DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

sexta-feira, 5 de março de 2021

         

        OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH


            FUGA PARA O EGITO




Lígia, a parteira, ajudou a mãe a dar o menino à luz. Quando a parturiente, exausta, adormeceu, enfaixou a criança em panos limpos e roubou-a. Tencionava entregá-la a Satanás, para cumprir o pacto estabelecido.

Colocou a alcova de ama-seca no dorso duma ratazana enorme e sentou-se nela. Mostrou-se, então, com o aspeto que tinha nas noites de terça-feira e em alguns sábados. As pernas desapareceram, dando lugar a uma longa cauda de peixe. O rosto tornou-se esverdeado, enquanto cobria a cabeça com um tronco de árvore morta. Os dedos cresceram a afilaram-se como ramos secos. Foi desse modo que Bosh a retratou. A bruxa sentia-se melhor assim do que na forma e nas vestes dos dias comuns, em que pouca gente lhe dava importância.

A viagem seria curta. O Inferno não era longe. Está quase sempre mais perto de nós do que imaginamos.

Entretanto, Lígia baixou o olhar para o menino enfaixado que tinha nos braços. O bebé sorriu-lhe.

A mulher achou que nunca vira um recém-nascido que fosse logo capaz de sorrir. Estava perante um encantamento e talvez um sinal.

Alguma coisa mudou repentinamente dentre dela. Do borralho que definhava no seu coração brotou um fogo novo que se espalhou alegremente por artérias e veias, aquecendo-lhe mesmo a alma. Aquele menino não seria para o Diabo. Ela iria encarregar-se de o criar.

A jovem que dera à luz a criança era mãe solteira. Perdera muito sangue e dificilmente seria capaz de sobreviver. A parteira não sabia quem era o pai do bebé, embora tivesse as suas desconfianças.

Estremeceu quando se lembrou do pacto que assinara com o próprio sangue. Os acordos com o Diabo não podiam ser desfeitos.

Lígia não nascera bruxa. Nenhuma menina nasce com esse fado. Tinha sido uma criança normal e crescera numa família remediada de Hertogenbosch. O pai era operário numa pequena fábrica que produzia facas e punhais. A cutelaria da cidade era conhecida, mesmo além-fronteiras. O homem ganhava menos mal e era respeitado entre os seus.

O mal atacara a rapariga junto ao calor da forja.

No esplendor dos dezasseis anos, sem ser invulgarmente bonita, atraía os olhares dos rapazes.

No fim duma manhã de verão fora levar a merenda ao pai. O operário tivera de sair, para ajudar a reparar uma avaria numa fábrica próxima. Quem recebeu a moça à porta foi o Julião. Era um homem feito, já casado e pai de filhos, mas fazia tempo que não tirava os olhos dela. Sorriu-lhe, quando a viu. Tinha um sorriso bonito.

− O teu pai não está, mas não deve demorar. Entra e senta-te. O que é que trazes aí?

− É a merenda do meu pai.

− Trouxeste vinho?

− Algum, numa garrafa pequena. Ele diz que aqui faz muito calor e que a água lhe sabe melhor.

− Hum… Acho que ele não se importa, seu provar um bocadinho. Também queres um golo?

− Não… Acho que não… Não estou habituada a essas bebidas.

− Ora… é só um trago.

Lígia provou e depois bebeu um pouco mais. O Julião era tão bonito e sabia falar tão bem às mulheres… Era pena ser casado.

Fazia calor junto à forja e ele tirou a camisa. Tinha um tronco musculado.

− E tu, não tens calor?

− Calor tenho, mas…

− Eu ajudo-te a tirar a blusa…

− Mas não tenho mais nada por baixo…

− Nem faz falta, garanto-te.

Às tantas, Lígia estava deitada no solo, com a saia levantada e Julião em cima dela. Não tentou escapar. Sonhava com aquele momento havia meses.

Depois de satisfeito, o homem manifestou pressa de a afastar dali.

− Lígia! És uma maravilha de mulher, mas é preciso que te vás embora antes que chegue o teu pai.

As visitas à oficina continuaram, a horas a que o pai da rapariga tinha já saído.

Pouco tempo depois, a rapariga viu que a menstruação lhe faltava. A seguir, viu que a barriga lhe crescia. Estava grávida.

Foi ter com o amante. Afogada em lágrimas, contou-lhe o que se passava. Ouviu palavras que eram tão duras como sensatas.

− Lígia! És uma rapariga bonita e doce. Gosto muito de ti, mas sou casado e tenho as minhas responsabilidades. Terás de fazer um aborto. Eu conheço uma mulher experiente e discreta. O mais que posso fazer é pagar o trabalho dela. De outro modo, já viste como iria ser a tua vida nesta terra?

Lígia aceitou e tirou o menino.

Quando voltava, sozinha e a pé, da casa da abortadeira, pareceu-lhe ouvir uma gargalhada rouca, ao mesmo tempo que as janelas da casa dela se avermelhavam, como se houvesse fogo lá dentro.

O resto da sua história pessoal tem interesse reduzido, até chegar o momento da grande decisão da sua vida. Lígia não casou. Fez-se, primeiro, abortadeira e, depois, parteira. Diz-se que se juntou a um pequeno grupo de mulheres más que, nas noites de terça-feira iam dançar nuas atrás do cemitério da cidade. Diz-se, mas nunca houve ninguém que o pudesse comprovar. Nem os mais valentes se atreviam a espreitá-las. Afinal de contas, cada um tem apenas uma alma e será prudente tomar boa conta dela.

Tudo isso parecia agora muito distante.

Lígia olhou o menino. Já não sorria. Adormecera.

A mulher encolheu os ombros e deitou fora o tronco seco que a toucara. O mundo era grande, muito grande, e as garras de Satanás não podiam chegar a todo o lado.

Resolveu fugir para o Egito, como tinham feito Maria e José para que Jesus escapasse à sanha de Herodes. Nessa terra distante mandariam outros deuses e haveria outros demónios.

Não sabia onde ficava o Egito, mas não se assustou com a própria ignorância. Iria perguntando. Alguém havia de lhe indicar o caminho.

Arrenegou Satanás mas, antes, fez os últimos encantamentos. Recuperou as próprias pernas, fez crescer os peitos secos e encheu-os de leite. Depois, transformou a ratazana em burra e de meteu-se ao caminho.

 

 

 

 

 


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