DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

domingo, 14 de março de 2021

 

           CONTOS DE HERTOGENBOSCH


                           O OVO




Olhamos o Jardim das Delícias.

Serão perto de uma dúzia os homens nus que saem da água e se acotovelam para entrar no ovo de casca quebrada. O ovo é descomunal. A ave que o pôs deve ter o tamanho de um grande avião de passageiros. Ainda assim, não sei se caberão todos lá, por mais que se apertem.

Vão apressados. Quererão resguardar-se de olhares estranhos para se dedicarem ao sexo em grupo.

Existem outras explicações possíveis, mas parecem improváveis. Os jovens não pretendem escapar da borrasca, pois não há nuvens no céu. Aliás, molhados já eles estão. Não fogem de crocodilos nem de tubarões, porque não existem naquelas águas. 

Não haverá mulheres atraentes no interior do ovo. Mesmo que as houvesse, duvido de que esses moços se interessassem por elas. Tão pouco parecem pretender regressar ao útero materno.

Será a música que os chama? A sereia não é. Arranjou outro entretenimento.

Poderá estar a começar um combate de galos. Eram espetáculos muito apreciados na Flandres, na época em que Bosch viveu.

Alguém lá dentro terá anunciado a abertura de um barril de cerveja fresquinha.

Quem terá quebrado o ovo? Acho que foi o artista, com um dos seus pincéis. Não creio que tenha sido o pássaro novo a sair.

O melhor será calar a imaginação e abrir os ouvidos. Se escutarem com cuidado, darão por um grito que se repete:

− Lá dentro há bons cus!

Por vezes, a primeira impressão que nos chega é a certeira. É a carne que os chama. Estão a organizar uma orgia homossexual.

Que se cuidem! Os demónios entretêm-se a semear armadilhas nos caminhos dos homens. Quem sabe se o ovo não constitui uma entrada dissimulada para o painel da direita? 




 


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