DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

quarta-feira, 10 de março de 2021

 

      OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH


                       O FAROL



Apresento um pormenor do painel que representa o Paraíso, no Jardim das Delícias Terrenas. Situa-se no canto superior esquerdo do quadro. Não inspirou um conto, pois já estava escrito, mas fez-mo recordar.

Entendo pouco de pássaros. Ia chamar estorninhos aos que saem da gruta e voam em bando, mas poderei estar errado. Não sei se os que estão poisados no solo aguardam o momento de se juntar a eles, ou se apenas testemunham um movimento inusitado.

Seria quase impossível não me lembrar de “O Farol”.

Não sei bem como consegui chegar ao cimo do comprido edifício circular. Arfava. Os degraus eram muitos e a escadaria assustava. Esforcei-me por subir, para impressionar a Sandra. Procuro parecer jovem perto dela.

Cá estamos, no topo. Caminhamos à roda do patamar, protegidos pela balaustrada.

O horizonte alarga-se sobre a terra e sobre o mar. Vemos nascer as ondas ao longe. Vão-se crescendo até morrerem contra as rochas.

As gaivotas voam sem propósito aparente, como se tivessem sido contratadas para enfeitar a paisagem. Não deixa de ser estranho olhá-las de cima.

O farol não foi construído para servir de miradouro, mas para ser avistado de longe pelos navegantes. De noite, a luz dá um ponto de referência aos marinheiros. De dia, as faixas horizontais alternadamente brancas e vermelhas proporcionam uma medida da distância a terra. Como a superfície do mar é redonda, quanto mais alto parece o farol, mais perto se está da costa. Calculo que cada lista dê a medida de uma milha, ou coisa assim.

A dado momento, deu-me para falar de anjos. É tema que me agrada e que impressiona quase sempre as raparigas.

− Olha em volta. E se avistasses um anjo a voar?

− Achava que tinha abusado do vinho branco – respondeu a minha amiga.

− Os anjos e os demónios são eternos. Foram criados como irmãos. Segundo algumas fontes hebraicas, Deus fez o mundo há perto de cinco mil anos.

− É muito mais antigo – objetou a Sandra.

− Deixemos a questão para os especialistas. Dizem que alguns demónios têm filhos, mas fizeram-nos cá na terra. Quanto aos anjos, ninguém lhes conhece descendência.

− Não são seres carnais – informou a Sandra.

− Já viste algum?

− Não. Ninguém vê os anjos.

− Acho que não se adaptam aos tempos modernos. É provável que se tenham extinguido, como as fadas e os gnomos.

− Estás a brincar, ou a falar a sério?

A ingenuidade desta jovem seduz-me. Talvez alguns homens gostem de mulheres menos espertas que eles.

− Acho que estou a brincar com coisas sérias.

Nesse momento, baixei os olhos para o mar. O vento encorpara de forma estranha. Parecia incidir, em especial sobre uma zona limitada das ondas, como se uma lente gigantesca tivesse concentrado uma força desmedida sobre um ponto específico a devastar. Ali, a água fervilhava, incomodada. Nunca vos pareceu que, às vezes, o mar se assusta, como se investisse contra a terra com os cornos do medo?

As ondas pareciam encarniçar-se de encontro à falésia do lado sul. O mar entrava, enrolava-se e saía, numa ejaculação maligna de espuma. Estaria a escavar uma caverna, como se perfurasse um hímen.

Apreciei a minha conjetura apenas por instantes. Enganara-me. Afinal, a caverna engravidara há muito.

Vi, ou julguei ver, uma criatura escapar-se do buraco, bater desajeitadamente as asas e elevar-se nos céus, conservando-se abaixo do nível das nuvens. Como se estivesse cansada, pairou, aproveitando as correntes de ar e foi desenhando voltas largas. Parecia esperar por alguém.

A Sandra viu o mesmo que eu. Comentou:

− Estão a sair dali pássaros.

A incapacidade dela para se maravilhar espantava-me. Comentei:

− Nunca vi pássaros tão grandes.

− Nem eu...

A moça recordou-se da conversa de minutos atrás e perguntou, envergonhada, como se estivesse com medo de fazer figura de parva:

− Serão mesmo anjos?

Era nisso que eu estava a pensar. Já não a achava assim tão burra.

Os seres alados continuavam a libertar-se e juntavam-se aos outros, em voos circulares.

A minha cabeça era pequena para conter o rápido suceder dos pensamentos. Parecia-me que não cabiam lá todos. Esgotadas as possibilidades alternativas, o horizonte lógico estreitava-se.

Concordei com a Sandra:

− São anjos.

Quase nem me espantei com aquela conclusão inverosímil.

A máquina de pensar, contudo, não se detinha. Apenas me ocorria uma explicação para aquele fenómeno único. Deus soltara-os.

Lembrei-me de um versículo de Ezequiel:

Tu eras querubim da guarda ungido. Perfeito eras nos teus caminhos até que se achou iniquidade em ti.

Recordei, a seguir, outros, que julgo que eram de Isaías:

Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como foste lançado por terra, tu que debilitavas as nações!

Tu dizias no teu coração: eu subirei ao céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono,

Subirei acima das mais altas nuvens e serei semelhante ao Altíssimo.

Acho que o que se segue é do Apocalipse:

Houve batalha no céu; o dragão e os seus anjos pelejaram contra Miguel e os seus anjos e não prevaleceram; nem mais se achou no céu o lugar deles; e foi expulso o grande dragão, que se chama Satanás, o sedutor de todo o mundo; foi precipitado na terra e os seus anjos foram lançados com ele.

Não me lembro de mais versículos; acho mesmo que os que citei já não são poucos. O dragão, antes de inchar de vaidade, tinha o nome de Lúcifer. Terá ido habitar o inferno com os seus seguidores.

Tanto quanto me era dado ver, o Senhor considerava que eles tinham já cumprido as penas a que haviam sido condenados. Libertos, iriam possivelmente juntar-se à grande hoste celestial.

Os seres alados eram cada vez mais e davam voltas largas centradas no farol. As gaivotas sumiram, assustadas com aquele movimento inusitado.

À medida que crescia, o bando escurecia. Às tantas, era uma nuvem negra rodopiante como um tornado. Roubava a luz ao farol.

E se se Deus não os tivesse autorizado a sair? Se o bando tivesse ganhado força suficiente para romper as rochas?

Teria tido ajuda de fora. O vento que impelira o mar contra a falésia não me parecera normal.

A Sandra assustou-se. Agarrou a minha mão e apertou-a com força.

Às tantas, o guia do bando interrompeu as voltas e voou por sobre o mar, seguido da sua legião alada. O vento acalmou e o mar também. O horizonte retomou o seu aspeto habitual. Avistava-se mesmo um barco navegar ao longe.

Descemos as escadas com o coração apertado e foi a medo que espreitámos os noticiários televisivos da noite. Eram as notícias de sempre. Os jornais do dia seguinte não referiam qualquer acontecimento extraordinário.

Será que aquele prodígio foi presenciado somente por mim e pela Sandra?

Andamos ambos como mesmo medo, o que nos aproxima. Estamos à espera de ouvir falar de combates nos céus.

 

 

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