OS CONTOS DE HERTOGENBOSCH
O HOMEM-ÁRVORE
Jeroen nasceu
numa família de pintores. O seu tio Jan, também artista, visitava a família com
alguma frequência e ia espreitando os rabiscos do rapaz. Calhou encontrá-lo
duas vezes seguidas a desenhar árvores mortas. Confidenciou ao irmão Anthonius:
− O teu filho
tem talento, mas parece que faz sempre o mesmo desenho.
Não era verdade.
Tratara-se apenas de uma coincidência. Jeroen gostava de árvores, mas não
estava obcecado por elas. Desenhava tudo o que via e até muitas coisas que não
tinha avistado. De algumas, nem sequer ouvira falar. Era capaz de ilustrar as
histórias que escutava à lareira.
Já era crescido
quando desenhou a árvore morta que conhecemos hoje, com um ninho de coruja no
buraco do tronco. Terá, colmo de costume, amalgamado as memórias, os contos
lidos e ouvidos e os produtos da imaginação. Apôs-lhe uma legenda: os campos têm olhos, os bosques têm ouvidos;
quero ver, escutar e ficar calado.
A família de Jeroen
vivia na Praça do Mercado, mas o miúdo gostava de passear pela povoação e pelos arredores.
Herstogenborg
era uma das quatro cidades maiores do ducado de Brabante. Menor que Bruxelas e
Antuérpia, era contudo maior que Lovaina. A sua riqueza provinha do comércio e
da indústria da cutelaria. Possuía, como era conveniente, um número
considerável de tabernas e dois ou três prostíbulos.
O rapaz foi
crescendo. Alimentava as fantasias eróticas de todos os adolescentes, mas
escondia dos pais e do tio os desenhos de mulheres nuas. Traçava-as sem modelo
vivo, pois nunca avistara uma rapariga despida. Copiara gravuras grosseiras que
circulavam entre os adolescentes e imaginara retirar a roupa a algumas santas
das pinturas da Igreja de San Juan. Espreitara as portas dos prostíbulos, como
os demais rapazes que ainda não eram autorizados a entrar. Como não podia ver,
imaginava.
Curiosamente, a
imagem do bordel de difícil acesso acabaria por ser, mais tarde, corporizada na
personagem do homem-árvore, que domina o painel direito do Jardim das Delícias
Terrenas. É, pelo menos, nesse sentido que apontam as opiniões de alguns
entendidos.
Para um leigo
como eu, dificilmente o homem-árvore fará lembrar uma casa de passe. Onde é que
estão as prostitutas? A única mulher à vista é a que retira vinho de um barril
para um jarro. Não tem aspeto atraente. Parece velha. Usa um toucado com
orelhas altas e tem o nariz comprido e brilhante. Seria preciso alguém estar
desesperado (ou muito bêbado) para se querer deitar com ela.
O homem-árvore é
uma das figuras mais icónicas do panteão de imagens prodigiosas que Bosch nos
deixou. Julgo que acabará por dar lugar a mais interpretações.
O corpo tem
forma oval. Poderia corresponder a um frango depenado e estripado.
A árvore
sustenta-se em dois troncos. O de cá continua o corpo e assemelha-se a um
membro humano. O do lado oposto, grosseiramente simétrico, ajuda a equilibrar o
conjunto. Os troncos não mergulham as raízes no chão, mas assentam no fundo de
barcaças onde que se reconhecem alguns tripulantes. Flutuam num riacho estreito
onde alguns rapazes parecem brincar.
Há fila para
subir a escada comprida. À frente dum homem despido, vão dois monstros. O de
baixo tem asas de borboleta e cabeça de pássaro. O de cima é gordo. Tem capuz e
botas, mas não usa calças. Leva uma flecha espetada no ânus. Não parece
incomodá-lo.
Vêm-se homens
nus à volta de uma mesa. Um deles está sentado numa ratazana. Não parecem
divertidos. Da frente, chega o fulgor das chamas que tanto apraz a Bosh. Para
além da bebida, não estão à vista outras fontes de prazer.
O chapéu redondo
parece pertencer a outro mundo. É centrado por uma gaita-de-foles que uma monstra
de touca branca procura tocar. À volta, desfilam pares de monstros e pecadores.
O homem-árvore
olha para trás com uma expressão que se poderá situar entre a paciência e o
desengano. É como se o tivessem contratado e lhe pagassem mal.
Junto ao ponto
de apoio da escada, está um homem debruçado numa espécie de amurada. Tem o
rosto redondo e as feições mal definidas e apoia a cabeça na mão sustentada
pelo cotovelo. Ainda pensei que fosse vomitar, mas não é o caso.
Ampliei a imagem
no computador e quase dei um salto na cadeira. É o Alfredo!
Como é que terá
ido ali parar?
Conheço-o há
cerca de uma dúzia de anos. Na altura, ele negociava em antiguidades. Vendeu-me
um machado de bronze. Era uma falsificação. Curiosamente, comprei-lhe também um
morteiro de salva. É feito do mesmo material e parece ter permanecido muitos
anos, talvez séculos, no fundo do mar. Um arqueólogo meu amigo quase garante
que é autêntico. A sua experiência ensina que as falsificações se vendem melhor
se for introduzida no lote uma peça autêntica.
Depois,
encontrei-o em lugares improváveis: a bordo do avião que nos levou de Frankfurt
para Hong Kong, num passeio a pé pelo centro histórico de Praga e em Angola, à
saída do aeroporto de Luanda. Habitualmente, cumprimenta-me de forma efusiva,
mas já dei com ele a fingir que não me via e a misturar-se rapidamente na
multidão. Não pretenderá ver publicitadas algumas das suas atividades.
O Alfredo nunca
foi um homem honrado, mas não se pode dizer que fosse completamente desonesto.
Será essa a imagem de marca de alguns comerciantes.
Cheguei a sonhar
com ele, um par de vezes. Não foram sonhos bons, nem maus. O homem não aquece,
nem arrefece. Vi-o como delegado de propaganda médica à porta do Serviço onde
comecei a minha carreira hospitalar. Noutro sonho, encontrei-o a trabalhar numa
agência de viagens que propunha destinos estranhos.
Nunca o tinha
imaginado a deslocar-se no tempo.
O mais provável
é que a ampliação tenha alterado as feições do personagem que Bosch desenhou.
Existem tipos de rostos que se repetem ao longo de gerações na mesma área
geográfica e o Alfredo nunca chegou a dizer-me em que terra nasceu.
A outra
explicação mais ou menos racional é eu estar a sonhar que contemplo “O Jardim
das Delícias Terrenas” e que me deixe empurrar pelo devaneio para uma opinião tendenciosa: o Alfredo está ali para propor mulheres para o lupanar. Não seria
a primeira vez que alguém o acusava de proxenetismo.
A julgar pela
expressão do rosto, o negócio correu-lhe mal.
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