DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

terça-feira, 23 de março de 2021

 

     OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH


               OS PÁSSAROS



Este conto foi escrito há algum tempo, antes de eu ter programado o trabalho que agora apresento. Considero, contudo, que se enquadra bem nele. Os leitores serão os meus juízes, como sempre.   

Antigamente, o mundo não era como é hoje.

Pelo menos, não era encarado da mesma maneira. Havia quem imaginasse o Universo a branco e preto. O Bem demarcava-se nitidamente do Mal.

Os múltiplos tons de cinzento que sempre predominaram no entendimento e na prática moral dos homens demoraram a ser reconhecidos. Os gatos negros escasseavam por darem má sorte e os galos da mesma cor eram abatidos cedo. Quanto aos bodes, apesar de assemelharem às representações do diabo, iam sendo tolerados. Faziam falta para cobrir as cabras e os rebanhos eram fontes de leite e de carne. As pessoas preocupavam-se primeiro com a vida e, só depois, com a salvação.

Naquele tempo, cometiam-se poucos pecados veniais. Eram épocas de exagero e muitas as mulheres de meia-idade tendiam a ser beatas ou bruxas. O mundo das concertações, que também era o dos pequenos desencontros, existia, sem ser muito considerado. O espaço das exceções e anomalias era mal visto e abandonado aos feiticeiros. Sim, refiro-me à época em que o demónio era rei das encruzilhadas.

Vou falar de um pequeno feiticeiro que viveu na freguesia de Cheganças, na região do Douro, no começo do século XVII. Chamava-se Eneias, sabe-se lá por quê. Pelos oito anos, quando avistava uma estrela cadente, Eneias já abaixava o olhar na sua direção e colhia do chão um punhado de areia, uma pedra, um ramo de erva, ou fosse lá o que fosse que a estrela apontara. Depois, entrava sorrateiramente na igreja e, quando ninguém o olhava, lançava o que tinha apanhado para trás da pia de água benta. Era assim que ficava a conhecer as feiticeiras da terra. Admirou-se por uma ser irmã do juiz e outra amante do padre Joaquim.

Aos catorze anos, aprendeu a enfeitiçar pássaros para proteger os campos cultivados. Aqueles cérebros pequenos eram fáceis de convencer. Dizia-lhes: “eu te benzo, pardal pardo, não comas o milho da tapada; quando lá for, quero-o achar”.

Enfeitiçados ou não, os passaritos precisavam de se alimentar. Mudavam-se para os terrenos vizinhos, que não estavam protegidos por rezas.

Pelos dezoito anos, Eneias interessou-se pelos morcegos. Apreciava-lhes o voo e procurava entender as suas inflexões bruscas. Nos finais de tarde, punha-se a espreitar, para ver de que lado vinham os primeiros. Acabou por descobrir o local onde um bando se abrigara. Era um pombal abandonado, na quinta do velho Matias.

Entrou lá a meio de uma tarde de verão e viu-os, pendurados pelas patas nas traves do teto, com as asas encolhidas e as cabeças para baixo. Revelaram alguma agitação pela irrupção da luz e pelo som produzido pelo intruso, mas não saíram de onde estavam.

Eneias voltou lá na manhã seguinte. Levava luvas de couro. Trepou a parede, usando os nichos vazios destinados às pombas para se segurar, e agarrou um dos que estavam mais baixos, tentando não o magoar.

Levou-o para casa e observou-o atentamente. Com as asas fechadas, cabia na mão. Tinha orelhas grandes. O focinho fazia lembrar o de um cão muito pequeno, mas o nariz era largo e achatado como os dos porcos. O rapaz tinha ouvido dizer que um animalzinho daqueles era capaz de comer, numa única noite, insetos que, no conjunto, pesavam tanto como metade dele, mas não acreditara. Os insetos eram quase todos muito pequenos. Podia lá ser!

Tentou enfeitiçá-lo, mas não foi capaz. Esses ratos alados e quase cegos eram imunes a rezas e benzeduras. Meteu o morcego numa caixa de papelão onde tinham vindo uns sapatos e fez-lhe furos para que pudesse respirar.

De manhã, deu com a caixa vazia. O morcego levantara-lhe a tampa e escapara-se pela janela aberta.

Nesse mesmo dia, ocorreu-lhe uma ideia má. O padre falara, na igreja, de anjos revoltados que tinham sido precipitados no inferno. Citara o profeta Isaías. Eneias tinha excelente memória e fixara aquela passagem quase de cor: “Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filho da alva! Como foste lançado por terra! Tu dizias: Eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus! Subirei acima das mais altas nuvens e serei semelhante ao Altíssimo!”

Noutro domingo, padre Joaquim citara o Apocalipse: “Houve guerra no céu; Miguel e seus anjos lutaram contra o dragão e os seus anjos. Foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor do mundo. Foi atirado para a terra e, como ele, os seus anjos.”

Eneias meteu uma ideia na cabeça e não mais foi capaz de se livrar dela. Deus transformara os anjos vencidos em morcegos, condenando-os a voar de noite e a alimentarem-se de insetos até mostrarem arrependimento.

Sustentar uma ideia assim nada teria de perigoso, desde que o moço a calasse. Acontece que a prudência não é própria da juventude e que os rapazes gostam de falar entre si e com as raparigas. Ainda por cima, Eneias convencera-se de que o tempo da punição se estava a gastar e que o Senhor se preparava para transformar de novo os morcegos em anjos, devolvendo-lhes o antigo esplendor. Seria bom e até prudente começar a venerar aqueles seres magníficos.

O jovem benzedor já era mal visto em Cheganças por alguns proprietários considerarem que ele afastava os pardais dos campos de centeio e milho dos vizinhos que lhe pagavam, empurrando-os para os dos donos menos dispostos a abrir os cordões às bolsas.

Quando a história dos morcegos que tinham sido anjos chegou aos ouvidos do padre Joaquim, ele achou que a questão era grave e não deveria ser tratada localmente. Comunicou-a ao bispado.

Esconderei dos leitores o final desta história, para não os entristecer. A Inquisição andava muito atenta a factos destes.

Tanto quanto sei, nunca mais houve benzedores de pássaros em Cheganças. Quanto aos morcegos, continuam a voar de noite e a alimentar-se de insetos. Até agora, ninguém avistou um anjo entre eles.

 


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