não foi
construído para servir de miradouro, mas para ser avistado de longe pelos
navegantes. De noite, a luz dá um ponto de referência aos marinheiros. De dia,
as faixas horizontais alternadamente brancas e vermelhas proporcionam uma
medida da distância a terra. Como a superfície do mar é redonda, quanto mais
alto parece o farol, mais perto se está da costa. Calculo que cada lista dê a
medida de uma milha, ou coisa assim.
A dado momento,
deu-me para falar de anjos. É tema que me agrada e que impressiona quase sempre
as raparigas.
− Olha em volta.
E se avistasses um anjo a voar?
− Achava que
tinha abusado do vinho branco – respondeu a minha amiga.
− Os anjos e os demónios são eternos. Foram criados como
irmãos. Segundo algumas fontes hebraicas, Deus fez o mundo há perto de cinco
mil anos.
− É muito mais antigo – objetou a Sandra.
− Deixemos a questão para os especialistas. Dizem que alguns
demónios têm filhos, mas fizeram-nos cá na terra. Quanto aos anjos, ninguém
lhes conhece descendência.
− Não são seres carnais – informou a Sandra.
− Já viste algum?
− Não. Ninguém vê os anjos.
− Acho que não se adaptam aos tempos modernos. É provável
que se tenham extinguido, como as fadas e os gnomos.
− Estás a brincar, ou a falar a sério?
A ingenuidade desta jovem seduz-me. Talvez alguns homens
gostem de mulheres menos espertas que eles.
− Acho que estou a brincar com coisas sérias.
Nesse momento,
baixei os olhos para o mar. O vento encorpara de forma estranha. Parecia
incidir, em especial sobre uma zona limitada das ondas, como se uma lente
gigantesca tivesse concentrado uma força desmedida sobre um ponto específico a
devastar. Ali, a água fervilhava, incomodada. Nunca vos pareceu que, às vezes,
o mar se assusta, como se investisse contra a terra com os cornos do medo?
As ondas
pareciam encarniçar-se de encontro à falésia do lado sul. O mar entrava,
enrolava-se e saía, numa ejaculação maligna de espuma. Estaria a escavar uma
caverna, como se perfurasse um hímen.
Apreciei a minha
conjetura apenas por instantes. Enganara-me. Afinal, a caverna engravidara há
muito.
Vi, ou
julguei ver, uma criatura escapar-se do buraco, bater desajeitadamente as asas
e elevar-se nos céus, conservando-se abaixo do nível das nuvens. Como se
estivesse cansada, pairou, aproveitando as correntes de ar e foi desenhando
voltas largas. Parecia esperar por alguém.
A Sandra viu o mesmo que eu. Comentou:
− Estão a sair dali pássaros.
A incapacidade dela para se maravilhar espantava-me.
Comentei:
− Nunca vi pássaros tão grandes.
− Nem eu...
A moça recordou-se da conversa de minutos atrás e perguntou,
envergonhada, como se estivesse com medo de fazer figura de parva:
− Serão mesmo anjos?
Era nisso que eu estava a pensar. Já não a achava assim tão
burra.
Os seres alados continuavam a libertar-se e juntavam-se aos
outros, em voos circulares.
A minha cabeça era pequena para conter o rápido suceder dos
pensamentos. Parecia-me que não cabiam lá todos. Esgotadas as possibilidades
alternativas, o horizonte lógico estreitava-se.
Concordei com a Sandra:
− São anjos.
Quase nem me espantei com aquela conclusão inverosímil.
A máquina de pensar, contudo, não se detinha. Apenas me
ocorria uma explicação para aquele fenómeno único. Deus soltara-os.
Lembrei-me
de um versículo de Ezequiel:
Tu eras querubim da guarda ungido.
Perfeito eras nos teus caminhos até que se achou iniquidade em ti.
Recordei,
a seguir, outros, que julgo que eram de Isaías:
Como caíste do céu, ó estrela
da manhã, filha da alva! Como foste lançado por terra, tu que debilitavas as
nações!
Tu dizias no teu coração: eu
subirei ao céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono,
Subirei acima das mais altas nuvens e
serei semelhante ao Altíssimo.
Acho
que o que se segue é do Apocalipse:
Houve batalha no céu; o dragão e os
seus anjos pelejaram contra Miguel e os seus anjos e não prevaleceram; nem mais
se achou no céu o lugar deles; e foi expulso o grande dragão, que se chama
Satanás, o sedutor de todo o mundo; foi precipitado na terra e os seus anjos
foram lançados com ele.
Não me lembro de mais versículos; acho mesmo que os que
citei já não são poucos. O dragão, antes de inchar de vaidade, tinha o nome de
Lúcifer. Terá ido habitar o inferno com os seus seguidores.
Tanto quanto me era dado ver, o Senhor considerava que eles
tinham já cumprido as penas a que haviam sido condenados. Libertos, iriam
possivelmente juntar-se à grande hoste celestial.
Os seres alados eram cada vez mais e davam voltas largas
centradas no farol. As gaivotas sumiram, assustadas com aquele movimento
inusitado.
À medida que crescia, o bando escurecia. Às tantas, era uma
nuvem negra rodopiante como um tornado. Roubava a luz ao farol.
E se se Deus não os tivesse autorizado a sair? Se o bando
tivesse ganhado força suficiente para romper as rochas?
Teria tido ajuda de fora. O vento que impelira o mar contra
a falésia não me parecera normal.
A Sandra assustou-se. Agarrou a minha mão e apertou-a com
força.
Às tantas, o guia do bando interrompeu as voltas e voou por
sobre o mar, seguido da sua legião alada. O vento acalmou e o mar também. O
horizonte retomou o seu aspeto habitual. Avistava-se mesmo um barco navegar ao
longe.
Descemos as escadas com o coração apertado e foi a medo que
espreitámos os noticiários televisivos da noite. Eram as notícias de sempre. Os
jornais do dia seguinte não referiam qualquer acontecimento extraordinário.
Será que aquele prodígio foi presenciado somente por mim e
pela Sandra?
Andamos ambos como mesmo medo, o que nos aproxima. Estamos à
espera de ouvir falar de combates nos céus.
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