OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH
FUGA PARA O EGITO
Lígia, a
parteira, ajudou a mãe a dar o menino à luz. Quando a parturiente, exausta,
adormeceu, enfaixou a criança em panos limpos e roubou-a. Tencionava entregá-la
a Satanás, para cumprir o pacto estabelecido.
Colocou a alcova
de ama-seca no dorso duma ratazana enorme e sentou-se nela. Mostrou-se, então,
com o aspeto que tinha nas noites de terça-feira e em alguns sábados. As pernas
desapareceram, dando lugar a uma longa cauda de peixe. O rosto tornou-se
esverdeado, enquanto cobria a cabeça com um tronco de árvore morta. Os dedos
cresceram a afilaram-se como ramos secos. Foi desse modo que Bosh a retratou. A
bruxa sentia-se melhor assim do que na forma e nas vestes dos dias comuns, em
que pouca gente lhe dava importância.
A viagem seria
curta. O Inferno não era longe. Está quase sempre mais perto de nós do que
imaginamos.
Entretanto, Lígia
baixou o olhar para o menino enfaixado que tinha nos braços. O bebé sorriu-lhe.
A mulher achou
que nunca vira um recém-nascido que fosse logo capaz de sorrir. Estava perante
um encantamento e talvez um sinal.
Alguma coisa
mudou repentinamente dentre dela. Do borralho que definhava no seu coração
brotou um fogo novo que se espalhou alegremente por artérias e veias,
aquecendo-lhe mesmo a alma. Aquele menino não seria para o Diabo. Ela iria
encarregar-se de o criar.
A jovem que dera
à luz a criança era mãe solteira. Perdera muito sangue e dificilmente seria
capaz de sobreviver. A parteira não sabia quem era o pai do bebé, embora
tivesse as suas desconfianças.
Estremeceu
quando se lembrou do pacto que assinara com o próprio sangue. Os acordos com o
Diabo não podiam ser desfeitos.
Lígia não
nascera bruxa. Nenhuma menina nasce com esse fado. Tinha sido uma criança
normal e crescera numa família remediada de Hertogenbosch. O pai era operário numa
pequena fábrica que produzia facas e punhais. A cutelaria da cidade era
conhecida, mesmo além-fronteiras. O homem ganhava menos mal e era respeitado
entre os seus.
O mal atacara a
rapariga junto ao calor da forja.
No esplendor dos
dezasseis anos, sem ser invulgarmente bonita, atraía os olhares dos rapazes.
No fim duma
manhã de verão fora levar a merenda ao pai. O operário tivera de sair, para
ajudar a reparar uma avaria numa fábrica próxima. Quem recebeu a moça à porta
foi o Julião. Era um homem feito, já casado e pai de filhos, mas fazia tempo
que não tirava os olhos dela. Sorriu-lhe, quando a viu. Tinha um sorriso
bonito.
− O teu pai não
está, mas não deve demorar. Entra e senta-te. O que é que trazes aí?
− É a merenda do
meu pai.
− Trouxeste
vinho?
− Algum, numa
garrafa pequena. Ele diz que aqui faz muito calor e que a água lhe sabe melhor.
− Hum… Acho que
ele não se importa, seu provar um bocadinho. Também queres um golo?
− Não… Acho que
não… Não estou habituada a essas bebidas.
− Ora… é só um
trago.
Lígia provou e
depois bebeu um pouco mais. O Julião era tão bonito e sabia falar tão bem às
mulheres… Era pena ser casado.
Fazia calor
junto à forja e ele tirou a camisa. Tinha um tronco musculado.
− E tu, não tens
calor?
− Calor tenho,
mas…
− Eu ajudo-te a
tirar a blusa…
− Mas não tenho
mais nada por baixo…
− Nem faz falta,
garanto-te.
Às tantas, Lígia
estava deitada no solo, com a saia levantada e Julião em cima dela. Não tentou
escapar. Sonhava com aquele momento havia meses.
Depois de
satisfeito, o homem manifestou pressa de a afastar dali.
− Lígia! És uma
maravilha de mulher, mas é preciso que te vás embora antes que chegue o teu
pai.
As visitas à
oficina continuaram, a horas a que o pai da rapariga tinha já saído.
Pouco tempo
depois, a rapariga viu que a menstruação lhe faltava. A seguir, viu que a
barriga lhe crescia. Estava grávida.
Foi ter com o
amante. Afogada em lágrimas, contou-lhe o que se passava. Ouviu palavras que
eram tão duras como sensatas.
− Lígia! És uma
rapariga bonita e doce. Gosto muito de ti, mas sou casado e tenho as minhas
responsabilidades. Terás de fazer um aborto. Eu conheço uma mulher experiente e
discreta. O mais que posso fazer é pagar o trabalho dela. De outro modo, já
viste como iria ser a tua vida nesta terra?
Lígia aceitou e
tirou o menino.
Quando voltava,
sozinha e a pé, da casa da abortadeira, pareceu-lhe ouvir uma gargalhada rouca,
ao mesmo tempo que as janelas da casa dela se avermelhavam, como se houvesse
fogo lá dentro.
O resto da sua
história pessoal tem interesse reduzido, até chegar o momento da grande decisão
da sua vida. Lígia não casou. Fez-se, primeiro, abortadeira e, depois,
parteira. Diz-se que se juntou a um pequeno grupo de mulheres más que, nas
noites de terça-feira iam dançar nuas atrás do cemitério da cidade. Diz-se, mas
nunca houve ninguém que o pudesse comprovar. Nem os mais valentes se atreviam a
espreitá-las. Afinal de contas, cada um tem apenas uma alma e será prudente
tomar boa conta dela.
Tudo isso
parecia agora muito distante.
Lígia olhou o
menino. Já não sorria. Adormecera.
A mulher encolheu
os ombros e deitou fora o tronco seco que a toucara. O mundo era grande, muito
grande, e as garras de Satanás não podiam chegar a todo o lado.
Resolveu fugir
para o Egito, como tinham feito Maria e José para que Jesus escapasse à sanha
de Herodes. Nessa terra distante mandariam outros deuses e haveria outros
demónios.
Não sabia onde
ficava o Egito, mas não se assustou com a própria ignorância. Iria perguntando.
Alguém havia de lhe indicar o caminho.
Arrenegou Satanás
mas, antes, fez os últimos encantamentos. Recuperou as próprias pernas, fez
crescer os peitos secos e encheu-os de leite. Depois, transformou a ratazana em
burra e de meteu-se ao caminho.
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