DE CÁ E DELÁ

Daqui e dali, dos lugares por onde andei ou por onde gostaria de ter andado, dos mares que naveguei, dos versos que fiz, dos amigos que tive, das terras que amei, dos livros que escrevi.
Por onde me perdi, aonde me encontrei... Hei-de falar muito do que me agrada e pouco do que me desgosta.
O meu trabalho, que fui eu quase todo, ficará de fora deste projecto.
Vou tentar colar umas páginas às outras. Serão precárias, como a vida, e nunca hão-de ser livro. Não é esse o destino de tudo o que se escreve.

segunda-feira, 8 de março de 2021

 

        OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH


          O HOMEM-ÁRVORE





Jeroen nasceu numa família de pintores. O seu tio Jan, também artista, visitava a família com alguma frequência e ia espreitando os rabiscos do rapaz. Calhou encontrá-lo duas vezes seguidas a desenhar árvores mortas. Confidenciou ao irmão Anthonius:

− O teu filho tem talento, mas parece que faz sempre o mesmo desenho.

Não era verdade. Tratara-se apenas de uma coincidência. Jeroen gostava de árvores, mas não estava obcecado por elas. Desenhava tudo o que via e até muitas coisas que não tinha avistado. De algumas, nem sequer ouvira falar. Era capaz de ilustrar as histórias que escutava à lareira.

Já era crescido quando desenhou a árvore morta que conhecemos hoje, com um ninho de coruja no buraco do tronco. Terá, colmo de costume, amalgamado as memórias, os contos lidos e ouvidos e os produtos da imaginação. Apôs-lhe uma legenda: os campos têm olhos, os bosques têm ouvidos; quero ver, escutar e ficar calado.

 

                     


 

A família de Jeroen vivia na Praça do Mercado, mas o miúdo gostava de passear pela povoação e pelos arredores.

Herstogenborg era uma das quatro cidades maiores do ducado de Brabante. Menor que Bruxelas e Antuérpia, era contudo maior que Lovaina. A sua riqueza provinha do comércio e da indústria da cutelaria. Possuía, como era conveniente, um número considerável de tabernas e dois ou três prostíbulos.

O rapaz foi crescendo. Alimentava as fantasias eróticas de todos os adolescentes, mas escondia dos pais e do tio os desenhos de mulheres nuas. Traçava-as sem modelo vivo, pois nunca avistara uma rapariga despida. Copiara gravuras grosseiras que circulavam entre os adolescentes e imaginara retirar a roupa a algumas santas das pinturas da Igreja de San Juan. Espreitara as portas dos prostíbulos, como os demais rapazes que ainda não eram autorizados a entrar. Como não podia ver, imaginava.

Curiosamente, a imagem do bordel de difícil acesso acabaria por ser, mais tarde, corporizada na personagem do homem-árvore, que domina o painel direito do Jardim das Delícias Terrenas. É, pelo menos, nesse sentido que apontam as opiniões de alguns entendidos.

Para um leigo como eu, dificilmente o homem-árvore fará lembrar uma casa de passe. Onde é que estão as prostitutas? A única mulher à vista é a que retira vinho de um barril para um jarro. Não tem aspeto atraente. Parece velha. Usa um toucado com orelhas altas e tem o nariz comprido e brilhante. Seria preciso alguém estar desesperado (ou muito bêbado) para se querer deitar com ela.

O homem-árvore é uma das figuras mais icónicas do panteão de imagens prodigiosas que Bosch nos deixou. Julgo que acabará por dar lugar a mais interpretações.

O corpo tem forma oval. Poderia corresponder a um frango depenado e estripado.

A árvore sustenta-se em dois troncos. O de cá continua o corpo e assemelha-se a um membro humano. O do lado oposto, grosseiramente simétrico, ajuda a equilibrar o conjunto. Os troncos não mergulham as raízes no chão, mas assentam no fundo de barcaças onde que se reconhecem alguns tripulantes. Flutuam num riacho estreito onde alguns rapazes parecem brincar.

Há fila para subir a escada comprida. À frente dum homem despido, vão dois monstros. O de baixo tem asas de borboleta e cabeça de pássaro. O de cima é gordo. Tem capuz e botas, mas não usa calças. Leva uma flecha espetada no ânus. Não parece incomodá-lo.

Vêm-se homens nus à volta de uma mesa. Um deles está sentado numa ratazana. Não parecem divertidos. Da frente, chega o fulgor das chamas que tanto apraz a Bosh. Para além da bebida, não estão à vista outras fontes de prazer.

O chapéu redondo parece pertencer a outro mundo. É centrado por uma gaita-de-foles que uma monstra de touca branca procura tocar. À volta, desfilam pares de monstros e pecadores.

O homem-árvore olha para trás com uma expressão que se poderá situar entre a paciência e o desengano. É como se o tivessem contratado e lhe pagassem mal.

Junto ao ponto de apoio da escada, está um homem debruçado numa espécie de amurada. Tem o rosto redondo e as feições mal definidas e apoia a cabeça na mão sustentada pelo cotovelo. Ainda pensei que fosse vomitar, mas não é o caso.

Ampliei a imagem no computador e quase dei um salto na cadeira. É o Alfredo!

Como é que terá ido ali parar?

Conheço-o há cerca de uma dúzia de anos. Na altura, ele negociava em antiguidades. Vendeu-me um machado de bronze. Era uma falsificação. Curiosamente, comprei-lhe também um morteiro de salva. É feito do mesmo material e parece ter permanecido muitos anos, talvez séculos, no fundo do mar. Um arqueólogo meu amigo quase garante que é autêntico. A sua experiência ensina que as falsificações se vendem melhor se for introduzida no lote uma peça autêntica.

Depois, encontrei-o em lugares improváveis: a bordo do avião que nos levou de Frankfurt para Hong Kong, num passeio a pé pelo centro histórico de Praga e em Angola, à saída do aeroporto de Luanda. Habitualmente, cumprimenta-me de forma efusiva, mas já dei com ele a fingir que não me via e a misturar-se rapidamente na multidão. Não pretenderá ver publicitadas algumas das suas atividades.

O Alfredo nunca foi um homem honrado, mas não se pode dizer que fosse completamente desonesto. Será essa a imagem de marca de alguns comerciantes.

Cheguei a sonhar com ele, um par de vezes. Não foram sonhos bons, nem maus. O homem não aquece, nem arrefece. Vi-o como delegado de propaganda médica à porta do Serviço onde comecei a minha carreira hospitalar. Noutro sonho, encontrei-o a trabalhar numa agência de viagens que propunha destinos estranhos.

Nunca o tinha imaginado a deslocar-se no tempo. 

O mais provável é que a ampliação tenha alterado as feições do personagem que Bosch desenhou. Existem tipos de rostos que se repetem ao longo de gerações na mesma área geográfica e o Alfredo nunca chegou a dizer-me em que terra nasceu.

A outra explicação mais ou menos racional é eu estar a sonhar que contemplo “O Jardim das Delícias Terrenas” e que me deixe empurrar pelo devaneio para uma opinião tendenciosa: o Alfredo está ali para propor mulheres para o lupanar. Não seria a primeira vez que alguém o acusava de proxenetismo.

A julgar pela expressão do rosto, o negócio correu-lhe mal.

 


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