OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH
OS PÁSSAROS
Este conto foi
escrito há algum tempo, antes de eu ter programado o trabalho que agora
apresento. Considero, contudo, que se enquadra bem nele. Os leitores serão os
meus juízes, como sempre.
Antigamente, o
mundo não era como é hoje.
Pelo menos, não
era encarado da mesma maneira. Havia quem imaginasse o Universo a branco e
preto. O Bem demarcava-se nitidamente do Mal.
Os múltiplos
tons de cinzento que sempre predominaram no entendimento e na prática moral dos
homens demoraram a ser reconhecidos. Os gatos negros escasseavam por darem má
sorte e os galos da mesma cor eram abatidos cedo. Quanto aos bodes, apesar de
assemelharem às representações do diabo, iam sendo tolerados. Faziam falta para
cobrir as cabras e os rebanhos eram fontes de leite e de carne. As pessoas
preocupavam-se primeiro com a vida e, só depois, com a salvação.
Naquele tempo,
cometiam-se poucos pecados veniais. Eram épocas de exagero e muitas as mulheres
de meia-idade tendiam a ser beatas ou bruxas. O mundo das concertações, que
também era o dos pequenos desencontros, existia, sem ser muito considerado. O
espaço das exceções e anomalias era mal visto e abandonado aos feiticeiros.
Sim, refiro-me à época em que o demónio era rei das encruzilhadas.
Vou falar de um
pequeno feiticeiro que viveu na freguesia de Cheganças, na região do Douro, no
começo do século XVII. Chamava-se Eneias, sabe-se lá por quê. Pelos oito anos,
quando avistava uma estrela cadente, Eneias já abaixava o olhar na sua direção
e colhia do chão um punhado de areia, uma pedra, um ramo de erva, ou fosse lá o
que fosse que a estrela apontara. Depois, entrava sorrateiramente na igreja e,
quando ninguém o olhava, lançava o que tinha apanhado para trás da pia de água
benta. Era assim que ficava a conhecer as feiticeiras da terra. Admirou-se por
uma ser irmã do juiz e outra amante do padre Joaquim.
Aos catorze
anos, aprendeu a enfeitiçar pássaros para proteger os campos cultivados.
Aqueles cérebros pequenos eram fáceis de convencer. Dizia-lhes: “eu te benzo,
pardal pardo, não comas o milho da tapada; quando lá for, quero-o achar”.
Enfeitiçados ou
não, os passaritos precisavam de se alimentar. Mudavam-se para os terrenos
vizinhos, que não estavam protegidos por rezas.
Pelos dezoito
anos, Eneias interessou-se pelos morcegos. Apreciava-lhes o voo e procurava
entender as suas inflexões bruscas. Nos finais de tarde, punha-se a espreitar,
para ver de que lado vinham os primeiros. Acabou por descobrir o local onde um
bando se abrigara. Era um pombal abandonado, na quinta do velho Matias.
Entrou lá a meio
de uma tarde de verão e viu-os, pendurados pelas patas nas traves do teto, com
as asas encolhidas e as cabeças para baixo. Revelaram alguma agitação pela
irrupção da luz e pelo som produzido pelo intruso, mas não saíram de onde
estavam.
Eneias voltou lá
na manhã seguinte. Levava luvas de couro. Trepou a parede, usando os nichos
vazios destinados às pombas para se segurar, e agarrou um dos que estavam mais
baixos, tentando não o magoar.
Levou-o para
casa e observou-o atentamente. Com as asas fechadas, cabia na mão. Tinha
orelhas grandes. O focinho fazia lembrar o de um cão muito pequeno, mas o nariz
era largo e achatado como os dos porcos. O rapaz tinha ouvido dizer que um
animalzinho daqueles era capaz de comer, numa única noite, insetos que, no
conjunto, pesavam tanto como metade dele, mas não acreditara. Os insetos eram
quase todos muito pequenos. Podia lá ser!
Tentou
enfeitiçá-lo, mas não foi capaz. Esses ratos alados e quase cegos eram imunes a
rezas e benzeduras. Meteu o morcego numa caixa de papelão onde tinham vindo uns
sapatos e fez-lhe furos para que pudesse respirar.
De manhã, deu
com a caixa vazia. O morcego levantara-lhe a tampa e escapara-se pela janela
aberta.
Nesse mesmo dia,
ocorreu-lhe uma ideia má. O padre falara, na igreja, de anjos revoltados que
tinham sido precipitados no inferno. Citara o profeta Isaías. Eneias tinha
excelente memória e fixara aquela passagem quase de cor: “Como caíste do céu, ó
estrela da manhã, filho da alva! Como foste lançado por terra! Tu dizias: Eu
subirei ao céu, acima das estrelas de Deus! Subirei acima das mais altas nuvens
e serei semelhante ao Altíssimo!”
Noutro domingo,
padre Joaquim citara o Apocalipse: “Houve guerra no céu; Miguel e seus anjos
lutaram contra o dragão e os seus anjos. Foi expulso o grande dragão, a antiga
serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor do mundo. Foi atirado para a
terra e, como ele, os seus anjos.”
Eneias meteu uma
ideia na cabeça e não mais foi capaz de se livrar dela. Deus transformara os
anjos vencidos em morcegos, condenando-os a voar de noite e a alimentarem-se de
insetos até mostrarem arrependimento.
Sustentar uma
ideia assim nada teria de perigoso, desde que o moço a calasse. Acontece que a
prudência não é própria da juventude e que os rapazes gostam de falar entre si
e com as raparigas. Ainda por cima, Eneias convencera-se de que o tempo da
punição se estava a gastar e que o Senhor se preparava para transformar de novo
os morcegos em anjos, devolvendo-lhes o antigo esplendor. Seria bom e até
prudente começar a venerar aqueles seres magníficos.
O jovem benzedor
já era mal visto em Cheganças por alguns proprietários considerarem que ele afastava
os pardais dos campos de centeio e milho dos vizinhos que lhe pagavam,
empurrando-os para os dos donos menos dispostos a abrir os cordões às bolsas.
Quando a
história dos morcegos que tinham sido anjos chegou aos ouvidos do padre
Joaquim, ele achou que a questão era grave e não deveria ser tratada
localmente. Comunicou-a ao bispado.
Esconderei dos
leitores o final desta história, para não os entristecer. A Inquisição andava
muito atenta a factos destes.
Tanto quanto
sei, nunca mais houve benzedores de pássaros em Cheganças. Quanto aos morcegos,
continuam a voar de noite e a alimentar-se de insetos. Até agora, ninguém
avistou um anjo entre eles.
Sem comentários:
Enviar um comentário